(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quarta-feira, 30 de junho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 66

Trovas de um descendente do Bandarra, sapateiro de Trancoso - (7) -
Eduardo Aroso

(Estando eu a laborar, olhando o sapato com atenção,
pensei nos astros e no solstício - quando o sol parece ficar parado.

Reparei também que o povo, em grande agitação e maior cegueira, vai numa estranha procissão…)


É com certo sofrimento
Se vos tenho que falar.
Medito no momento
Para dizer ou calar.

Há porém ocasiões
Que me toca não sei quê
Pra mexer de outro modo
No que toda a gente vê.

Converso a sós comigo
E com os outros também;
E no meio disto tudo
Algo em nós vai e vem.

Neste ciclo de passagem
Não há alta velocidade!
Há o que se possa entender
Do que se chama verdade.

Diz-se que em certas alturas
Nos acorda um aguilhão.
Mas ele pode dar força
Ao malévolo dragão.

Pouco a pouco a esta ideia
O tempo nos conduz:
Só há dois grandes partidos
- O das trevas e o da luz.

(continua)

terça-feira, 29 de junho de 2010

PRÓXIMO SÁBADO, EM ÉVORA, ÀS 21:30

Apresentação. Luís Paixão e Roque Braz de Oliveira estarão presentes, no próximo sábado, em Évora, numa sessão de apresentação de Singularidades, segundo volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante, que terá lugar no Intensidez Bibliocafé, a partir das 21:30.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

PENSANDO À BOLINA, 29

Pedro Sinde




A saudade da rola
Nesta rola que ao longe arrulha há algo que me encanta e incanta: o louvor nostálgico, hino triste, lamento, lamento que soa a lamento de exilado. Na sua tristeza, no seu exílio, ela parece chamar o seu amado que deixou nas turcas terras que a viram nascer.
O ritmo do canto nocturnal da rola é, ele mesmo, essa lonjura – logo expressa pelo número três: Hu-hu-huuuuuuu. Hu, em árabe, é a forma do pronome que exprime o ausente, a terceira pessoa: ele. É esta a tua invocação saudosa e triste: ele-ele-eeeeeeele.
Choras, meiga rola, pela memória desse lugar que deixaste; lembras-te ainda do Paraíso.
O teu canto triste e saudoso é, no entanto, uma forma de louvor, uma forma de louvar; e essa forma é única, porque é tua e só tua.
Choro ao ouvir-te, pois entendo o que dizes e, como tu, também eu canto, mas cá por dentro, aberto para a imensidão do mundo que trago em mim. Também eu, como tu, sei que saí do Paraíso; saí ou caí. E lembro-me dessa terra da origem quando vejo o mar ou o bosque aqui ao pé; lembro-me do Paraíso quando te ouço o lamento.
E nas asas da Saudade quer acender-se em mim uma chama que chama à porta do Paraíso pelo anjo da espada ígnea: o meu coração quer entrar já lá, lá onde o espera o seu tesouro, porque, glosando, ali onde o teu tesouro está o teu coração acharás. É que para cá nascer deixei o coração lá; e não faço agora outra coisa senão chamá-lo, como tu chamas, nesse arrulhar triste, pelo teu amado das terras turcas.

domingo, 27 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: O LANÇAMENTO, 2

fotografias de Maria José Albuquerque: clique nas imagens para as ampliar

Pedro Sinde, António Telmo, Pedro Martins e Isabel Xavier no átrio da Biblioteca Municipal de Sesimbra, após o lançamento de Singularidades
Luís Paixão (em primeiro plano, ao meio) à conversa no átrio da Biblioteca Municipal de Sesimbra, após o lançamento de Singularidades

EXTRAVAGÂNCIAS, 65

fotografia de Maria José Albuquerque: clique na imagem para a ampliar

em primeiro plano: António Telmo, acompanhado de sua mulher, Maria Antónia, e de sua filha, Anahi, durante o lançamento de Singularidades
________________________
Saudação*
Eduardo Aroso

Caros Amigos,

Não podendo estar fisicamente presente, gostaria de pedir-vos a vossa prestimosa atenção para uma tão simples como breve palavra. Assim, permitam-me que, muito respeitosamente, cumprimente António Telmo, e fazendo-o creio que saúdo todos os presentes no mesmo ideal. Seja qual for a diversidade, na certeza da liberdade que, verdadeiramente, só existe no e pelo espírito.
Neste momento, um sopro ou som comum nos une: a certeza de uma Língua Pátria que, também na diversidade para nomear e na liberdade de criar, está presente e habita-nos dia e noite, e através dela nos expressamos.
Seja então a mais bela oração feita poema ou o poema sendo a prece mais alta; seja então a tese ou antítese, o princípio ou o sistema. À imagem dos abnegados na «Seara do Senhor», sejamos então os obreiros da razão e da emoção nesta melodiosa seara da língua. Acentuemos-lhe a modulação e o timbre para mais amplo e fecundo pensamento. Meditemos na responsabilidade e na graça com que o Criador nos brindou, permitindo a existência da Língua Portuguesa, a bênção de escutar o grito da águia das montanhas e, em contraponto, o marulhar da orla, o mítico mar, o surgir das gaivotas sonoras que trazem horizonte e futuro.

Eduardo Aroso

Coimbra, 23-6-2010
____________
* (nota do editor) Texto da mensagem de Eduardo Aroso que foi lida durante a sessão de lançamento de Singularidades. O título é da responsabilidade do editor. Apesar da dispersão geográfica dos elementos que integram o círculo dos Cadernos, esta mensagem atesta bem a convergência de esforços e intenções que os une.

sábado, 26 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: O LANÇAMENTO, 1

fotografias de Maria José Albuquerque: clique nas imagens para as ampliar

da esquerda para a direita do leitor: Pedro Martins, Cynthia Guimarães Taveira, Roque Braz de Oliveira e Pedro Sinde
Aspecto da assistência na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra

sexta-feira, 25 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 15

Autobiografia Espiritual


António Telmo


NOVIÇO:

Frei Anselmo, aqui estou para que me interrogues, tal como mo fizeste saber pelo grande cabalista inglês Z'ev ben Shimon Halevy.
Ele indicou-te como aquele que, sem que eu o soubesse, secretamente me tem guiado pelos caminhos da verdadeira vida.
Descreveu-te como te vejo agora: um monge vestido como os franciscanos, mas não franciscano, capuz cobrindo a cabeça e corda à volta da cintura. Uma espécie de Savonarola, o rosto lembrando o de um falcão.

FREI ANSELMO:

Fui escolhido pela nossa augusta Ordem para teu mestre de altanaria.
Sou, na verdade, um domador de falcões.
O falcão é capaz, sobretudo o peregrino (repara bem neste nome) de atingir velocidades comparáveis às das ideias quando irrompem da concentração imóvel do pensamento em conquista das palavras de que se alimentam, mas que entregam submissas ao mesmo pensamento.
Aristóteles escondeu um grande segredo nas palavras onde diz que “a filosofia é como a altanaria”. Deixemos isso, porém, para os caçadores de enigmas.
Mais importante, neste momento, é lembrar as palavras que Dante, seguidor do filósofo grego, pôs na boca de Beatriz, ouviu da boca de Beatriz, quando, finalmente, apareceu a abrir-lhe as portas do Paraíso.

NOVIÇO:

Sei-as de coração. Oh! O maravilhoso abrir-se do Encontro, depois de se ter passado pelo Inferno e pelo Purgatório!:
“No meio de mil cânticos, eis que surge, vinda dos lados da Aurora sob o belo azul límpido, aquela a quem o Poeta chama Beatriz. O vestido tinha a cor da chama viva sob um manto verde e cingia-lhe a cabeça um ramo de oliveira.
Dante não reconheceu logo, nela, Beatriz; mas era tal a força divina de si emanada que, não com os olhos, com a alma sentiu o poder do seu antigo amor.
Tomado de desânimo e de espanto, voltou-se para dizer a Virgílio o terrível estado em que se encontrava a sua alma, mas Virgílio, o dulcíssimo mestre, tinha desaparecido. Agora, outro guia mais alto conduziria Dante nos caminhos do Paraíso: “Dante, põe aqui o teu olhar! Sou Beatriz.”
Perturbado, baixou os olhos cheios de dor causada pelo tom severo da voz de Beatriz. Cantavam os Anjos e as suas palavras eram: “Senhora, porque o mortificas?” E então ela contou como Dante se esqueceu do amor que lhe devia depois de morta e se pôs a percorrer caminhos errados. Enquanto ela teve uma forma natural, amou-a; mas logo que se revestiu de uma forma sobrenatural, esqueceu-a. Disse também Beatriz que de nada valeu que tivesse obtido de Deus para ele santas inspirações, aparecendo-lhe em sonho e por outros modos. Descera tão baixo que nenhum remédio o poderia salvar, senão um: o de mostrar-lhe as gentes perdidas.
E foi por isso que Beatriz desceu ao Inferno para pedir a Virgílio que o conduzisse ao reino tenebroso. Agora que ele tinha subido até ali, se passasse o rio Letes e saboreasse as suas águas sem primeiro chorar de arrependimento, seriam violadas as leis divinas.”

FREI ANSELMO:

Também nós te enviámos santas inspirações, te visitámos em sonho e por outros modos.
Eu próprio, por duas vezes, te enviei os meus falcões, uma para te confirmar no caminho de Deus, outra, mais tarde, para te indicar claramente esse caminho, de onde te havias desviado. Vê se o recordas.
Enviei-te muitas outras vezes os meus falcões, mas nunca soubeste interpretar os sinais que pus nos seus voos.

