(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



sexta-feira, 29 de abril de 2011

IDEIAS...














A Pedra, o Mar, e o FMI

Cynthia Guimarães Taveira

- Na Idade Média, Portugal, já tinha um pequeno problema.

Foi assim que começou a aula de História.

- O problema estava na transformação da matéria prima. Nós tosquiávamos as ovelhas. Depois, em vez de fazermos camisolas com a lã, enviámo-la para os Países Baixos, onde era finalmente tricotada. E depois nós comprávamos as camisolas, a um preço muito superior àquele pelo qual havíamos vendido a lã.

Não me esqueci desta aula de História, e, com o tempo, fui constatando que havia qualquer coisa nos portugueses que os levava a uma aversão natural em fazer o trabalho dentro das suas fronteiras limitadas em que viviam.

Somos grandes construtores e, estranhamente, a nossa História é feita de empreendedorismo. Por cá, abríamos fendas na terra, e dela, retirávamos as pedras. Com grande obra e engenho colocávamos essas pedras em barcos e íamos construir para longe: para o Japão, para o ponto mais obscuro do Brasil, para as roças africanas. Construímos Fortes, Igrejas, ou a simples e singela calçada portuguesa.

Não somos como os gregos, embalados pelo calor do Mediterrâneo, embalados pelo sonho platónico de evitar o trabalho manual como coisa menor, ou qualquer outro trabalho, hoje.

Quando se fazem obras num ponto qualquer da cidade é vulgar ver homens parados, por vezes durante horas, espreitando a obra, observando-a com uma atenção que toca a ternura. É igual a sua contemplação àquela outra, também muito lusitana, de quando, sentados no alto de uma rocha, ou num miradouro, os portugueses contemplam o mar. Por vezes, durante horas também. Esta atenção faz-me pensar na grande ligação que existe no nosso inconsciente (ou numa outra forma de consciência, como diria René Guénon) entre o português, a pedra e o mar. Somos feitos de granito e de água.

Esta loucura da construção conduziu à existência de cidades pegadas umas às outras, aos estádios de futebol em excesso, a auto-estradas que andam às voltas, desertas, a rotundas nos lugares mais improváveis, a obras de remodelação sistemáticas. Há lojas em Lisboa que, devido à crise, mudam de mão quase de ano a ano, e de cada vez que mudam de mão, sofrem obras. Parece que esse impulso de construir lá fora, à falta de Império, passou a ter lugar cá dentro, mas de uma forma anárquica, gananciosa e de má qualidade no planeamento e na construção. O impulso está lá, só que distorcido por uma cultura do lucro fácil e do esquecimento da herança dos antigos pedreiros e mestres construtores.

O que havia, noutros tempos, e que unia, de alguma maneira, os homens, era um projecto comum: um sonho estranho onde o mar era a grande via para um mundo que naturalmente nos esperava. Hoje o mundo deixou de nos esperar, as grandes potências desconhecem-nos, as ex-colónias não nos desejam de volta. Sem missão ficámos perdidos dentro de nós. No entanto, esse estranho facto de fazer obra “lá fora”, permanece: artistas, desportistas, filósofos, cientistas, académicos, ganham um novo brilho fora da nossa terra; aliás, em proporção populacional, esta país parece gerar a qualidade em grande número: desde que se cumpram fora de Portugal.

O FMI chegou. Mas será que nos conhece? As fórmulas aplicadas são sempre iguais e monótonas para todos os países. Mas de que fórmula necessitamos nós? Por um lado parecemos ser incapazes de produzir qualquer coisa de jeito, cá dentro, facto que dura há séculos; por outro, lá fora, sabemos e pudemos fazer tudo.

O FMI devia ter em atenção apenas estes factos: a pedra, o mar, a viagem, o destino, a vontade e o sonho. São estas as palavras que pulsam dentro da alma lusitana. A economia depende destas palavras, mas não só a economia, também o equilíbrio, a força, o amor, a dedicação, a vida, e num último grau, a felicidade sentida quando os sonhos são cumpridos.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

CONGEMINAÇÕES NO SÁBADO...















Congeminações - I Ciclo de estudos em homenagem a António Telmo, subordinado ao tema "Ortodoxia e livre-pensamento" continua no próximo sábado, 30, pelas 15 horas, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, estendendo-se até Novembro.

O programa de sábado é o seguinte:

- Lançamento do livro Viagem a Granada (Al-Barzakh), 2.º volume das Obras Completas de António Telmo, apresentado por Luís Paixão

- Conferência: António Telmo, Ibn ‘Arabi e o sufismo, por Mário Nunes Vieira

- Conferência: António Telmo, o pomo persa e o oitavo clima, por Pedro Sinde

quarta-feira, 27 de abril de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 132


A Cura (uma história verídica)

Cynthia Guimarães Taveira

Num acto de desespero enfrentara a lista telefónica das Páginas Amarelas. Aquela situação não poderia continuar, tinha de resolver os seus problemas de uma vez por todas. Com o coração a bater mais do que o normal, fechou os olhos, esticou o dedo indicador, e percorreu com ele a página que tinha à frente, de cima para baixo e de baixo para cima. Parou ligeiramente a meio. Aí estava o que procurava: uma psicóloga escolhida ao acaso, num jogo entre a falta de visão e o tacto, arbitrado pela coincidência.

