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domingo, 27 de setembro de 2009

O CAMINHO DO CAMINHO, 6

Cynthia Guimarães Taveira


O terror vem antes do terrorismo
Todas as sociedades que promovam ou de alguma forma conduzam ao suicídio ou à loucura são sociedades doentes. Quantos suicidas temos nós? Quantos loucos sem graça passam por nós na rua? Outras patologias mais loucas do que o suicídio ou a loucura parecem cair numa espécie de normalidade assustadora. O encontro com essa realidade aconteceu quando vira o filme americano “Forrest Gump“. Saíra da sala horrorizado como se de um filme de terror se tratasse. “Forrest Gump” é mesmo um filme de terror sobre a verdadeira ameaça que cai neste momento sobre a espécie humana para além das outras traduzidas em danos físicos ao planeta. Curiosamente foi um filme que emocionou milhares. Saiam comovidas as pessoas da sala de cinema, fungando e limpando as lágrimas. O filme relata a história de um pobre diabo que sofre de um atraso e que por via dos sucessivos acasos da sua história de vida se torna presidente de um grande grupo empresarial. O filme acaba com uma pena, leve ao vento, que, tal como Forrest Gump, inocente e para sempre prisioneiro de um estado infantil, voara ao sabor do acaso. A patologia, a deficiência mental era assim exorcizada com a fórmula simples de um sentimentalismo barato e antigo como o mundo: coitadinho, não sabe o que faz, mas até consegue. A plateia era toda Jesus Cristo, no alto da sua cruz, desta vez não pedindo perdão pela maldade dos homens, mas sim abençoando todos os atrasados do mundo, tornando-os ídolos, senão mesmo modelos exemplares de uma beatitude descontrolada, apenas ao sabor do vento, que Deus ajuda, que Deus eleva, que Deus torna empresários de multinacionais. A perversidade tem vários rostos, e neste mundo há que estar atento...
E atentos ainda à questão da memória. Peguemos em dois pólos. O autismo e o Alzheimer. Duas patologias em moda por força da persistência e do número crescente com que se infiltra nas nossas crianças e nos nossos idosos. De um lado, o autismo. Revisitado agora na televisão pela mão de um documentário sobre duas gémeas com sérios problemas. Lembravam-se de todos os dias que viveram, sem excepção. Do que tinham comido ou da meteorologia de um determinado dia. Chamavam-se a si próprias computadores humanos pois sabiam o calendário mundial de cor. Sabiam-no sem saber como. Apenas o sabiam, de forma que as duas gémeas eram uma colecção de factos, ao jeito da história factual nascida com o positivismo. Factos que para nada serviam, catálogos vazios sem os respectivos livros. Por várias vezes, nesse documentário, foram apelidadas de génios por desenvolverem uma memória privilegiada. Com síndromes ou sem síndromes de nomes de médicos, o autismo está a crescer em número e uma das constantes é esta capacidade anormal de memorizar qualquer coisa.
Do outro lado temos o Alzheimer, estado demente da pessoa, no qual esta já nada retém, até poder chegar ao ponto de se esquecer de si própria. Não saber quem é. Por enquanto esta patologia não é tão venerada como as capacidades a que o autismo conduz mas, provavelmente, lá chegaremos, até porque a democracia, tal como nos é dada a viver nos dias de hoje, só pode viver, respirar e alimentar-se à custa da desmemorização sucessiva dos indivíduos. Se assim não fosse não eram necessárias campanhas eleitorais, verdadeiros processos de desmemorização, substituindo uma realidade imediata por outra.


Com estas observações, e enquanto percorria o caminho do caminho, chegara à conclusão de que toda a memória deveria ser doseada. De nada servia tudo esquecer, de nada servia tudo lembrar. Todas as lembranças deviam ser quanto baste, e algumas até transformadas consciente ou inconscientemente de forma a encaixarem numa linguagem simbólica que lhes devolvesse um sentido. Era isso que faziam os escritores, os contadores de histórias e as lendas que percorriam o corpo da História.


Forrest Gump era o protótipo do americano comum. O americano que todos deveriam ser. Um vencedor, sem que interessasse como ou porquê. Ler os livros de Bill Bryson pode ser bastante didáctico se procurarmos assegurarmo-nos do risco que corremos enquanto espécie.
O americano, feliz, quer-se junto à televisão, tal como as duas gémeas autistas em frente ao ecrã assistindo a um concurso-fantochada e fachada de um possível conhecimento, assentando num papel as perguntas e respostas, assentando as vezes que uma campainha ou um gongo tocam, assentando tudo para que de nada sirva a não ser para estatísticas, estatísticas que servem sempre a democracia e nada mais...


Este elogio da normalidade do anormal lembra o filme tristíssimo, esse sim, esclarecedor, onde Peter Sellers no papel de Mr. Chance, vivendo em função de uma televisão, conhecendo o mundo e a vida só em função daquilo que o ecrã lhe dá, acaba memorizado por ele e desmemorizado de si mesmo. O inverso dos homens da Renascença que se queriam plenos, amantes de todas as disciplinas, conhecedores dos jogos simbólicos das histórias, pintores e matemáticos, alargando cada vez mais o espectro das possibilidades de conhecimento, ao contrário de hoje, em que se corre o risco de chamar génio a alguém que é apenas deficiente, só porque sabe fazer contas rapidamente, mas está morto para o mundo, para si próprio e pior, para a face transcendente do homem, feito à imagem e semelhança de Deus. E Deus não é autista nem tem Alzheimer.


No caminho do caminho, não se deve perder o trilho... e estranhamente este conduz-nos para cima, para a nossa transcendência, para onde todas as nossas possibilidades boas são aproveitadas, expandidas, até a um limite que não podemos imaginar.

1 comentário:

  1. LÍCITO OU ILÍCITO?

    Elogiemos a loucura que rola nas auto-estradas dos pensamentos ilícitos. Será perversidade? De que pensamentos ilícitos se tratam? Do egoísmo ou do individualismo que suicidam as sociedades das nossas jaulas de betão? O que é um pensamento ilícito? O que é um pensamento lícito? Quem lhes define os limites? O amor é lícito? Transgredir a forma como se ama é ilícito? Quem são os professores do amor? Ensinar a amar é lícito ou é ilícito, quando o amor que se ensina, não é o amor que se pratica? Torna-se ilícito? Que importa à memória se a memória é a evolução lícita do ilícito. Provoquemos a Ciência como uma forma de saber se é lícito usar o que se entende por ilícito, para desvendar a verdade do ilícito e criar um saber que transforma em lícito, o que se apelidava de ilícito. Somos uma evolução ou uma involução? Evolução quando se transgride a licitude com a caravana científica dos pensamentos ilícitos universais ou involução quando o egoísmo e o individualismo são os exércitos ilícitos que vivem em conformidade com o seu estatuto de lícitos? O computador é lícito quando se manipulam os dados da evolução ou é ilícito, se os ratos que os controlam, são manifestações de involução, ao serem instrumentos de egoísmos e individualismos que abdicam da Ciência em prol da filosofia sintética do saber unívoco e dos poderes ciáticos?
    De são e louco, todos temos um pouco, o que é um acto de se ser lícito, sendo ilícito.
    Assim se caminha, caminhando.

    Jorge Brasil Mesquita

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