NOVIÇO:

Vinha de seguir os ensinamentos de um austríaco, poeta e mago. Caí, de repente, no vazio do desespero. Não tinha conseguido vencer a dúvida. Sabia, através daquele filósofo, que continuas pelo nome de Anselmo, que é necessário crer para compreender.
Subi à montanha no meu carro e entrei no eucaliptal. Ali fiquei sentado a olhar uma nesga de céu azul que se avistava por entre os eucaliptos, o meu espírito envolto nas sombras da dúvida, da odiosa dúvida inimiga da inteligência. Então, fechei os olhos e pedi a Deus que me desse um sinal de que era possível que eu o viesse a conhecer segundo as minhas capacidades. Abri os olhos e, no pedacito de céu azul, coisa extraordinária!, demorava-se pairando uma das tuas aves.
Foi esta a primeira vez.
Passaram-se muitos anos. Andava dividido em duas personalidades, sozinho entre as duas e, por este modo, a dúvida se instalara no próprio corpo da vida. Ali, era apenas de sentimento e de pensamento; agora, a dúvida consistia em eu ser dois.

FREI ANSELMO:

Foi então que recebeste o grande sinal.


(...)

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 14

Os Portais do Entendimento


Luís Paixão

Ao António Telmo
Já ficou definitivamente demonstrada por António Telmo a ligação entre a história de Portugal e a iniciação na cavalaria espiritual do amor pela decifração e interpretação de dois dos nossos maiores monumentos: o claustro dos Jerónimos e Os Lusíadas. Essa doutrina, cujo carácter permanente em Portugal, desde o reinado de D. Dinis, foi tornado evidente pelo filósofo Sampaio Bruno, é descrita no seu livro Os Cavaleiros do Amor, para nossa felicidade reeditado recentemente pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda com o título Plano de um livro a fazer e prefácio, organização e notas de Joaquim Domingues.
Pretendo, com este escrito, oferecer uma contribuição que porventura dê testemunho de novos indícios, reforçando as teses acima referidas.
Nesse sentido, os dois elementos construtivos e arquitectónicos que me proponho interrogar – porque me surpreenderam – são as duas pedras de fecho dos arcos dos portais Sul da Igreja de Santa Maria de Belém dos Jerónimos e da Igreja do Convento de Cristo em Tomar. Para tanto não posso deixar de revisitar a citação:
“Entendei que segundo o Amor tiverdes tereis o entendimento dos meus versos”.
Esta frase condicional do nosso maior poeta implica no sujeito que lê uma interrogação a si próprio.
O que é essa coisa – o Amor? E, conhecendo-o, se o vive, em relação a quê ou a quem? Qual o grau, a medida e a intensidade que são condição? Não é a razão, não é o saber, não é a vontade, não é tampouco a memória – o amor é que é a chave para o entendimento. O amor de que aqui se fala é uma potência que não terá nada que ver com os modos de viver e sentir contemporâneos como a afectividade para com os automóveis ou outros objectos traduzida no “I love my car” ou na terrível e obscena substituição dos amores maternal, paternal, filial ou fraternal pela afectividade de um cão, de um gato ou de uma iguana, porque menos exigente em termos de relação ou de consciência do outro. Proliferam os veterinários para animais de estimação, a venda de brinquedos para os bichos e também os depósitos de pessoas a que se chama lares de terceira idade. Não que me anime o desprezo pelos animais, mas a diferença no grau de relação impõe seguramente maior sensatez nas atitudes.
O amor a que se refere Camões tem como paradigma o amor entre o homem e a mulher na sua mais alta e radical assumpção, como incessantemente procurou nos sonetos da sua obra lírica, desafiando e expondo-se sistematicamente às flechas do irrequieto cupido, num intenso itinerário iniciático de um Fiel do amor. Tendo em mente o suplício de S. Sebastião, que foi morto trespassado por flechas, e numa hipótese algo arriscada, poderemos, por comparação, justificar a “enigmática presença” da figura do Santo, nas palavras de Paulo Pereira, no lugar do fundamento (Yesod) da Árvore Sefirótica, no Portal dos Jerónimos, e que adiante iremos desenvolver.
Há naquela frase um outro aspecto que convida à reflexão e que é a duplicação do conceito entender no verbo e no substantivo, uma insistência que, de certo modo, agride o bom exercício da língua, e que só é compreensível em Luís de Camões pela exigência de chamar a atenção do leitor para qualquer coisa de importante.
A palavra entender está em português ligada ao sentido da audição e tem implícito, além do de ouvir, o sentido de compreender o que se ouve. É portanto um ouvir inteligente. Na audição há o ouvido externo e o ouvido interno, tal como existe a palavra exterior e a palavra interior. Todos sabemos e aceitamos que os poetas se aproximam da língua falada por Adão e Eva no Paraíso. Não se pode gostar de poesia se se não apurar o ouvido interno. Quero dizer que quando leio poesia ou estou alheio e, de certo modo, apático e surdo; ou então algo ressoa em mim, que irmana com o que o poeta escreveu – e nesse momento acertamos na linguagem universal, aquela que existia antes da queda de Babel. Não há mal-entendidos, não há portanto esclarecimentos ou necessidade de tradução.

(...)

quinta-feira, 24 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: AS IMAGENS


clique na imagem para a ampliar

Grafismo. À semelhança do que já sucedera com o número de estreia, é de Pedro Sinde o grafismo, esmerado e sóbrio, de Singularidades, segundo volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante. Quanto à emblemática palmeira que, de novo, ilustra a capa, trata-se, como é sabido, de um desenho da autoria de Carlos Aurélio, que, no interior da publicação, assina ainda uma série de outros desenhos inspirados na obra de António Telmo, mentor deste projecto. Um portfolio com belíssimas fotografias de Tiago Sobral Cunha completa a ilustração das páginas que agora se dão a lume.

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 13

O quarto e a quinta


Luís Paixão
Ao Pedro Martins
A casa portuguesa, síntese romana, judaica e cristã, é o lugar da vida familiar onde acontecem os mais belos gestos de carinho e onde são ditas as mais altas palavras; mas, por outro lado, é ali também, na habitação, lugar de habituação, que se instalam o óbvio e a apatia.
Por isso, as palavras a ela directamente ligadas, e que fazem parte do quotidiano do nosso dia-a-dia, têm tendência a ser pouco interrogadas, embora elas manifestem aquilo que há de mais distinto e autêntico no culto, na cultura e na civilização de um povo, porque são aquelas que estão mais ligadas com a sua vida.
Há cerca de 20 anos fui convidado, no exercício da minha actividade profissional, a desenhar o projecto de recuperação de uma pequena casa rural com algumas centenas de anos, localizada no concelho de Sesimbra. A construção de paredes grossas de alvenaria de pedra tinha uma planta quadrangular dividida rigorosamente em quatro partes, coberta por um telhado de quatro águas. Aquela configuração é muito comum na região saloia, ao norte de Lisboa; e também ao sul, na península de Setúbal. Como fiz o levantamento, fui interiorizando a divisão em quatro e, naturalmente, surgiu no meu espírito essa extraordinária relação entre a designação quarto e um quarto da casa. Não conheço nas línguas europeias qualquer relação entre esta palavra e a designação de um compartimento. Actualmente designa apenas os espaços destinados ao dormir, mas no nosso território camponês o termo ainda é genérico, podendo designar compartimentos com outra finalidade.
(...)

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 12

A relação Médico – Doente

Paula Costa


O relacionamento entre um paciente e o médico é muitas vezes tenso, infeliz ou mesmo desagradável – é nestes casos que a palavra Médico não tem os efeitos desejados e muitas vezes essas situações são trágicas.
O médico tenta fazer o seu melhor – e mesmo assim, apesar de sinceros esforços de ambos os lados, as coisas, às vezes, correm mal.

Algumas pessoas têm dificuldades em ajustar-se aos problemas da sua vida e encontram refúgio na doença. Se o médico tiver oportunidade de as observar nas primeiras fases dessa doença – isto é – antes que ela se instale de forma “organizada” e definitiva, poderá verificar que os doentes oferecem ou propõem diversas doenças, até que ocorra um acordo entre o médico e o doente, em que ambos aceitam uma das doenças.
A variedade de doenças disponíveis para cada indivíduo é limitada pela sua constituição, pela sua educação, pelo seu estatuto social, e pelos seus receios conscientes ou inconscientes e as suas fantasias acerca da doença. O efeito médico principal – de substância – é a sua resposta às ofertas do doente.
Muitas vezes o doente pede primeiro um nome para a doença e um diagnóstico em segundo lugar, querendo saber o que pode ser feito para aliviar o seu sofrimento, como também as restrições e privações provocadas pela doença.
Algumas pessoas, ao adoecerem, propõem ao seu médico um leque do doenças potenciais – a partir do qual ele – médico – deve escolher uma aceitável.
A doença surge-lhe sempre como uma experiência inquietante e ele sente que algo está mal: para o médico o diagnóstico tem um efeito tranquilizador e, em primeiro lugar, é sempre um diagnóstico “físico”. As razões em regra avançadas para tal prendem-se com a ideia de que a doença física é mais grave do que a doença funcional – e ele sente muito justificadamente que fez um bom trabalho pois encontrou a verdadeira causa do sofrimento. É admissível que cada médico, quando confrontado com novo doente, tente atribuir-lhe um nível elevado e apenas o relegue à categoria de neurótico quando não encontra qualquer justificação para lhe assegurar o estatuto respeitável.