Olhou para a morada: não ficava muito longe de sua casa. Telefonou, marcou consulta e respirou fundo. Tinha ganho coragem. Pela primeira vez ia falar com alguém sobre os seus problemas, alguém que tinha estudado e praticado na resolução de dúvidas, hipóteses, questões, medos. Tudo iria correr bem, pensou de si para si.

Chegou enfim o dia. Pelo caminho pensava no que iria dizer. Pensava ser sucinto, não se alongar muito com pormenores: diria que a sua relação com a mãe era um pouco distorcida, causadora de sofrimento e que a sua relação com o irmão, estudante de psicologia, estava a tornar-se demasiado irracional para seu gosto: à medida que avançava no seu Curso, aumentava o número de tareias que levava dele sem motivo lógico aparente. A sua tristeza residia na família. A sua angústia residia no facto de não saber lidar com eles: a distorção da mãe, as tareias do irmão.

Entrou. Sentou-se. Uma senhora magra, de cabelo escuro, perguntou-lhe, no final do preenchimento de uma longa ficha: -- Então. O que se passa?

Respondeu com palavras breves, procurando esconder a mágoa. Queria saber, no fundo, porque não conseguia lidar com os outros e porque é que um sentimento de culpa do tamanho do céu o acompanhava desde o nascer do dia ao seu término.

A senhora psicóloga sorriu. Um sorriso calmo que o fez sentir bem. Depois disse:

- Em relação à sua mãe, vai ter de a pôr num lar, mais cedo ou mais tarde. Mas diga-me, o que faz?

- Por enquanto estudo na Faculdade.

Disse-lhe o Curso, o nome da Faculdade e eis que a doutora se abre, agitada, pergunta-lhe o nome dos professores. Pacientemente, ele lhe vai respondendo, ao que ela, com alguma emoção na voz, reage a alguns nomes, dizendo que os conhece, de onde os conhece, o que fizeram juntos.

A senhora não se calava, começando a dizer que estava ainda a resolver alguns problemas.

- Alguns muito antigos, sabe -. disse ela, fazendo uma cara misteriosa. - Estudei em Évora, tirei lá um mestrado, mas não me entendi com aquela terra, nem com os professores, nem com o reitor da universidade. Havia algo ali que não entendia e que não se dava comigo, sabe?

Acenava, compreensivo, com a cabeça. Procurava dentro de si algumas palavras que a sossegassem e eis que por fim, a psicóloga agitada lança as últimas verificações:

- Sabe, vim a descobrir porque é que não me sentia bem naquela cidade. Eu fui lá queimada por bruxaria no tempo da Inquisição, numa outra vida. E ainda não resolvi essa questão.

Engoliu em seco, fez um sorriso tímido e meio receoso e respondeu:

- Com o tempo, talvez com o tempo isso passe.

Saiu do consultório e respirou o ar fresco da Primavera. Sentia a sua cabeça muito mais leve do que quando entrou no consultório. Pensou de si para si que não tinha problema nenhum à vista do que tinha presenciado.

Mas ficaram marcas da consulta: nunca internou a mãe num lar, por ser desumano, ao irmão considera-o patológico e hoje, sempre que conhece um psicólogo ou psicóloga, sente-se extremamente bem. Leve mesmo, diria. Como se não tivesse problema nenhum. Nem angústia, nem culpa, nem dúvidas. Gozava de uma saúde mental perfeita. Estava curado.

PÁSCOA


PÁSCOA

 
A manhã insistindo

Em aromas e juncos verdes de alegria!

Para quê olhar

Os ponteiros neutros do relógio?

Só os ninhos de música sobem e ficam no ar,

Em ritmos certos e luz perfumada.

Hoje o dia

Tem muito mais de vinte e quatro pétalas…!



Viseu, 24-4-2011

Eduardo Aroso

sexta-feira, 22 de abril de 2011

terça-feira, 19 de abril de 2011

ASSIM FALAVA ALMADA...



“A grande aflição das gerações actuais está em que a História as traz metidas exactamente entre o fim de uma idade e o inicio de outra. As gerações actuais encontram-se a braços com dois imediatos a cumprir. Dois imediatos quotidianos: estabelecer uma ligação que não é possível entre ambos mas que acontece na Historia serem contíguos. Em face destes dois imediatos a posição do homem actual é dupla: cumpre com o que está e obedece ao que vem a chegar, não pode deixar de servir o que ficou, mas não lhe sobra nada de todo o seu tempo para o que há-de vir; não pode raptar-se a um fim fatal e inglório de que há-de participar forçosamente quando afinal todas as suas esperanças estão postas na luz nova que já raiou.


