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sábado, 19 de junho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 64





Sensibilidade artificial
Cynthia Guimarães Taveira

Há agora uma nova mania, herdada, provavelmente, do imaginário da Ficção Científica, da chamada casa inteligente substituindo as chamadas casas assombradas. Se as casas assombradas possuíam vida própria, animadas pelas suas memórias e fantasmas, estas novas casas possuem igualmente uma espécie de vida própria, animadas por memórias induzidas e fantasmas sem problemas emocionais: até os fantasmas se transformaram em robôs computorizados, automatizados nas suas decisões.
Gilbert Durand, nas suas “Estruturas Antropológicas do Imaginário”, ensina-nos a ideia, na linha de Bachelard e de Jung, de que as casas podem ser vistas como o próprio reflexo do homem: a sua porta de entrada, os seus corredores e voltas, as suas caves e os seus sótãos seriam afinal a imagem do próprio corpo humano desde a base à cabeça, culminando na chaminé (o alto da cabeça) por onde sai o fumo etéreo em direcção ao céu.
Quando entro na casa de alguém, bem lá no fundo penso que procuro, pela imagem que me é dada, mais do que o corpo da pessoa: a sua alma e o seu espírito. Assim, a casa, sob o ponto de vista simbólico, deixa de estar tão hierarquizada, numa pirâmide interpretativa, para passar a ser bem mais complexa. Ela, de algum modo, transmite essa mistura emocional que resulta da inteligência e da sensibilidade como resultado das vivências. A casa torna-se pois um labirinto de cheiros, memórias, fantasmas pessoais, modos de vida, interesses intelectuais, amores, etc. Ela é a entrada no Outro e num universo totalmente novo a descobrir.
Estas novas casas inteligentes correspondem a uma ideologia totalitária. A “ordem” e o “comando” são a sua essência. Os livros estão ausentes ou enfiados num computador, escondidos numa espécie de index inconsciente, aliás estes novos e-books não são de todo livros, não são exuberantes e companheiros, são fantasmas de livros, sopros digitais, práticos e desfigurados. A figura central da casa já não é a própria casa, é o “senhor” da casa. É ele que ordena e que comanda toda a acção: piscando os olhos fecha os estores, estalando os dedos fecha portas e a sua casa, que deveria ser um reflexo do seu próprio interior, passa, assim, a estar absolutamente dominada numa austeridade espartana sem espaço para o imprevisto ou para o sonho. A casa só vive, não porque tenha a sua própria Graça, mas porque existe a vontade do “senhor” e, em última análise, o senhor vive na absoluta dependência da tecnologia. Sem ela, a casa apaga-se, torna-se num emaranhado de fios inúteis. Ela reflecte um auto-controlo absolutista do próprio interior do “senhor”: a variedade do pensamento dá lugar ao acto de dar uma ordem, e logo à inacção, o colorido do sentimento é substituído pelo rigor da causa e efeito absolutamente programados e logo dá lugar à ausência de espírito (se ele for visto como algo absolutamente imprevisível, soprando quando quer…), o movimento ondulado deixa de existir, as rectas monótonas e monocórdicas substituem o idioma da curva. É estranhamente uma casa contra-iniciática.
Esta hiper higiene mental que se reflecte sobretudo na cozinha, onde a existência duma couve portuguesa, com as suas curvas, os seus caules desproporcionais e as suas folhas esmagadoramente assimétricas em cima de uma daquelas bancadas (que mais parecem placas de gelo) se torna absolutamente disfuncional, conduz, inevitavelmente a um distanciamento interior entre o homem e a natureza. O preço é a própria morte: pois se a couve portuguesa não sobrevive em termos estéticos dentro de tal paisagem, o homem e as suas cicatrizes, os seus sonhos desconexos e os seus fantasmas imperfeitos também não, ou sobrevive apenas como um adereço cuja cor não se enquadra no resto. Para caber naquela casa o homem tem de se esvaziar, perder a cor, desalmar-se e estampar-se ao comprido nessa vivência de uma falsa perfeição. A única possibilidade de sobrevivência é humanizar a casa e isso, estranhamente, é trazer a natureza para dentro da dela: seus livros de papel das árvores, suas compras na praça redonda e fértil, suas flores oferecidas em dias felizes, suas camisolas de lã com borbotos temporais, suas pantufas de criança com ursos na ponta, suas sedas tecidas por bichos, sua música cantada na alma e, assim feito, a “ordem” e o “comando” vão ficando cada vez mais secundários, até ao ponto de nada importarem face ao livro que se tem nas mãos, no qual se mexe e que mexe connosco.
A páginas tantas, no livro “O símbolo perdido” de Dan Brown, é transmitida a ideia de que a Bíblia reproduz, de alguma forma, o cérebro humano, a sua forma de funcionar (uma tentativa, embora camuflada, de sistematizar a ordem nascida de um caos aparente). Não é necessário ir tão longe, a casa cumpre esse papel e ainda lhe acrescenta os cheiros e as lágrimas. A sistematização da ordem já é reduzi-la a parte de si. A casa é parte da ordem mas não é a ordem. A recusa do caos é uma tentativa de eliminar a própria ordem, uma vez que esta só nasce do caos (princípio hermético milenar). Esta casa inteligente é afinal de uma estupidez profunda que só pode vir do futuro porque no passado não há exemplo de tamanha ignorância que se lhe compare.
Neste momento nasce, na varanda da casa inteligente e de sensibilidade artificial, uma erva daninha, por entre as frestas do mármore vindo de uma pedreira famosa. É daninha porque é caótica, abençoada seja: há-de ser ela a nossa salvação.

3 comentários:

  1. É dos melhores textos que já li teus. Só um "mas" (aquele de sempre). Tenho livros nos locais mais improváveis, tal como toda a gente que gosta de lê-los. Porque não num computador também?
    Privilégio d'alguns.

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  2. É claro que os livros se podem ler em qualquer suporte, mas os de papel ou papiro ou pedra são mais bonitos, mais humanos, mais próximos. Não sou fundamentalista se o fosse nem num blogue escrevia. Obrigada Previlégio d'alguns, o teu texto também está muito bom.

    Cynthia

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  3. «(...)Neste momento nasce, na varanda da casa inteligente e de sensibilidade artificial, uma erva daninha, por entre as frestas do mármore vindo de uma pedreira famosa. É daninha porque é caótica, abençoada seja: há-de ser ela a nossa salvação».

    Belo e verdadeiro este final do seu artigo, o melhor aroma que poderia haver em todo este florir de palavras e ideias.Digno de antologia.

    Eduardo Aroso

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