(...)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

«SINGULARIDADES», OS EXCERTOS, 11

Uma nota a «O Conto de Amaro»


Pedro Sinde


N’O Conto de Amaro diz-se que há um paraíso na Terra. Não é
ainda o paraíso celeste, mas o ponto máximo que ao homem é dado
atingir nas condições em que aqui vive: o tempo e o espaço. Por isso
o paraíso na Terra tem ainda espaço e tempo, mas é um espaço muito
subtil que contrasta com o grosseiro da matéria, é um espaço em que
a plasticidade da matéria é muito parecida com a dos sonhos; por
outro lado, o tempo tem um tipo, uma qualidade de duração muito
diferente, a sua estrutura ontológica também é outra. É um tempo já
muito próximo do eterno, se fosse possível aproximar qualquer tempo
à eternidade; em todo o caso um dia lá são centenas de anos cá. De
algum modo se poderia dizer, portanto, que o paraíso na Terra é um
estado intermediário entre o cá e o lá.
O homem nunca se satisfez com a ideia de que o absoluto não se
relacione com o relativo e, por isso, por muito absurda e antinómica
que uma tal relação pareça à razão, é a própria razão que impõe como
necessária essa relação. Dada a relação como evidente trata-se pois de
desvendar o modo, a estrutura ontológica segundo a qual ela ocorre.
Este conto medieval narra a história de um homem, Amaro, que
tinha um só desejo: ver o paraíso terrenal. A toda a hora ele procura
apenas isso, a simples ideia de um paraíso na Terra é demasiado fascinante para que lhe possa resistir. As suas orações diárias não têm outro fito senão o de pedir a Deus que lhe conceda em vida a visão do paraíso terrenal.
Uma noite, cismando com o paraíso, Amaro ouve uma voz que
lhe diz:
“Amaro, Deus ouvyo a tua oração e quer comprir o teu rrogo e
desejo. Vay te a[a] rrybeira do mar e nõ digas a nenhum nenhua cousa de teu feito ne pera hu vaas. E mete te e hua nave e vay te hu te Deus quyser guyar.”

(...)

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 10

Para uma poética atlântica da casa

Pedro Martins
ao Luís Paixão
(...)

4. Todavia, não é apenas pela perversão desfiguradora das palavras que ocorre o desvirtuamento da língua portuguesa enquanto suporte de uma filosofia do movimento. Devemos, igualmente, prevenir os casos de introdução, intromissão ou intrusão de vocábulos alheios que neutralizam, quando não subvertem, aquela capacidade expressiva.
Tenha-se presente a palavra piso, de óbvia origem castelhana, cuja utilização vem, nas últimas décadas, substituindo o uso da palavra andar – quando esta seja tomada na acepção de estrato – na nomenclatura arquitectónica, com especial incidência nos edifícios afectos a serviços públicos.
Na alternativa enunciada pelo confronto dos dois termos espelham-se duas visões do mundo claramente distintas e até, de certo modo, antagónicas. Do pisar (estático) para o andar (dinâmico) vai a diferença que se verifica existir entre quem fica e quem parte, sabido que andar é próprio de alguém que está em movimento, ou em viagem.
Neste passo do nosso caminho parece adquirir grande pertinência a destrinça, por António Quadros operada no primeiro livro de
Portugal, Razão e Mistério, entre nações terrestres e nações marítimas, num quadro elementar, simbólico de determinações ideais, que admite matizes e abarca igualmente as nações voláteis e as nações ígneas.
Na visão de Quadros – que, em certa medida, se revela tributária dos ensinamentos de Gaston Bachelard –, a predominância do elemento
terra relaciona-se com “a radicação telúrica do homem, com os mitos e rituais de fertilidade nas civilizações agrárias, com a poética da paisagem e das raízes”; “com o repouso idílico ou com a detenção do movimento, definida a condição humana entre o berço e o túmulo”; e, num outro plano, “com o voluntarismo, isto é, com o domínio, com a conquista, com o sistema e bem assim com a atitude de desconfiança ou de repúdio perante a imaginação, o sonho e a transcendência em todas as suas formas”[i].
Por isso, o filósofo da
Arte de Continuar Português pode concluir que “o absolutismo da razão (prática, dialéctica ou sofística), da ideologia dogmática, do sistema filosófico totalizante, do totalitarismo, da conquista material, do império voluntarista sobre os homens e as nações é da ordem da terra”, num percurso histórico que se faz “do centro das massas continentais (panoramas de montanhas, vales, florestas) para as margens dos grandes rios ou para as periferias marítimas, que pretendem dominar e converter”[ii].
Este breve, mas decisivo, excurso por um aspecto fundamental da obra-mestra de António Quadros resultaria, de alguma sorte, inconsequente se se não acrescentasse que o filósofo, no remate da proposição que venho de transcrever, inclui os castelhanos da meseta ibérica entre os povos referidos ao conjunto das nações terrestres. Dadas as evidências, bem se compreenderá que ao nosso vocábulo
andar (na acepção apontada) correspondam na língua castelhana a palavra piso e – o que, se ainda não foi dito, é porventura mais significativo – a palavra planta.

(...)
____________
[i] António Quadros, Portugal, Razão e Mistério, Livro I, pp. 47-48.
[ii] Idem, p. 48.


«SINGULARIDADES»: QUEM TEM CAPA...

Lançamento no próximo sábado, 26 de Junho, às 15:00, na Biblioteca Municipal de Sesimbra



Continuidade. O lançamento de Singularidades, segundo volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante, tem lugar já no próximo sábado, 26, pelas 15:00, na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra, no âmbito do ciclo Portugal Renascente, iniciativa conjunta dos Cadernos e da revista Nova Águia, em parceria com a edilidade sesimbrense. A apresentação estará a cargo de Cynthia Guimarães Taveira e Roque Braz de Oliveira.


terça-feira, 22 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 9

Palavra de alma


Cynthia Guimarães Taveira


(...)

Observações pontuais à nossa língua são frequentes como se esta fosse, em simultâneo, coisa próxima e distante. Estranhamos a própria língua, tal como estranhamos o nosso próprio país. Não nos habituamos aos dois. Recordo um artigo numa revista sobre estrangeiros em Portugal, sendo que um deles, diferente dos outros, belga, salvo erro, tinha-se apaixonado primeiro pela língua portuguesa, antes de conhecer o país, pelos sons dela, sobretudo por um deles, o Ch. O chapinhar, espelhar, chamar letra a letra, os plurais, com “esses” chicoteando o final das palavras, tornando-as férteis e plurais. Para este estranho à língua, era um som que o sossegava, equivalente ao che-che-che, dito aos bebés para se acalmarem. Língua que, para ele, já falava sem que a conhecesse e o tranquilizava como nenhuma outra língua. Aspecto maternal da língua, será?
E ainda a letra S atribuída à serpente, como fundo de memória representando o nosso país. O S maldito e também bendito, como se nele fossem concentradas duas forças contraditórias, até pela forma, duas linhas opostas, em tensão, mas encontrando-se no meio. Dizê-lo bem ou dizê-lo mal: sonho, saudade, sabor, santo, sabedoria, mas também satânico, sarcástico, sorumbático, sádico. Yin e Yang, vivendo, lado a lado, neste extremo ocidental, onde japoneses vêm ver o fim do mundo ao Cabo da Roca, a volta na curva final da cauda do dragão mas também a crista, na primeira curva do seu início. Portugal é a curva que decide o uroboro em movimento perpétuo, motor imóvel decidindo o seu microcosmos por simples evocações. Não é sagrada, a nossa língua, mas pode conduzir à consagração. É uma língua de missão, actuante, nómada e sempre, para o bem e para o mal, enamorada de outras.


(...)

«SINGULARIDADES»: OS POEMAS, 3

Verão da Alma


Isabel Xavier


Quando a tarde inteira se esvair
Sem que do dia reste qualquer mágoa
A maré alta da noite há-de subir
E as ruas da madrugada serão água

E um fino fio de sangue há-de jorrar
Do altar a meio da praça levantado
A horas mortas quando o sino ecoar
Avé Marias que ecoam do passado

Cenários de pedra e cal virão erguer
A vitória silenciosa de quem sente
E pouco a pouco aranhas vão tecer
A ténue teia dum tempo que não mente

E um dia caminhará atrás do outro
Até que um raio de luz enfim se aviste
E a artística lide de um só touro
O leve a ceder à espada em riste

Nada mais sabendo fico aquém
De algo que em mim se fez presente
Memória de um sentido mais além
Daquilo que a palavra diz ou sente

Inominável em mim e tão distante
Verão da alma, intenso, insuportável,
Quantos caminhos cruzarás adiante
Da viagem de regresso, interminável?

segunda-feira, 21 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 8

Dois cantos de O Crocodilo, de Saint-Martin


Inácio Balesteros (tradução e nota introdutória)


Nota introdutória

«O Mal existe e é imoral negá-lo» - disse Leonardo Coimbra num dos seus livros; mas o Mal não é em si mesmo um princípio; o Mal não é imutável.

A obra O Crocodilo, de que vos apresentamos dois capítulos, trata precisamente da guerra do Bem e do Mal, passada em Paris, durante a Revolução Francesa; os dois capítulos que ides ler, tratam precisamente do Bem; do Bem que nas coisas anda, nas coisas e nos seres; Bem supra-natural, que constantemente nos acompanha.
Madame JOF é anagrama de FOI ou FÉ, na nossa bela língua. Ela e a “Sociedade dos Independentes” combatem por Paris, para que o “Génio do Mal”, o “Crocodilo” não vença; e é o que acontece, por isso mesmo, porque o Mal não é imutável.
Contamos apresentar dentro em breve a tradução completa desta obra; até lá deixamos-vos com a leitura destes dois capítulos.

(...)