Não há espécie de heroísmo em querer contrariar estes dois imediatos: um há-de morrer e o outro há-de nascer. E também não há espécie de heroísmo em querer favorecer qualquer deles: para um é tarde de mais, para outro é demasiado cedo.

O que morre tem direitos adquiridos, o que nasce ainda não tem o hábito desta memória.

Mas é de memória que se trata: esquecer o que está e recordar a novidade que aí vem. Recordar porque é idêntica, novidade porque não há igual. As idades são idênticas e desiguais.

O complicado será dizer à mocidade que exerça a sua memória de preferência no que não assistiu ao que assiste. É complicado que se tenha de dizer à juventude que o imediato que intimamente mais lhe interessa, e que representa a tradição da continuidade humana, é precisamente a memória do mais antigo que há. Nem a mocidade nem a juventude de hoje estão aptas a entender que é este afinal o uso próprio da memória.

Da memória dos factos a responsabilidade é nossa, das gerações; contudo, o pior é quando os factos se desligaram da memória. É este o caso actual da Humanidade: os factos desligaram-se da memória humana. Tem a palavra o “aprendiz de feiticeiro”. (…)

Pode haver factos formidáveis, ideias transcendentais, podem ambos ensoberbar-se a ponto de assombrar a Terra inteira, mas de uns e de outros, embora de todos reze a História, só os da memória humana fazem passo.

Aqui se entendera melhor a existência de dois imediatos, um o das ideias e factos que resistem ao outro que faz passo na História. Há mais de três séculos que começou um dia este equívoco dos dois imediatos e quanto mais tempo vai desde esse dia mais violentas se apresentam as ideias e os factos por elas gerados, porque não há transcendência que lhes valha, nem técnica de organização que os aguente. Este equívoco atravessou toda a Idade chamada Moderna, por isso mesmo ficou no ar. Este equívoco continua hoje, avolumadíssimo pelo tempo, e cai sobre nós, cujo heroísmo consistirá em suportarmos a não ligação de dois imediatos que se acometem e sem possibilidade de luta sequer, um serviço que excede as possibilidade humanas; mas assim mesmo, excedendo as possibilidades humanas, coube-nos a nós também e acrescentado com a respectiva consciência do caso e da sua não solução.

Assim se explica que hoje a avidez de ir é incomparavelmente maior do que a avidez de estar. Já não se sabe fazer uso da memória. Se se deseja ir é para estar, logo, só se deseja estar. Isto é para ficar ou voltar. Voltar ou ficar é para estar. Essa avidez de ir é hoje bem significativa da impossibilidade de estar. É um perene, um vitalício ir sem estar. O Mundo tornou-se um empecilho para nós e nós um empecilho para o Mundo. Estamos vergonhosamente quites.

Mas está prestes a terminar este eclipse da Humanidade por causa dos dois imediatos. A constância do Sol remeterá tudo outra vez para os seus lugares. Deixem a Humanidade ter a sua memória, deixem-na ter só um imediato, o do seu tempo, dêem-lhe inteiro o quotidiano e vereis que ela pode e sabe estar.”


Almada Negreiros, citado por Lima de Freitas em “Almada e o número”, Editora Soctip, 1987, pág. 24

 

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O CAMINHO DO CAMINHO














Um xamã na cidade

Cynthia Guimarães Taveira

Tinha estranhado que tão cedo pudesse ler os livros de Dalila Pereira da Costa e entendê-los da única forma possível: com amor. Lá o mundo era diferente, era o seu mundo, onde visível e invisível se sobrepunham, onde o coração estava no centro dos pensamentos, onde não se estranhava já a total presença do totalmente outro, diferente de nós, separado de nós pelo abismo da materialidade. Lá era possível viajar para outras épocas, e entrar numa espécie de rodopio voador no âmago da essência das coisas. Lá era possível comunicar e entender sem palavras, e ver outra cidade do Porto sobrepor-se sobre esta que se debruça sobre o Douro.

Pertencia à antiga estirpe dos místicos e xamãs e nem precisou de ler romances históricos ou fantásticos. Para si nada desse outro mundo era ficção. A ficção era um intercalar entre dois mundos reais, um compasso de espera da verdade.

E passeava-se na cidade nada reconhecendo quase como do seu mundo: os sacos de plásticos desagradavam-lhe desde a infância pois os achava barulhentos, inestéticos e falsos. As luzes brancas e mortas dos hipermercados faziam-lhe arder e chorar os olhos numa espécie de alergia inexplicável: um alergia natural à civilização, talvez?

Admirava, por vezes, a liberdade que se respirava nos bairros da moda --passava tudo por ele: jovens de cabelos coloridos, piercings pendurados na carne, tatuagens com anjinhos, tigres e dragões, góticos de cabelos escorridos e escuros pendurados em cima de botas de tacões que os colocavam num castelo alto no alto de uma escarpa batida pelo vento da tempestade, rastas, de cabelos presos, sujos, torneados até pareceram lã velha tocando o fundo das costas, encimados por uma boina de croché, normalmente verde, amarela e encarnada, e ainda as pin ups de saias rodadas dos anos 50, com penteados montados e elevados, lábios de batons fortes, às vezes um sinal postiço marcando a cara, ou umas sardas pintadas com lápis na saudade do fogo arruivado, e uma grande tatuagem moderna de flores descendo pelo braço, do ombro até à mão, onde na unha um verniz encarnado com bolinhas brancas fora pintado. Sim, admirava essa espécie de liberdade estética que se respirava no bairro alto da moda, mas sabia do que tinha saudades de facto:

De gente genuína, tão primitiva como ele o era. Em “Urga, um espaço sem fim”, um filme que tinha visto num King escondido dos néons, uma criança na sua tenda nómada, tocava o acordeão: o olhar dela era genuíno, vindo do fundo dos tempos e a sua alegria a tocar era igual ao som que os pássaros fazem de manhã, acompanhando o sol no seu brilhar. Num outro filme, japonês, que falava das quatros estações, um velho mestre ensinava ao discípulo o significado da misericórdia e pintava caracteres com um rabo de um gato branco que genuinamente deixava que tal acontecesse: a cara desse velho japonês era genuína. Alguns africanos que conhecera tinham essa cara genuína, essa expressividade natural, esse rir do insólito com gargalhadas fortes que faziam doer a barriga, e genuinamente sabiam como viver. Mas havia mais nessa genuinidade que reconhecia: um certo ser primitivo, algo que passava pela pulsão inexplicável que se reflectia, sobretudo na arte -- assim como as crianças quando pegam num pincel e fazem misturas de cores inesperadas e revelam um força interior surpreendente no vigor do traço ou do pincel, facto também visível na escrita cursiva japonesa, mas também nalgum folclore, na força dos tambores dos Zés Pereiras, ou nas gaitas de foles que o arrepiavam, no jogo do pau, nas pegas das touradas, nos desenhos dos aborígenes da Austrália. Ser primitivo era ser toda a história e estar ligado a uma raiz, a uma matriz humana que atravessava as eras; a espontaneidade coexistia de algum modo com sociedades que nada pareciam mudar, e essa espontaneidade nada de rebelde tinha: não eram os grafitis estéticos que iriam preencher esse lugar, não eram as calças de ganga rasgadas, as cristas dos punks, os soutiens de fora, as cuecas à mostra com calças descendo pelo rabo que iriam substituir a genuinidade da nudez dos índios, os corpos enfeitados dos tuaregues, nem as danças de discoteca com álcool e ecstasys que iriam substituir as danças africanas, onde os pés tinham o pulsar da terra e os êxtases eram verdadeiros.

Sabia que só o homem genuíno, ainda com a memória dessa matriz, apenas e só ele, poderia conhecer outros mundos, e viajar por dentro de si, como um pássaro livre. Estranhamente, era no mais antigo que residia a verdade do ser. O resto da cidade era apenas um ilusão de liberdade feita de plástico, de moda, de prisões.

E o xamã passeava-se na cidade, sentindo-se solidário com o mundo, com a sua miséria, mas solitário na riqueza que escondia, não sabendo como a transmitir, e sem saber porque nascera assim, desta maneira, em terra do futuro. O xamã sabia que não tinha futuro, mas sabia que não poderia ser de outra maneira.

terça-feira, 12 de abril de 2011

domingo, 10 de abril de 2011

O CONTRA CAMÕES

Cynthia Guimarães Taveira

Acontece … e já ninguém comenta, e já ninguém se indigna como antigamente quando o Salazar imbuído de poder habituou as gentes a já nem estranharem, a já nem se indignarem.

Via o jornal da Sic. A reportagem era sobre o absurdo das novas regras impostas aos donos das esplanadas: a partir de agora as toalhas de mesa, os porta-guardanapos e os chapéus de sol teriam de ter regras e seriam uniformizados segundo o gosto de alguém muito rigoroso da Câmara Municipal de Lisboa.

A reportagem acabava assim: “Tentámos falar com alguns donos de estabelecimentos mas apenas um deles falou porque os outros tiveram medo de represálias”. Assim, com a maior naturalidade do mundo. Rapidamente se passou a outro tema. O medo é dado adquirido neste país. E vejo descendo por uma das sete colinas o Contra Camões envergando um estandarte onde um outro poema se agita e permanece:

Amor é fogo que arde sem se ver; Medo é fogo que arde e se vê;

É ferida que dói e não se sente; É ferida que dói e que se sente;

É um contentamento descontente; É uma resignação descontente;

É dor que desatina sem doer; É dor que desatina a doer;

É um não querer mais que bem querer; É um não querer mais que outro querer;

É solitário andar por entre a gente; É solitário calar por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente; É contentar-se de descontente;

É cuidar que se ganha em se perder; É cuidar que se ganha em se calar;


É querer estar preso por vontade; É querer estar preso sem vontade;

É servir a quem vence, o vencedor; É servir a quem manda, o senhor;

É ter com quem nos mata lealdade. É ter com quem nos mata submissão.