O CROCODILO

Canto 14


História de Madame JOF
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Com as últimas palavras, esta mulher, que dizia chamar-se Madame JOF, dissipou-se no ar como vapor; desaparecendo desta forma súbita e extraordinária, deixou o voluntário Ourdeck tomado de um espanto que o leitor compreenderá facilmente. Mas como ele não tinha a mínima ideia de quem era esta Madame JOF, é necessário dar-lhe a conhecer o que uma tradição de muito poucos conhecida conservou.
Esta mulher nasceu no ano de 1743, na força do Inverno, na capital da Noruega, a sessenta graus de latitude. Foi o fruto de uma gravidez extremamente dolorosa, e o seu nascimento foi assinalado por acontecimentos extraordinários: durante oito dias, a contar daquele em que veio ao mundo, o Sol ficou tanto tempo sobre o horizonte como durante o solstício de Verão; todas as neves se fundiram; as águas dos rios correram; os prados cobriram-se de verdura, os jardins de flores, as árvores de frutos. Mas o mais extraordinário foi que os cardos e as plantas venenosas ou malsãs não nasceram.
Diz-se mesmo que o famoso abismo do Malstrom se cerrou e que os barcos puderam navegar em segurança; acrescentam que os mágicos negros, de que o norte é um formigueiro, foram de tal forma perturbados nas suas operações que tiveram de as abandonar; que mesmo os pequenos malfeitores foram de tal forma atormentados na sua consciência que, vinte léguas em redor, não se ouvir falar de nenhum crime.
Um historiador sábio, membro da academia de S. Petersburgo, amigo do pai da criança, de visita no momento destes acontecimentos, foi subitamente tomado por um espírito profético. Aproximou-se do berço da menina e depois de a olhar com atenção, anunciou que seria grande em conhecimentos e virtudes, mas que o mundo não a conheceria; seria no entanto a cabeça de uma Sociedade que se estenderia a todas as partes da Terra; que esta Sociedade se chamaria dos Independentes, e que não seria semelhante a nenhuma outra conhecida do mundo.
Observou de novo a menina e, carinhosamente, fez uma segunda profecia que não foi conhecida nesse tempo, e que, mesmo nos nossos dias, só um pequeno número a conhecerá: que ela ensinaria os homens a viver até aos 1473 anos. Pouco depois, deixou os seus amigos e voltou para a sua pátria, onde, com grande espanto dos seus concidadãos, contou a história de que acabava de ser testemunha.
A jovem norueguesa manifestou, desde a mais tenra idade, o destino singular que lhe fora predito. Começou a andar muito tempo antes do que sucede com as crianças vulgares; viam-na afastar-se do convívio humano, como se a frivolidade do mundo pesasse sobre ela. Desde que as primeiras luzes da razão se manifestaram no seu pensamento, dizia coisas tão acima da sua idade que todos os que a ouviam ficavam surpreendidos.
Se, na sua presença, pessoas instruídas tratassem questões relativas às ciências, ou aos mais profundos conhecimentos, mostrava, não só compreender tudo o que diziam, mas que, se quisessem, ela podia ir mais além e mais alto. «Porque, dizia-lhes ela algumas vezes, é no mundo da ciência que deve aparecer o poder da reminiscência; que se pudessem interrogar-se e conhecer-se a si próprios, veriam que luz maravilhosa poderiam comunicar aos que os ouviam. Poderia um músico encantar nossos ouvidos, com o som do seu instrumento, se não tivesse antes e sem cessar, o cuidado de aspirar o ar?»
Chegada a idade de sete anos, desapareceu da casa dos pais; queria encontrar o momento e o lugar onde o sol se levanta; desde então, nunca mais se soube, nem os caminhos por onde andou, nem os lugares que habitou; soube-se somente, por tradição, que usou vários nomes e tomou diferentes qualidades; que tinha a faculdade extraordinária de se fazer conhecer ao mesmo tempo em diferentes países, e a pessoas vivendo em lugares distantes uns dos outros, que não tinham entre si qualquer relação; enfim, que era devida a esta faculdade de estar ao mesmo tempo em lugares diferentes a impossibilidade de se saber onde morava; que era olhada como uma verdadeira cosmopolita, no sentido rigoroso do termo, que não foi bem compreendido, quando a apresentaram como se de um ser errante se tratasse.
Como habitava em qualquer lugar do mundo, em cada um tinha a sua Sociedade dos Independentes, a qual, na verdade, se devia chamar Sociedade dos Solitários, já que cada homem tem em si mesmo essa sociedade.
Madame JOF, dadas as circunstâncias infelizes que ameaçavam Paris, reunia frequentemente nesta Capital a sua Sociedade, para a informar das verdadeiras causas dos acontecimentos que se preparavam, e para os incitar a que, com os poderosos meios que possuíam, ajudassem a Capital na resistência ao inimigo mortal.
Como esta Sociedade se distinguia inteiramente de todas as sociedades conhecidas, não se podendo dizer que era uma sociedade, não se pode entender a palavra reunir com o significado que vulgarmente se lhe atribui. Assim, ainda que apresente aqui Madame JOF como reunindo os diferentes membros da Sociedade dos Independentes, a verdade é que não se juntavam; que esta assembleia se realizava estando cada um dos membros isolado do outro, estivesse onde estivesse, sem estar sujeito a um local, a nenhuma cerimónia, ou limitado por casa fechada; que cada um dos membros tinha o privilégio de ver ao mesmo tempo todos os outros, e de por eles ser visto; que enfim, tinham o privilégio de estar todos em presença de Madame JOF, como Madame JOF tinha o privilégio de estar presente a todos ao mesmo tempo, quando quisesse, qualquer que fosse a distância ou o lugar que habitassem.
Foi devido a este privilégio que os diferentes membros da Sociedade dos Independentes, comunicaram uns aos outros o estado de perturbação em que a Capital estava mergulhada, e se encontraram com Madame JOF. A seguir damos-lhe um resumo do que ela lhes disse nas diversas assembleias que, como já dissemos, não são como as assembleias vulgares.
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«SINGULARIDADES», OS EXCERTOS, 7

Ode em prosa pela Língua Portuguesa

Carlos Aurélio


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II
Eu creio que as línguas têm língua, quero dizer, língua mesmo como cada homem tem a sua, se não em carne que afinal por si não faz falar pois os animais têm-na e não falam, mas, pelo menos, uma língua que é alavanca ou corda de alma como imagino a nossa. As línguas têm língua assim ao modo mais ou menos misterioso como as consoantes na boca caçam vogais, dito melhor, como as tangem e acariciam vibrando nelas como cordas de harpa ou de guitarra, portuguesa ao caso de quem isto lê. E sei pouco do que digo, ainda que admire, e muito, o que outros disseram quando um dia se puseram a pensar sobre a língua que amavam, ou melhor, sobre a língua em que amavam. Quem quiser, bem pode ir remar na epopeia de Camões, ou rimar na prosa do Padre António Vieira, ou então, cismar analogicamente com António Telmo que um dia se pôs a colher frutos de uma certa árvore sefirótica plantada na sua Gramática Secreta da Língua Portuguesa. Secreta, ali, quer dizer sagrada porque é do Céu que descem até nós as línguas, tal como no Pentecostes, dadas a todos assim o sol quando nasce que, quando se põe, já depende do que fizermos com ele.
As línguas têm língua, o sino badalo e, as flores, androceu entumecido de estames e pólen doirado. Também nós temos boca e nela a língua, cega e misteriosa, alavanca de potência espiritual a sondar o palato. É sabido e certo que o homem fala sem que esteja apetrechado de aparelho fonador específico, moldando plasticamente o ar em seu percurso vital, afinal similar ao de outro mamífero, ao de qualquer ave ou mesmo réptil. Porque não falam os gatos ou os cães? Porque não raciocinam por palavras macacos ou golfinhos? Se, ao que parece, o genoma humano é 99% igual ao código genético do chimpanzé e, todavia, só o homem fala e raciocina, não é de concluir que a diferença decisiva está precisamente no invisível espiritual que se pretende negar? Nesse 1% cabe um salto de infinito. Tudo será apenas darwinismo transformista e patamares atrasados da evolução que, em dia de “São Nunca”, dará palavras pensadas a baleias e papagaios? Quanto cientismo por desmistificar?
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domingo, 20 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 6

A Língua Portuguesa e o Acordo Ortográfico


Renato Epifânio


I
Quando o António Telmo, na esteira do Pedro Martins, me convidou para colaborar nos CADERNOS DE FILOSOFIA EXTRAVAGANTE, para este número dedicado à “Língua Portuguesa”, logo me pôs completamente à vontade: “Pode defender as suas ideias” – disse-me. E à minha réplica – “eu defendo sempre, em todos os lugares e circunstâncias, as minhas ideias” –, logo concretizou: “Pode defender o Acordo Ortográfico”.
Sorri, lembrando-me do desafio que eu próprio havia feito ao António Telmo para ter colaborado no segundo número da NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI – dedicado não apenas a António Vieira mas também ao “futuro da lusofonia” –, precisamente com um texto contra o Acordo. Isto porque o António Telmo é (muito legitimamente, já lá iremos) contra o Acordo Ortográfico. O António Telmo e, presumo, a grande maioria, senão a totalidade, das pessoas que nesta revista mais regularmente colaboram. O António Telmo, de resto, já foi publicamente interpelado sobre a sua participação no movimento criado em torno da NOVA ÁGUIA, o MIL: MOVIMENTO INTERNACIONAL LUSÓFONO, dado que este movimento cultural e cívico lançou mesmo uma petição on-line a favor do princípio do Acordo Ortográfico. Não apenas em defesa de António Telmo, respondi ao interpelante esclarecendo que o MIL era um movimento plural, com diversas tendências e sensibilidades, e que essa petição lançada relativamente ao Acordo havia sido, de longe, a mais controversa no universo das cerca de quatro mil pessoas que a este movimento já aderiram (como se comprovou num Inquérito entretanto realizado).
Lembro isto apenas para justificar a minha aceitação do convite do António Telmo. Ainda que essa aceitação tivesse – tenha – uma outra e maior razão: ao aceitar escrever um texto a favor do princípio do Acordo Ortográfico, faço-o em homenagem ao espírito de liberdade que sempre animou a Filosofia Portuguesa. E que, por isso, habita também, sem qualquer surpresa para mim, nestes “Cadernos”.

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«SINGULARIDADES»: OS POEMAS, 2

O Som e o Dom


Eduardo Aroso


Vigiar o verbo cumprindo o ritual,
Terra e céu oficiantes em comunhão:
Alta é a prece, pronúncia de Portugal,
Espada feita arado de outra visão.

*

Retomar a esperança em riste de Viriato
- A liça que é a nossa só existe pelo ser.
Algures sopra de novo uma aragem doce
Sobre as floridas trepadeiras franciscanas
E as crianças, bússolas do destino mais belo!
Cuidar das letras e das rosas plantadas,
Dessas orações fortalezas e castelos
Mais altos que o gume das espadas.

*

O m ondulando, moldado ao mar,
Murmúrio e mito, marés do palato.
Vogais e consoantes brisas a cantar
Sobre as águas, flor do som sem hiato.
Suspensa se torna a quem escuta
A cadência vital da livre respiração.
De súbito o sentido no seio do ser
E em saudade-silêncio soa o s bastião!

4-4-2010

sábado, 19 de junho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 64





Sensibilidade artificial
Cynthia Guimarães Taveira

Há agora uma nova mania, herdada, provavelmente, do imaginário da Ficção Científica, da chamada casa inteligente substituindo as chamadas casas assombradas. Se as casas assombradas possuíam vida própria, animadas pelas suas memórias e fantasmas, estas novas casas possuem igualmente uma espécie de vida própria, animadas por memórias induzidas e fantasmas sem problemas emocionais: até os fantasmas se transformaram em robôs computorizados, automatizados nas suas decisões.
Gilbert Durand, nas suas “Estruturas Antropológicas do Imaginário”, ensina-nos a ideia, na linha de Bachelard e de Jung, de que as casas podem ser vistas como o próprio reflexo do homem: a sua porta de entrada, os seus corredores e voltas, as suas caves e os seus sótãos seriam afinal a imagem do próprio corpo humano desde a base à cabeça, culminando na chaminé (o alto da cabeça) por onde sai o fumo etéreo em direcção ao céu.
Quando entro na casa de alguém, bem lá no fundo penso que procuro, pela imagem que me é dada, mais do que o corpo da pessoa: a sua alma e o seu espírito. Assim, a casa, sob o ponto de vista simbólico, deixa de estar tão hierarquizada, numa pirâmide interpretativa, para passar a ser bem mais complexa. Ela, de algum modo, transmite essa mistura emocional que resulta da inteligência e da sensibilidade como resultado das vivências. A casa torna-se pois um labirinto de cheiros, memórias, fantasmas pessoais, modos de vida, interesses intelectuais, amores, etc. Ela é a entrada no Outro e num universo totalmente novo a descobrir.
Estas novas casas inteligentes correspondem a uma ideologia totalitária. A “ordem” e o “comando” são a sua essência. Os livros estão ausentes ou enfiados num computador, escondidos numa espécie de index inconsciente, aliás estes novos e-books não são de todo livros, não são exuberantes e companheiros, são fantasmas de livros, sopros digitais, práticos e desfigurados. A figura central da casa já não é a própria casa, é o “senhor” da casa. É ele que ordena e que comanda toda a acção: piscando os olhos fecha os estores, estalando os dedos fecha portas e a sua casa, que deveria ser um reflexo do seu próprio interior, passa, assim, a estar absolutamente dominada numa austeridade espartana sem espaço para o imprevisto ou para o sonho. A casa só vive, não porque tenha a sua própria Graça, mas porque existe a vontade do “senhor” e, em última análise, o senhor vive na absoluta dependência da tecnologia. Sem ela, a casa apaga-se, torna-se num emaranhado de fios inúteis. Ela reflecte um auto-controlo absolutista do próprio interior do “senhor”: a variedade do pensamento dá lugar ao acto de dar uma ordem, e logo à inacção, o colorido do sentimento é substituído pelo rigor da causa e efeito absolutamente programados e logo dá lugar à ausência de espírito (se ele for visto como algo absolutamente imprevisível, soprando quando quer…), o movimento ondulado deixa de existir, as rectas monótonas e monocórdicas substituem o idioma da curva. É estranhamente uma casa contra-iniciática.
Esta hiper higiene mental que se reflecte sobretudo na cozinha, onde a existência duma couve portuguesa, com as suas curvas, os seus caules desproporcionais e as suas folhas esmagadoramente assimétricas em cima de uma daquelas bancadas (que mais parecem placas de gelo) se torna absolutamente disfuncional, conduz, inevitavelmente a um distanciamento interior entre o homem e a natureza. O preço é a própria morte: pois se a couve portuguesa não sobrevive em termos estéticos dentro de tal paisagem, o homem e as suas cicatrizes, os seus sonhos desconexos e os seus fantasmas imperfeitos também não, ou sobrevive apenas como um adereço cuja cor não se enquadra no resto. Para caber naquela casa o homem tem de se esvaziar, perder a cor, desalmar-se e estampar-se ao comprido nessa vivência de uma falsa perfeição. A única possibilidade de sobrevivência é humanizar a casa e isso, estranhamente, é trazer a natureza para dentro da dela: seus livros de papel das árvores, suas compras na praça redonda e fértil, suas flores oferecidas em dias felizes, suas camisolas de lã com borbotos temporais, suas pantufas de criança com ursos na ponta, suas sedas tecidas por bichos, sua música cantada na alma e, assim feito, a “ordem” e o “comando” vão ficando cada vez mais secundários, até ao ponto de nada importarem face ao livro que se tem nas mãos, no qual se mexe e que mexe connosco.
A páginas tantas, no livro “O símbolo perdido” de Dan Brown, é transmitida a ideia de que a Bíblia reproduz, de alguma forma, o cérebro humano, a sua forma de funcionar (uma tentativa, embora camuflada, de sistematizar a ordem nascida de um caos aparente). Não é necessário ir tão longe, a casa cumpre esse papel e ainda lhe acrescenta os cheiros e as lágrimas. A sistematização da ordem já é reduzi-la a parte de si. A casa é parte da ordem mas não é a ordem. A recusa do caos é uma tentativa de eliminar a própria ordem, uma vez que esta só nasce do caos (princípio hermético milenar). Esta casa inteligente é afinal de uma estupidez profunda que só pode vir do futuro porque no passado não há exemplo de tamanha ignorância que se lhe compare.
Neste momento nasce, na varanda da casa inteligente e de sensibilidade artificial, uma erva daninha, por entre as frestas do mármore vindo de uma pedreira famosa. É daninha porque é caótica, abençoada seja: há-de ser ela a nossa salvação.

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 5

Linguagem e civilização no pensamento de Silvestre Pinheiro Ferreira

Charlatanismo e barbaridade no império das homonímias
versus substancialidade unívoca


Rodrigo Sobral Cunha


Notícia
Silvestre Pinheiro Ferreira nasceu em Lisboa no dia de São Silvestre a 31 de Dezembro de 1769 e aos catorze anos entrou para a Congregação do Oratório para fazer o Curso de Humanidades, que em nove anos percorria o conhecimento de todas as coisas, isto é, as respeitantes ao homem, ao mundo e a Deus e que o nosso filósofo haveria de conglobar na palavra Universo. Considerando a língua grega “o mais glorioso momento da perfeição do Espírito humano”, guiá-lo-ia a inspiração judaico-cristã, também leibniziana, de uma língua universal capaz de harmonizar os homens de todas as nações.
Terminava então no Ocidente o ciclo do clero e principiara a idade em que aparece a filosofia como experiência de liberdade enquanto reflexão sobre o Universo: em Silvestre Pinheiro Ferreira acharia assim a razão atlântica luso-brasileira o primeiro filósofo moderno e o iniciador do ciclo intelectual que sucedeu ao que teve no Padre António Vieira o momento mais significativo.
Na Alemanha, relacionou-se com os centros do saber e do poder ao longo de quase uma década, contactando até finais de 1808 com políticos, magistrados, académicos, artistas e particularmente com personalidades como Goethe, Herder, Fichte, Schelling, Karsten e Werner.
Coube-lhe o acto heróico de avisar o governo português dos planos de Napoleão para a Península Ibérica, conhecendo a perseguição pessoal do imperador dos franceses.
No Brasil, traduziu as Categorias de Aristóteles – correspondentes à ontologia e à epistemologia do filósofo lisbonense – para sistematização das Prelecções filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a estética, a diceósina e a cosmologia (uma das primeiras obras editadas no Brasil pela Imprensa Régia a partir de 1813 e até 1820), achando no sistema categorial aristotélico “tudo quanto as luzes da moderna Filosofia talvez presumiriam ter descoberto, se as obras imortais daquele insigne Luminar da Grécia não estivessem, há tantos séculos, abertas à meditação e ensino do Universo”. Química, mecânica, cristalografia, botânica, zoologia, físico-matemáticas, termodinâmica, astronomia, história, etnografia, linguística, psicologia, pedagogia, comércio, direito, medicina – cumulativamente procurou Silvestre Pinheiro Ferreira adunar os saberes modernos aos antigos saberes segundo a taxinomia aristotélica, pelo menos, conforme veio a escrever, “em que nada falte do que a nenhum homem de uma educação liberal, é lícito ignorar”. Tanto as ciências dos reinos físicos e civis, como as ciências do reino intelectual (consoante as expressões do filósofo) são, com efeito, articuladas por ele – segundo as três categorias centrais da substância, da qualidade e da relação – em ordem à formação política, cósmica e espiritual do ser humano. Pela classificação das palavras segundo as dez categorias aristotélicas e mediante uma semiótica numérica, chega-se à gramática filosófica universal que há-de facultar a harmonização dos idiomas das diferentes nações na ecúmena do reino intelectual.
Decorrente de uma filosofia relacional, a noção silvestrina de ciência, pelo equilíbrio pentagonal de factos, nomenclatura, sistema, teoria e método, pela amplitude de conteúdos e horizontes, pelo conceito axial da ligação de todas as coisas no Universo, considera o conhecimento num grau de perfectibilidade que excede a compreensão moderna do mundo e coloca a inteligência perante a grandeza de um pensamento.