Mas como causar pode seu favor/Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,/Nos corações humanos liberdade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor? Se tão contrário a si é o mesmo Medo

sábado, 9 de abril de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 131


HISTÓRIA TRÁGICO-CONTEMPORÂNEA


Era uma vez

Um outro Portugal,

Que na sua avidez

Foi comendo o verdadeiro.

E numa soberba sem igual,

Ficou sem casa, sem amigos

E sem dinheiro…


6-04-2011

Eduardo Aroso

sexta-feira, 8 de abril de 2011

SIM, AINDA HOJE...


“Ao juntarmos o descuido que se observava na manutenção do navio e do seu aparelho, mais a ignorância das coisas do mar por parte de quem comandava as naus, teremos um quadro mais claro do que conduz ao naufrágio. A ganância, a incúria e a ignorância são os traços que permitem delinear o naufrágio (…).
O equilíbrio rompe-se quando os comandantes fidalgos decidem com grande espírito de aventura e reforça-se quando os mestres marinheiros conseguem impor o espírito do velho do Restelo. Os casos intermédios são menos frequentes pois os mestres pouco decidiam sobre a sorte da armada e os comandantes fidalgos só eram prudentes porque ouviam os mestres, mas depois decidiam mediante as ordens que traziam ou segundo os próprios interesses.”


João Ruas “Relatos de naufrágios do século XVI na Biblioteca de D. Manuel II”, “Callipole, Revista de Cultura nº 18 - 2010” - Câmara Municipal de Vila Viçosa, pág. 86/87

quarta-feira, 6 de abril de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 130


As pessoas-ilha

Cynthia Guimarães Taveira

Com as televisões, os aviões, a informática, todo o mundo ficou mais pequeno e concentrado numa espécie de “única notícia”. Essa “única notícia” é uma espécie de comprimido que se toma todos os dias quando se ouvem ou lêem notícias. De alguma maneira, todos, no mundo ocidental, partilhamos a mesma informação diariamente. De alguma maneira todos temos o olhar e o coração moldados por essa pílula manipulada nos laboratórios do poder.

Nos tempos feudais as famílias procuravam apenas o difícil sustento. O senhor ficava no castelo guardado por exércitos. O poder existia mas era apenas um poder material. O poder mental era mais ou menos controlado pela Igreja, que persuadia os fiéis pelo medo do Inferno que ficava situado algures, para além da morte. Entre o poder material do senhor e o poder mental da Igreja, sobrava ainda espaço para o individuo. O povo não sabia ler nem escrever, não tinha acesso aos livros, não tinha de lidar com o excesso de informação, mas tinha as suas histórias, as suas raízes, os seus momentos vagos em que exercia a sua liberdade interior sentado à noite, em volta do fogo, depois de um dia de lavoura difícil.

Hoje, já não há assim tantas lavouras tão fisicamente difíceis. A maior parte de nós tem direitos, está enquadrado no código do trabalho, a maior parte de nós somos escravos decentes, higiénicos, alfabetizados. Digo escravos porque partilho da opinião de Agostinho da Silva: o trabalho é sempre uma escravidão. Apenas a criação liberta.

Por outro lado, o individuo e a sua liberdade são apenas uma luz cada vez mais ténue. Essa pílula tomada todos os dias há-de desculpar-nos na hora da morte porque com ela somos mais do que nós e a nossa circunstância. Somos nós e todas as circunstâncias, as nossas e as de todo o mundo, mesmo aquelas que estão para além do nosso raio de acção. Somos todos, na sociedade ocidental, a figura de S. Cristóvão, que não entendia porque é que a criança nos seus ombros pesava tanto. Todos nós carregamos o mundo às costas, logo pela manhã quando ouvimos os noticiários.

Há quem defenda teorias meio orientalistas (digo meio orientalistas porque o que nos chega das filosofias orientais é sempre parcial, é sempre um reflexo de um reflexo, é a ideia sem o contexto cultural e educacional) de expansões interiores de consciência, de forma (e não por forma!) a termos uma consciência global de toda a humanidade e assim, com essa consciência, promovermos o bem comum. Dizem essas teorias que há uma expansão da consciência até ao limite do “todo” que é afinal “nada” para depois ser “todo-nada” ou “nada-todo” num sublime paradoxo zen.

Massas e massas hoje (nunca na história conhecida houve tantos habitantes no planeta), carregam o peso do mundo às costas e as suas circunstâncias são quase infinitas, carregam um “todo” às costas, dando-lhes a sensação de “nada”. Paradoxalmente, e numa consequência quase zen, o raio da acção das pessoas é cada vez mais reduzido, podendo ser deduzida uma lei desta constatação: quanto mais informação, menos acção e menos responsabilidade há na acção, daí o facto de que, no dia da nossa morte, quando nos erguermos perante o juiz, não ser possível um julgamento normal: o peso entre o coração e as acções. As acções estão absolutamente diminuídas face à quantidade de circunstâncias que, de alguma forma, pesaram em vida no individuo.

Lendo experiências pós-morte constatei um facto curioso:
No ocidente, aqueles que morreram por momentos num bloco operatório ou num acidente, encontram-se perante a sua consciência. São eles próprios que se auto-julgam.

No oriente, nas mesmas circunstâncias, são outros, figuras que aparecem para julgar a consciência do morto.

O que se dá é uma inversão do que aparece em vida: no oriente o individuo era (agora já não é tanto) educado de forma a ter uma forte consciência de si, das suas acções, da sua responsabilidade. Há um sentimento forte do individuo enquanto pilar da comunidade. O individuo julga-se a si mesmo sem intermediários. Na hora da sua morte, passa-se o contrário: são os “outros que o vão julgar”.

No ocidente, o “outro” é o grande pilar do julgamento em vida. A comunidade é o grande pilar do individuo. O ocidente está assente no julgamento fora de si: a família, os vizinhos, os tribunais, a religião adoptada conduzem o individuo a uma sensação constante de julgamento das suas acções: o individuo não se julga, é julgado, daí muitas depressões por falta da chamada auto-estima. Na hora da morte, há uma espécie de compensação e, finalmente o individuo está só perante a sua consciência, revendo os seus dias desde o momento do seu nascimento.

Tudo isto é muito movediço, sobretudo hoje, porque o oriente está cada vez mais ocidentalizado e alguns ocidentais tendem a ir buscar a “salvação” ou “iluminação” ao antigo oriente.

Mas estas experiências pós-morte dão que pensar: que tipo de julgamento terá a nossa consciência perante o “abafar” em vida de tantas circunstâncias, a maior parte delas transcendendo tanto o individuo como o próprio “transcendente” religioso? Onde haverá a verdadeira justiça?

Diz a nossa tradição que o céu é dos tolos e das crianças e talvez esteja aí a resposta: perante a diminuição do campo de acção do individuo devido à sobrecarga informativa, seremos afinal julgados como crianças ou como tolos. A iniciação tornou-se interdita na nossa civilização. Bem pior do que a contra-iniciação, de que nos fala René Guénon, é a ausência sequer da noção de iniciação. Sem ela seremos todos crianças e tolos voando num céu sem limites. Mas, e o céu, será o mesmo? Apenas há algumas pessoas-ilha no oceano das massas que poderão, talvez, saber a diferença entre um tolo e um sábio. Nós não sabemos.

terça-feira, 5 de abril de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 17

Na fotografia, o Estado

Muito censo, pouco senso

Alexandra Pinto Rebelo

Acho que não passaria pela cabeça de ninguém, no seu perfeito juízo, colocar a hipótese do facto de preencher o questionário dos Censos poder constituir um momento hilariante. Responder a tais perguntas é um momento sério. É um dos raros momentos em que nos sentimos parte de um povo, numa cumplicidade temporal. Estamos aqui e agora, sendo isto ou aquilo, fazendo x ou y.

Aquelas folhas, fazem-me lembrar os antigos momentos solenes que uniam uma determinada comunidade, tal como a missa de Domingo. Eu já não sou desse tempo, da missa de Domingo como união da comunidade (sou do tempo de constituir isso uma opção pessoal quase exótica), mas lembro-me de ir às matinées ao cinema Império, ao fim-de-semana à tarde, com as minhas melhores roupas, pela mão da minha família, numa comunhão semelhante. Era no tempo em que o Império tinha lotação para muitas centenas de pessoas, estando muitas vezes esgotado.

Essa ida ao cinema era, sob muitos aspectos, uma espécie de Censos de bairro. Muitas vezes imaginava-me naquele palco, por entre os cortinados de veludo pesado, a olhar para o lado de cá, o lado onde nós estávamos. Imaginava uma grande fotografia onde estávamos quase todos bem, vestidos com as nossas melhores roupas, penteados à força, sorridentes como só sabíamos ser nessa altura.

Preencher os Censos, para mim, é um chegar-me para lá para caber numa grande fotografia. Uma fotografia onde estamos dez milhões, petrificando este momento que irá acabar por passar.
É pena que a máquina do nosso Estado (seja lá o que isso for) não pense assim.