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sexta-feira, 18 de junho de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 41

António Carlos Carvalho

Lamento muito mas não posso alinhar no coro angélico que pretende canonizar José Saramago, agora que morreu lá em Lanzarote onde se tinha auto-exilado. Sei que é uma coisa típica portuguesa: sempre que alguém morre por cá passa automaticamente a ser uma excelente pessoa, com lugar garantido no Céu.
Já tinha acontecido o mesmo com Álvaro Cunhal (que pretendeu transformar Portugal num satélite do Sol soviético) e agora repete-se com outro camarada.
E se falo de Cunhal agora é também porque Saramago teve -- convém lembrar -- comportamentos estalinistas públicos:
- primeiro em 1975, quando fez parte da direcção do «Diário de Notícias» e «saneou» (expressão característica dessa época sinistra) 24 jornalistas desse mesmo jornal, onde fora colocado para actuar como comissário político -- e nessa altura, eu, que nunca tenho participação política por descrer da mesma, desci à rua e juntei-me à manifestação na Avenida da Liberdade para protestar contra os tais saneamentos;
- depois quando mandou apagar (à boa maneira estalinista) o nome daquela aquem devia tanto -- a escritora Isabel da Nóbrega, uma grande senhora e excelente escritora que lhe ensinara a comer à mesa e lhe abrira portas do mundo literário -- nas dedicatórias dos livros que escrevera no tempo em que viveram juntos e os substituiu, nas reedições, pelo nome da nova mulher, Pilar del Rio, que nem sequer conhecia quando escreveu e publicou «Levantado do Chão», «Memorial do Convento» e outras obras.

Vista de Lanzarote

Aliás, valia a pena analisar a obra de Saramago tendo em vista os livros que escreveu no tempo de Isabel da Nóbrega e os que escreveu depois, no tempo de Pilar del Rio. Só para perceber as diferenças e tirar as necessárias conclusões…
E já agora convém igualmente lembrar esses livros lamentáveis deste último período, «O Evangelho segundo Jesus Cristo» e «Caim», iniciativas de marketing para chamar a atenção, através do escândalo provocado, sobre a própria obra. Certamente foi Pilar del Rio que lhe forneceu os temas e os materiais para tais iniciativas. Nada melhor do que um escândalo ou uma polémica para «dar vida» às vendas nas livrarias.
E a manobra resultou, como sabemos. O Homem é como uma árvore, e, tal como a árvore, reconhece-se pelos frutos. Não se pode separar o Homem e a obra como se fossem os compartimentos estanques de um submarino.
Na nossa avaliação de um escritor, creio nisso absolutamente, tem sempre de entrar em linha de conta o ser humano que ele é, ou foi, e o que ele fez do dom que recebeu de Deus. E claro que, para além desta poeira dos dias de hoje, o que resta, e permanecerá, é o Juízo Final -- e esse não pertence aos homens, mas a Deus. De quem, aliás, Saramago disse e escreveu tudo o que sabemos. E que nos envergonha.

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 4

A Língua Portuguesa: Universalidade e Regionalismos

Romana Valente Pinho


Em 1913, quando Fernando Pessoa ainda nem sequer tinha escrito uma das suas frases mais reconhecidas (“Minha pátria é a língua portuguesa”), António Sérgio escrevia, do Rio Janeiro, para o seu confrade Raul Proença: “A Pátria, para mim, tem um significado exclusivamente humano e ideal: é uma comunidade de língua, de poesia, de história, de costumes, de sentimentos, de vo[nta]des; o meu patriotismo é como o dos Judeus, que não têm esse vínculo da terra. Nascidos ou não em Portugal, como disse nos Golpes de Malho, são para mim verdadeiros portugueses todos os súbditos d’el rei Camões”[1].
Esta suposta universalidade da língua portuguesa esboçada por António Sérgio, no início do século XX, será defendida por muitos outros autores conterrâneos seus, apesar de Fernando Pessoa alcançar, entre todos eles, ainda que tardiamente, uma expressão maior. Ora, a partir do trecho supra citado, a questão que se levanta, naturalmente, é a da natureza dessa mesma universalidade. De que universalidade está, afinal, Sérgio a falar se, sete anos depois, também numa missiva endereçada a esse seu amigo escreve: “O Brasil tem 30 milhões de habitantes, Portugal 6; dentro de pouco o Brasil terá talvez 60, e nós, na metrópole, pouco poderemos aumentar; nestas circunstâncias, recomenda o patriotismo que, se queremos ter império espiritual no mundo, esbatamos quanto possível as separações no instrumento da unidade espiritual da metrópole e suas colónias, dependentes ou independentes; e para isso: a) combater o regionalismo linguístico na literatura, tanto em Portugal como no Brasil, defendendo uma língua geral literária em cada um dos dois países; b) intercambiar as línguas gerais dos dois países, introduzindo em Portugal os vocábulos gerais e literários do Brasil, introduzir no Brasil os vocábulos gerais e literários de Portugal”[2]? Parece-nos que o ensaísta se refere claramente a um “império espiritual no mundo” do qual fazem parte todos os “súbditos d’el rei Camões”. Esse Império é a Língua Portuguesa, viva e escrita, embora limpa de todos e quaisquer regionalismos. É um código universal, que une sobretudo portugueses e brasileiros (apesar de Sérgio aludir às colónias portuguesas, apenas se atém ao Brasil – talvez porque o considere uma futura potência linguística), de cariz estritamente literário. Quem escrever em português, escreverá por meio de um código cristalino, indubitável e não regionalista. Julgamos, todavia, que um pensamento desta natureza acarreta, pelo menos, dois problemas: o primeiro diz respeito ao conceito de universalidade em si. Trata-se de um universal que não engloba o particular; o segundo é concernente à extensão do regionalismo. Não pertence, ao fim e ao cabo, o regional ao universal? Como poderemos afirmar que autores, assumidamente regionalistas, como Mia Couto, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna ou Miguel Torga, por exemplo, não são universais? Melhor dizendo, não são portuguesmente universais?

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[1] SÉRGIO, António. Correspondência para Raul Proença. Organização e introdução de José Carlos González. Lisboa: Biblioteca Nacional, Lisboa, 1987, pp. 77-78.
[2] Ibidem, p. 152.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 3

Babel e a terceira queda


António Carlos Carvalho


Em que língua falou Deus com a primeira humanidade, adâmica? Qual era a língua de «Adam», Caim e Abel? Em que língua é que Deus deu instruções a Noé sobre a construção da Arca e estabeleceu com ele os desígnios da primeira Aliança, depois do Dilúvio? Em que língua Noé abençoou Sem (Shem) e Japhet e amaldiçoou a posteridade de Ham?
Desde o século VII que deparamos com esta busca da língua original, busca essa nascida destas e de outras interrogações -- Umberto Eco dedicou ao tema uma das suas obras, «À procura da língua perfeita» (Presença, 1996), que se deveria, mais apropriadamente, chamar «Depois de Babel» se não fosse esse o título do livro de George Steiner…
Na realidade, é nesse conjunto de livros a que chamamos «Bíblia», sucessão de histórias exemplares, que encontramos o relato essencial: no capítulo 11, em apenas nove enigmáticos versículos, o texto conta-nos que em toda a terra havia uma mesma língua, e aconteceu que, emigrando de um lugar a Oriente, «eles» encontraram um vale em Chinear e aí se instalaram; disseram uns aos outros, façamos tijolos no forno; e o tijolo foi a pedra deles, e o betume a sua argamassa; depois disseram, façamos uma cidade e uma torre que cheguem aos céus, façamos um nome, para que não sejamos disseminados sobre a face de toda a terra; Deus desceu, viu o que os homens faziam, concluiu que o povo era um e todos tinham a mesma linguagem e decidiu confundir a linguagem deles, dispersá-los pela superfície da terra, tendo eles cessado de construir a cidade e a torre; por isso foi chamada Babel porque aí o Senhor confundiu a linguagem de todos os homens.
Propositadamente, não citei nenhuma tradução específica deste texto bíblico, porque todas as suas traduções, deste e dos outros textos bíblicos, só nos deixam «à sua porta» (Raphael Draï). Por um lado, estamos perante um texto realmente enigmático, que só se deixa iluminar pelos comentários da tradição oral, como vamos ver. Por outro lado, «só se pode elucidar o sentido por círculos de interpretação cada vez mais apertados» (R. Draï) e não pela fixação de um texto único, definitivo (coisa, aliás, impossível no Hebraico: o texto bíblico é sempre «aberto») -- precisamos do que Draï chama «um pensamento paciente: saber escutar uma palavra na sua língua própria, respeitando o decurso da sua enunciação e a forma das letras em que ela é transcrita.»
Tratando-se realmente de uma narrativa exemplar, mesmo na sua concisão, e na estranheza da sua colocação no conjunto do livro do Génesis (Bereshit) -- entre a árvore genealógica dos filhos de Noé e a dos descendentes de Sem, mas logo seguida pela entrada em cena de Abraham… --, convém que dela tiremos as lições apropriadas para o nosso tempo: a Bíblia não é um livro bonito para arrumar na prateleira, é uma interpelação constante às nossas vidas, individuais e colectivas, nos dias de hoje.
E os tempos que vivemos são os do triunfo da famosa globalização, uma segunda «babelização» que afecta a nossa língua e a nossa cultura.

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«SINGULARIDADES»: O ALINHAMENTO

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Apresentação [ler aqui]

Autobiografia espiritual
António Telmo

Verão da alma
Isabel Xavier

Ode em prosa pela Língua Portuguesa
Carlos Aurélio

A Língua Portuguesa: universalidade e regionalismos
Romana Valente Pinto

Babel e a terceira queda
António Carlos Carvalho

Palavra de alma
Cynthia Guimarães Taveira

O som e o dom
Eduardo Aroso

A Língua Portuguesa e o Acordo Ortográfico
Renato Epifânio

O espírito do tempo
Joaquim Domingues

A cavalo nas palavras
António Simões

Linguagem e civilização no pensamento de Silvestre Pinheiro Ferreira
Rodrigo Sobral Cunha

A relação médico – doente
Paula Costa

Dois cantos de O Crocodilo, de Saint-Martin
Inácio Balesteros

O Boosco Deleytoso
Elísio Gala

Uma nota a «O Conto de Amaro»
Pedro Sinde

Para uma poética atlântica da casa
Pedro Martins

Os portais do entendimento
Luís Paixão

O quarto e a quinta
Luís Paixão

quarta-feira, 16 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS POEMAS, 1

A cavalo nas palavras

António Simões


Vou cavalgar as palavras
Pra fazer navegações –
Procuro as selas mais raras:
Ir aonde nunca ousaras,
Mais longe do que supões.

Vou procurar as que ainda
Guardam a força primeva –
Nos garantem ida e vinda,
Ou essa viagem infinda
Que ao outro lado nos leva.

Se for preciso inventá-las,
As que tenham bom assento,
Criemos novas palavras,
Pra voar sobre as searas
Sem a ajuda do vento.

Procuremos solidez:
Vogais amplas, consoantes
Como estas que aqui vês –
Som redondo, português,
Pra trotarmos confiantes.

E a galope sobre a folha
Passemos ao próprio ar –
O infinito nos recolha
Quando acabarmos a volta
Cansados de cavalgar.

Quererás tu ir comigo
Nestas viagens secretas
Que há tantos anos prossigo
Sentado no dorso amigo
Das palavras dos poetas?

Temes a navegação,
Os abismos do poemas,
Tens medo de dar-me a mão,
Ir aonde poucos vão
Ver a verdade suprema?

Repara que encontrarás
No fim de cada jornada,
Um mundo d’eterna paz,
Onde se vive e se faz
O que ao amor tanto agrada –

E nada há senão isto:
Um eterno cavalgar –
Plas palavras é que existo,
Vivo, vou, voo, persisto –
São meu cavalo e meu lar.


Do livro em preparação, Poemas Circulares: Moradias e Navegações

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 2

O Boosco Deleytoso
(Uma aproximação ao seu estudo)

Elísio Gala


(...)
O Boosco Deleytoso e a Filosofia Portuguesa
A pátria é uma entidade espiritual cuja manifestação se dá respectivamente: numa filosofia da história moldada por uma causa final; numa filosofia do direito que pela reflexão das relações dos homens entre si e destes com o sagrado propõe o modelo de Justiça; numa filosofia da arte mediadora da relação do Homem com o Cosmos.
Uma pátria sendo o conjunto das gerações – as passadas, as presentes, as futuras – afirma a sua autonomia pelo único modo perdurável de o fazer: pelo primado da filosofia, pela liberdade de pensamento, por pensar Deus acima de tudo, posto que não haja subsistente filosofia sem teologia. Definida assim a Pátria, resta-nos saber se acaso ainda existimos como tal? Ou, formulando a questão de outro modo, ainda existe o povo português, o que se caracteriza pela propriedade do seu pensamento? É que um povo, sem o pensar do seu ser dificilmente poderá dilucidar as condições do seu existir.
Falar de Filosofia Portuguesa poderá nas actuais condições ter os seguintes sentidos: o que nunca existiu (posto que nunca tenhamos tido autonomia pensante); o que já deixou de existir (posto que tenhamos tido autonomia pensante, entretanto perdida); o que existirá (posto que se criem as condições para o exercício e o amor de um autónomo pensar).
Nos nossos dias, assistimos a uma conspiração de dissolução que atinge o homem no seu íntimo, extraindo-o ou distraindo-o de si mesmo, obstaculizando-lhe qualquer vida interior pelas tentaculares solicitações anuladoras de um espaço, tempo e silêncio próprios. Onde fica o sagrado «conhece-te a ti mesmo»? Urge que o Homem se reaproprie, se reconquiste, do interior para o exterior. Contudo, os dissolventes, os obstáculos, as solicitações, atiram o Homem para fora de si: seja para o mais evidente plano da produção e, portanto, da realização do indivíduo no campo do que lhe é exterior (falamos, por exemplo, do trabalho); seja para a subjectiva introspecção, mera espuma das ondas do alto mar que é o Homem, ou, numa linguagem recebida do Boosco, estreito caminho, tão distante do tálamo nupcial.
Podemos enquadrar o Boosco Deleytoso no horizonte da Filosofia Portuguesa? No Boosco há uma crítica implícita ao espírito de sistema, que o mesmo é dizer que o «conhece-te a ti mesmo» próprio da filosofia quer e não quer o espírito sistemático; a Sabedoria é entendida como unidade de saberes e não como uma soma de saberes; o peregrino sente as dores do caminho nos pés, imagem de uma filosofia que é descalça por contacto directo com a realidade. Há no Boosco lirismo e sentido de metafísica, se entendermos por isso que há mais mundo, universo e futuro; há consciência do enigma de que o norte filosófico é o divino oriente pelo qual todos os pontos cardeais são abrangidos; há tensão saudosa; há pensamento filosófico não esgotado em sistema, mas recriado em arte poética; há a revelação tomada como uma viagem e o homem como uma ponte; há a missionologia do testemunho, que mais do que converter pretender dar exemplo; há a altíssima relação da Justiça com a Misericórdia; há o elogio do ócio, essa disponibilidade do espírito, que fora das obrigações, manda que nos preparemos para novas obrigações, entre as quais a Paz, que depende da Justiça, tanto quanto esta depende da Verdade. Tudo isto é Boosco Deleytoso.
O atingimento da Sabedoria, crêmo-lo, e crêmo-lo para melhor o inteligir, dar-se-á com a união da alma do homem ocidental com a alma do homem oriental. Está por fazer a descoberta do novo caminho marítimo para a Índia, essa “Índia nova, que não existe no espaço», em busca de especiarias e incensos supraterrestres. Há que ouvir por isso, os poetas, os amantes, os homens saudosos, os profetas.
O Boosco é Filosofia Portuguesa. Mas ela é mais que o Boosco, é o Mar. Também ele deleitoso e da boa esperança, mas só após o vencimento das tormentas.
Muitos dirão que a Filosofia Portuguesa não tem muito nem pouco de próprio. Serão peremptórios: nada tem de próprio. Diremos: – Óptimo! Está então em condições de realizar o milagre da partilha. Como assim? É que na partilha, não se trata de quem tem muito dar muito, ou de quem tem pouco dar pouco, mas de quem nada tem dar tudo o que é, a sua altíssima pobreza, feita de despojamento. Esse é o carisma da Filosofia Portuguesa. Esse é o modelo do Boosco Deleytoso.

terça-feira, 15 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 1

O espírito do tempo

Joaquim Domingues


(...)
Um tema tão abstruso como o do chamado acordo ortográfico pode, nesta perspectiva, valer como sintoma característico do presente estádio da sociedade portuguesa. Desde logo pelo facto de, não obstante um que outro assomo polémico, a discussão não ter conseguido despertar real interesse público, como se fosse questão de somenos importância. Com efeito, à míngua de convincentes razões filológicas para defender a norma em vigor ou para alterá-la, tem acrescido a ausência de outras motivações suficientemente claras e fortes para gerar um efectivo consenso.

Menos ainda se entende que, em vez de subir de instância, o problema tivesse transitado para o da política partidária, de onde por certo ninguém espera receber luzes esclarecedoras acerca da melhor solução para ele. Afinal, tão insubsistente se revelou a norma ortográfica decretada pelo Estado Novo nos anos quarenta ou a imposta pelo jacobinismo republicano de 1910 como a promovida agora sob o signo socialista. Quem se ufana de ensinar as crianças portuguesas a falar inglês, quem tão pouco preza a nossa língua como se constata nos pronunciamentos, nos documentos ou nos monumentos públicos, que autoridade tem para intervir no primacial factor da identidade portuguesa?

Apenas se confirma o crescente esforço pelo controlo sobre a vida mental, seja qual for a doutrina constitucional ou a obediência ideológica dos agentes da administração pública. A obsessão por legislar sobre as instituições do ensino, da comunicação e da cultura, pondo embargos ao livre voo do espírito e impugnando a normal diversidade, prenuncia a inevitável esclerose da sociedade, se é que não constitui já um sintoma dela. A proliferação das fórmulas, dos regulamentos e dos concursos há-de propagar os seus efeitos perniciosos até que uma geração heróica, agraciada por superior inspiração, ponha termo a este já longo e funesto ciclo.
(...)

domingo, 13 de junho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 63



Celebração
Eduardo Aroso

Vão as águas passando, irmãs gémeas do tempo,
Alheias ao que fica, em serenidade vão.
De tudo o que levam deixam porém assento
Para os dias outros da íntima celebração.

Nelas se ouvem os sinos altos da saudade
Na sonora crista das solares ondulações;
Águas, reflexos do céu da vindoura idade
A dos cantos de Neptuno na pena de Camões.

(Nas margens do Mondego
e à margem das tribunas)

Coimbra, 10-06-2010

quarta-feira, 9 de junho de 2010

OS POETAS LUSÍADAS, 35


Homenagem a António Manuel Couto Viana
24 de Janeiro de 1923 – 8 de Junho de 2010


A SAUDADE DOS DEUSES

Acreditais nos deuses mais humanos
Que têm carne e sangue, em vez de pão e vinho,
E o pâmpano viçoso, em vez do agudo espinho,
Cingindo as lisas frontes de soberanos.

Acreditais nos deuses vingativos
Que vos mancham de lodo a túnica impoluta
E em taças de hidromel vos servem fel, cicuta
– O prémio dos cativos.

Acreditais em vós que sois divinos
Donos das vossas chagas e prazeres.
Trocais a fria sombra dos deveres
Pelas flores, pelos hinos.

Buscais na vossa face a cor e a luz;
No espelho do regato o amor perfeito;
Mas tendes por destino e derradeiro leito
Os braços duma cruz.