Preenchia eu aqueles papéis, quando leio a pergunta: “Tem dificuldade em ver mesmo usando óculos ou lentes de contacto?”. Confesso que reli a pergunta. Pensei ter trocado as palavras com outras nesse processo complexo que é a leitura (ou o pensamento, se quisermos ir para Freud). Não havia erro. Era mesmo aquilo. Neste momento solene, o Estado pergunta-me se eu vejo bem. Não consegui evitar uma gargalhada enorme. Depois de ter respondido, que sim, que “via bem, felizmente” (tudo isto só com uma cruz, note-se), caio numa nova pergunta, qualquer coisa como: “E ouvir, ouve, bem?”. Nova gargalhada. Ouço bem, sim. Lembrei-me imediatamente do Dr. Estrela, médico da minha avó há uns trinta anos atrás, resolvendo os seus problemas delicados de saúde com perguntas inocentes. O Estado continuava, naquele disparate de delicadeza médica ultrapassada, para com a minha pessoa: “E sobe bem as escadas?”. Depende do cansaço, Dr. Estado. Mas geralmente, não me custa. “Então e a sua memória? Tem dificuldades em memorizar?”. Depende do seu grau de exigência, Dr. Estado. Tenho uma memória muito boa, mas se me pedir para decorar a Ilíada, como faziam na Antiguidade, confesso que sou capaz de ter alguns problemas sérios. “E consegue tomar banho sem ajuda?”. Esta pergunta constituiu o meu momento de viragem em relação a estes Censos. Deixei de ter bom humor e pensei que as coisas já se estavam a tornar muito sérias. Estamos a falar de quê afinal?!

Como dizia no início, considero os Censos uma coisa séria. São os números que iremos deixar para a história enquanto povo. Todos os historiadores gostariam de deitar a mão a censos de tempos idos. Mas quantos teriam interesse em saber quantos egípcios teriam dificuldade em tomar banho sozinhos (seja lá o que isso for) no ano de 2.540 a.C.? Quantos fariam uma tese, com algum interesse, sobre o número de macedónios com problemas de audição no tempo de Alexandre o Grande? Não seria mais interessante saber quantos portugueses tomam banho com alguma frequência (pelo menos uma vez por semana) com ou sem companhia? Não teria uma maior importância, em termos culturais, saber quantos de nós se sentem deprimidos?

Por mais voltas que dê, não consigo compreender o sentido destas perguntas. Talvez tenham a ver com o estado completamente absurdo a que a nossa Ciência chegou. Ciência pela Ciência, não admitindo, erro crasso, que a ciência só pode ser um produto cultural.

domingo, 3 de abril de 2011

LANCES E RELANCES, 2


    (na foto António Salvado)

O VERO SUBJECTIVO NA PALAVRA IMANENTE DE ANTÓNIO SALVADO

«O cântico floriu na bacidez
de certas urzes mortas.

Fenderam-se percursos e por vezes
pedras moveram o rigor ileso
do seu interior, da sua forma».
(…)

(Os Distantes Acenos)

Um poeta não cabe na terra onde nasceu nem nos locais por onde passa. Todavia, do útero do primeiro chão que ele conhece há um sinal que pode ser entendido como oblação de Prometeu, concedida a quem, roubando o fogo aos deuses, surge no mundo para desvendar os ousados caminhos do espírito. No universo da poesia, recebe ele as coordenadas próprias da alma do locus, para, depois, nesse modo, ligar outras vidas e paisagens: de um paraíso dócil mas estático, ao paraíso em eterno devir na dinâmica descoberta do sempre-existir.

«Move-me a luz que vem daquela flor,
tão exilada luz…
Chega-me esguia a revolver no peito
as mil penumbras
os mil anseios
as mil verdades…»

(Tropos)

Quem, pela primeira vez, lê um poema de António Salvado, recebe a mensagem de alguém que tem algo de singular para dizer ao mundo. A sua palavra pode requerer uma vida inteira, desdobrada em cenas de tonalidades diversas, de dias aparentemente contraditórios (às vezes dilacerantes), enfim, de paradoxos inevitáveis, mas que a vera subjectividade do poeta une sempre, ao jeito de Ariadne de confusos mas seguros caminhos de achar. Nos primeiros versos lidos, ficamos logo na certeza de uma poesia que nunca se anula, que nunca se repete, e que, sejam como forem os dias do poeta, nunca se esgotará.

«O que se deve pedir no começo do crepúsculo
é um cântico de luz para a manhã seguinte»
(…)

(A Flor e a Noite)

A poesia de António Salvado é como aquelas árvores antigas que não precisam de estar na praça pública para sabermos que elas existem em determinado local. Os que as não conhecem poderão também ser conduzidos ao sítio onde elas estão. O valor do achado – como em tudo na vida – é directamente proporcional ao acto volitivo de quem delas se abeira, esforço feito da matéria essencial do gesto da busca.

«D. Afonso Henriques
(…)
Seguro em si, nos copos de uma espada,
com ela permitiu o que seria
essa grandeza que nascera em nada
mas que o tudo talhara em haveria.»
(…)

(Jardim do Paço)

Sem ruídos mediáticos, sem as tristes lantejoulas das modas e fora de pueris apadrinhamentos, apenas com o sol da graça e o destino de ter nascido medularmente poeta, sempre foi o desenrolar da obra poética de António Salvado, que começa a vir a lume no ano de 1955 e não mais conhece “períodos de seca ou pousio”, não sendo, por isso, – perdoe-se a expressão – um poeta sazonal. Há nele uma árvore de vida, árvore poética, permanência inalienável na poesia portuguesa.