António Manuel Couto Viana

– 9 de Junho de 1950 –

terça-feira, 8 de junho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 62

Mais um dia de Camões na Ilha do Desterro
Eduardo Aroso

A Morte de Camões, de Domingos António de Sequeira


«Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,
Senão o que somente mal deseja».
Luís de Camões, Os Lusíadas (Canto IX, estrofe 29)


Alguns pensadores portugueses têm acentuado o tema da Esperança, quer em contexto mariano – tal é o caso de Nossa Senhora da Esperança de Vila Viçosa –, seja numa linha mais filosófica de certa escatologia messiânica que, de algum modo, nos tem tocado como destino. Facilmente associamos o sentido de esperança ao Oriente ou Levante, lugar de onde caminha certeiro o astro-rei, na certeza de iluminar e aquecer toda a Terra. Todavia, uma ideia de esperança de mais alcance é aquela que temos vindo a gerar no lugar onde o sol morre no ocidente, sendo o mar a última sombra que nos mostra. Esperança radical que atravessa a morte, para ir além dela. Dir-se-ia uma esperança de finisterra, ao fim e ao cabo, a esperança do «etéreo paraíso», quando a terra (ou a História em linha recta) acaba para nos devolver ao céu. Camões, descrevendo a Ilha dos Amores, mostra-nos essa inteira possibilidade: a nossa que é também a de todos os habitantes da esfera poderem ser guiados por Vénus; assim o consintam. Lá no fundo das almas e dos tempos espera-se a secreta e impoluta justiça divina «Porque dos feitos grandes, da ousadia/ Forte e famosa, o mundo está guardando/ O prémio lá no fim, bem merecido,/ Com fama grande e nome alto e subido.» Os Lusíadas (Canto IX, estrofe 88).
Hoje, no que resta deste rectângulo litoral ou «nesga de terra», como escreveu Torga, e, dizemos nós, que passou de jardim à beira-mar plantado a jardim amarfanhado, é bem urgente a esperança, todavia acompanhada da acção possível. Acção possível na hora possível, pois, quantas vezes, a melhor ousadia é a inacção que, em alternância, desencadeia maior força no mundo do pensamento. Mas seja como for, esperança que nos saiba como a bica de água fresca à beira da estrada, bem entendido daquela por onde ainda vamos a pé e nos podemos sentar à sombra de uma árvore.
A três dias de mais um 10 de Junho, comemorado nesta Ilha do Desterro, apenas ligada à Europa por um istmo não se sabe de quê, é-nos difícil fazer um exercício de raciocínio tentando adivinhar qual será o discurso dos oradores oficiais na solenidade do Dia, que será um dia de prémios que - é suposto - deverão dignificar a República, nestes 100 anos de idade, mas que, não sendo por causa da idade, hoje é uma república “sem rei nem roque”. Serão os oradores oficiais os formados nas “Novas Oportunidades”, ou serão os descendentes ou colaterais dos velhos conhecidos que dizem: «Uma Pátria não deve nada a ninguém em particular. Ela deve tudo a todos. Nem a Camões, Portugal, que ele encadernou para a eternidade, devia alguma coisa.» (…) «Já se viu um poema “épico” assim tão triste, tão heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente sinfonia e requiem?» (Eduardo Lourenço, 1978)? Parece assim ter feito escola esta doutrina, pois hoje está à vista que Portugal deve tanto aos que se esforçam como aos malfeitores! Nas últimas décadas, os altos responsáveis pela política e pela cultura de Portugal concluíram, eles sim, os últimos compassos do nosso requiem! Mas ainda há Esperança de profundis à guisa do poeta de Mensagem: «O inteiro mar, ou a orla vã desfeita -/ O todo, ou o seu nada.» Cabe-nos assumi-la, oculta ou expressamente, na mesma vestimenta da fé e, quando se tornar necessário, o ímpeto do guerreiro ou soldado de luz. Porque Camões também o foi e símbolo é.
Portugal, 7 de Junho de 2010, dia da Graça de Deus e da sempre imanência do Espírito Santo

sexta-feira, 4 de junho de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 40

António Carlos Carvalho

A propósito da petição referida aqui, lembrei-me de ter visitado, há uns 20 anos, o cemitério dos judeus portugueses em Amesterdão (Ouderkerk, nos arredores), onde me comovi vendo, num sector especial do mesmo, uma série de pequenas placas com nomes portugueses, representando alguns dos muitos que morreram em campos de concentração -- e então perguntei-me: porque é que ninguém nos falou disto? Porque é que insistimos no papel «neutral» do nosso país durante a Segunda Guerra, quando afinal houve descendentes de portugueses que foram vítimas desse horror?

Ouderkerk: cemitério dos judeus portugueses em Amesterdão

Entre eles Emmanuel Querido, editor, nascido em Amesterdão, a 6 de Agosto de 1871, e que viria a ser assassinado no campo de Sobibor, em 23 de Julho de 1943, juntamente com a sua mulher.

Irmão do escritor Israel Querido, Emmanuel Querido fundou em 1898 uma livraria que se tornou rapidamente um importante ponto de encontro dos intelectuais holandeses em Amesterdão. Depois, em 1915, fundou a sua própria editora, cujos primeiros sucessos foram as traduções de «L’enfer» e «Lefeu», romances pacifistas de Henri Barbusse. Ele próprio escreveu e publicou um romance autobiográfico, «A Linhagem dos Santeljanos», sob o pseudónimo de Joost Mendes.

Em 1934, criou uma colecção de livros de bolso -- um ano antes da célebre colecção da Penguin.

Nesse mesmo ano, perante a crescente vaga de escritores alemães e austríacos exilados, que fugiam da Alemanha de Hitler, Querido decide criar a Querido Verlag, para publicar as obras desses exilados que agora não tinham editor alemão. E assim acolheu escritores como Alfred Döblin, Heinrich e Klaus Mann, Anna Seghers, Arnold Zweig, Joseph Roth, entre outros.

David Bronsen descreveu-o nestes termos: «um homem de cabelos brancos, de pequena estatura e de um temperamento forte, dotado de um certo sentido de humor, um pouco paternalista, com olhos azuis de capitão de navio num rosto burilado radiante de inteligência».
Só que a Holanda acabou por ser ocupada e a editora encerrada e os seus livros destruidos. Emannuel Querido ainda fugiu para o interior do país, mas a Gestapo apanhou-o em 1943.
A editora renasceu das cinzas e ainda hoje existe; o editor é que desapareceu realmente em cinzas, como tantos outros portugueses que o Governo português não quis salvar.
Não devemos esquecer nada disto -- para que coisas destas não se repitam, e porque pesam sobre nós séculos de vergonha.

NO PRÓXIMO DIA 8, ÀS 18:00, EM ÉVORA: APRESENTAÇÃO DA NOVA EDIÇÃO DA «TEORIA DO SER E DA VERDADE»

Marinho. Decorrerá no próximo dia 8 de Junho, pelas 18:00h, na Sala das Bellas Artes da Biblioteca Geral da Universidade de Évora (BGUE), a sessão de apresentação da Teoria do Ser e da Verdade, Tomo I do Volume IX das "Obras de José Marinho" em curso de publicação pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda. A apresentação do livro está a cargo do Professor Doutor Manuel Ferreira Patrício e na ocasião intervirá igualmente o Prof. Doutor Jorge Croce Rivera, editor literário das "Obras".
Paralelamente ao evento, estará patente no corredor da BGUE uma Exposição Biobibliográfica evocativa da percurso de José Marinho (1904-75).

quinta-feira, 3 de junho de 2010

PARA LER

Petição pela restituição da nacionalidade portuguesa aos judeus sefarditas portugueses

Baruch Lopes de Leão Laguna
Judaísmo. Os judeus sefarditas foram expulsos de Portugal ou forçados ao exílio a partir das perseguições de finais do século XV, continuando a considerar-se e a referir-se a si mesmos como “judeus portugueses” ou “judeus da Nação portuguesa”.
Presentemente, constituem um grupo pequeno, tendo alguns membros cidadania israelita, sendo que a maioria vive no Brasil na maior parte do tempo e correspondendo quase todos a indivíduos com educação de nível superior, em geral profissionais liberais e que, na maioria, falam mais do que o português.
Há muitos judeus sefarditas que aspiram a recuperar a nacionalidade portuguesa, de que se encontram privados mercê da expulsão e/ou exílio forçado dos seus antepassados.
A Espanha – que fez expulsões similares às ocorridas em Portugal – já adoptou legislação, desde 1982, que permite a naturalização dos judeus sefarditas de origem espanhola ao fim de dois anos de residência em Espanha, à semelhança da norma aplicável a um conjunto limitidado de origens específicas. E, em 2008, adoptou a possibilidade por “carta de natureza” e atribuiu a nacionalidade espanhola, independentemente de residência, a judeus sefarditas, mercê unicamente de um conjunto de indicadores objectivos (apelidos, idioma familiar) e competente certificação pelo rabino da comunidade.
Os judeus sefarditas interessados em recuperar a nacionalidade portuguesa sublinham que outros países, como a Grécia, já adoptaram legislação de reaquisição de nacionalidade por judeus expulsos e seus descendentes e que a própria Alemanha o fez, face à tragédia mais recente.
Portugal é dos poucos países, senão o único, que não dispõe de normas para reaquisição de nacionalidade pelos descendentes de judeus expulsos.
Assim sendo, nós, cidadãos portugueses, através dos signatários desta petição, vimos solicitar perante os Poderes constituídos da República Portuguesa, a restituição da nacionalidade portuguesa aos judeus sefarditas portugueses.
O pintor Baruch Lopes de Leão Laguna (na imagem acima publicada), judeu de ascendência portuguesa, considerado um dos mais representativos retratistas dos finais do século XIX e da primeira metade do século XX, foi assassinado pelos nazis em Auschwitz, a 19 de Novembro de 1943. A nacionalidade portuguesa podia ter-lhe salvo a vida.

A LER: Um pintor “português” morto em Auschwitz / Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto


(fonte: Rua da Judiaria)