É claro que a desatenção de muitos leitores contemporâneos se deve a mais que um factor. Alguns desconhecem, outros há que se vão esquecendo, procurando (em nome do progresso acelerado da poesia, como se esta fosse tecnologia!), tantas vezes, onde nada existe para encontrar. Mas o pior de tudo é o que acontece noutro plano, seja por ignorância ou outras razões, já menos aceitáveis que no caso dos leitores. Refiro-me a certas figuras da cultura, investidas de responsabilidades para dar a conhecer a nossa poesia de referência, seja por actos públicos, os mais variados, seja pela organização e divulgação de antologias.

«Despojaram-se os campos:
o granizo mordaz
tudo feriu com sua espada
nua – o sangue aguarda tímido
o recomeço
da sua circulação»

(Ao Fundo da Página)

«A César o que é de César, a Deus o que é de Deus». Não se trata - em nome da legitimidade de qualquer acto poético – de ver ordenar graus qualitativos de poesia, de catalogar pessoas, de arrumar estilos, ou joeirar outros aspectos do fluxo criativo. Impõe-se, isso sim, a observância do que não pode deixar de ser observado. Mas a natureza do homem contemporâneo compraz-se mais na combustão de uma emoção, qualquer que ela seja, à maneira do fumo de qualquer fogo, do que pelo objectivo do prazer da viagem do sentimento, alheia à mecânica dessa combustão. Assim se explica que Goethe tenha dito que se um arco-íris dura mais de quinze minutos, já ninguém olha para ele. Assim se explica que no panorama da literatura portuguesa, com algumas honrosas excepções, se verifiquem estranhas ausências. E o fenómeno é ainda mais preocupante quando assistimos às rápidas e mórbidas mutações que há na lista dos poetas incluídos nos livros escolares, cada vez mais avassaladoras da chamada poesia de circunstância. Não admira, assim, que os nossos jovens, de um modo geral, exibam a cultura que vemos, enquanto uma promissora minoria já rejeita conscientemente muitas omissões.

Não se pense, porém, que a obra de António Salvado seja desconhecida, pois quem logo nos primeiros anos da juventude recebe os melhores encómios de Teixeira de Pascoaes e de João Gaspar Simões, entre outros, de mais “certificados” não necessitaria posteriormente. Porém, o que se passa é da mesma lamentável natureza da que vemos quando, por exemplo, em reportagens televisivas, ouvimos respostas ocas a perguntas sobre quem foi tal rei português, tal cientista, tal filantropo. Cultura desviada do essencial? Apoteose do efémero? Bem sintomático das emolduradas invejas do nosso belo quadro de “brandos costumes” é o facto da maior parte dos prémios e reconhecimentos de António Salvado terem sido atribuídos em países estrangeiros. Como em tantos exemplos, não é fácil um grande poeta ser profeta na sua terra, nem que ela seja um pequeno rectângulo! Camões, já antevendo o enigma, encerra «Os Lusíadas» com a palavra inveja, e parece que nisto não se tem meditado suficientemente.

Fazendo jus ao verso camoneano «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», costumes e hábitos sociais vão-se modificando, e assim tem-se trocado o espírito de tertúlia pelo espírito clubista. Não se confundam. O clima fraterno, de sincero e respeitoso diálogo, de ajuda mútua (onde, tantas vezes, os autores humildemente se corrigiam) tem dado lugar ao atrevido ambiente de vedetismo, cuja figura principal é sempre utilizada por hábeis manobras mediáticas.

«A um Crítico Autor de Versos
Filóxeno de Citera
foi um dia castigado
a mil trabalhos forçados,
porque na sua justeza
se recusara a louvar
os maus versos que fizera
Dionísio de Siracusa, tirano daquela terra.

(Como tal gente perdura
neste mundo em todo o tempo,
embora muito me custe
louvarei teus versos sempre!)»

(A Quinta Raça)

O acto poético de António Salvado dir-se-ia compulsivo, de uma imanência que procura trazer as palavras esquecidas que, só elas, podem criar o verso virgem, enchendo novamente o mundo de inefável força vital, verso limpo de todas as «palavras gastas».

«Mesmo no fundo aterrador do poço,
sem erma claridade
d’uma ligeira luz, acre lugar
que cinja, que lanceie como o fogo,
algo se vê, difuso mas raiado.
(…)

(Os Distantes Acenos)

Na Beira-Baixa – local onde nasceu e vive, depois de várias andanças– está o poeta no ofício da palavra que guarda memórias do tempo passado e vive já as do futuro. Cravado na limitação do chão, ou entre terra e mar, aí tem também a sua propulsão para a certeza de um outro céu que está para além do que vemos de cor azul.

«Desta janela intacta da saudade eu descortino os horizontes
imóveis no seu permanecer de grandezas e despojos vivos.
O azul desdobra-se nessa aurora-madrugada que nunca abandonou
a esperança».
(…)

(Face Atlântica)

Equinócio da Primavera, 2011

Eduardo Aroso