(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



segunda-feira, 30 de maio de 2011

LANCES E RELANCES, 5








UM ESTUDO PRECIOSO E LUMINOSO SOBRE O CULTO DO ESPÍRITO SANTO
DE MARIA ADELAIDE NETO SALVADO


Por Eduardo Aroso

Se todo o tempo é propício ao Espírito Santo, o que o calendário cosmológico e litúrgico agora nos aponta é um convite ao qual não podemos ficar indiferentes. Se não bastasse o medular motivo religioso, seria, no mínimo, a importância do tema situado nos meandros da História de Portugal, quiçá como agente do nosso destino enquanto nação. «O Culto do Espírito Santo em Terras da Beira Baixa – as longínquas raízes, de Maria Adelaide Neto Salvado, foi dado a público em 1998, com a chancela da editora Band, não significando a palavra o que, à primeira vista, pode indiciar, mas «o nome de divindade pré-romana cultuada nos espaços da Raia central ibérica» (…) e que «significaria atar, ligar, enlaçar, vincular». Assim, neste curioso pormenor editorial, não podemos deixar de observar que o sentido de enlaçar-se ou vincular-se se coaduna perfeitamente com a essência escatológica do Paráclito, omnipresente Consolador.

O livro contempla aspectos como o Espírito Santo nas palavras dos evangelistas, o respectivo culto nas primeiras comunidades cristãs – as heresias, focando a autora ainda os primeiros tempos do cristianismo peninsular, a diversidade das formas populares do culto na Beira Baixa, fazendo também uma incursão pelo cancioneiro poético tradicional. Referindo-se ao ambiente das primeiras comunidades cristãs, cita o cânone XLIII do primeiro Concílio peninsular de Elvira (300-306): «Temos por bem corrigir um mau costume, apoiados na autoridade das Escrituras. Todos celebremos o dia de Pentecostes, e se algum não o fizer, que seja assinalado como introdutor de nova heresia (in José Vives, Concílios Visigóticos e Hispano-Romanos)».

Lemos ainda neste capítulo que «nas práticas de ascese colectiva, os crentes priscilianistas diziam atingir o êxtase por acção do Espírito Santo». Priscilianismo que, considerado heresia, seria condenado no II Concílio de Toledo (397-400). Um aspecto, dir-se-ia menos previsível no âmbito popular deste estudo, em boa hora a autora o colocou. Aludindo a um romance muito popular na Idade Média, no qual o Espírito Santo teria descido sobre os cavaleiros do rei Artur, Maria Adelaide Neto Salvado interroga-se deste modo: «E não serão os jantares da véspera do Domingo do Espírito Santo, realizados nalgumas aldeias, reminiscências do acto propiciatório que os cristãos medievais realizavam para conseguir a mesma graça recebida pelos cavaleiros da Távola Redonda: a de que sobre eles descesse o Espírito Santo e neles despertasse o desejo profundo de buscar o caminho em direcção à Perfeição?»

Como não poderia deixar de ser, está presente nesta obra a acção da Rainha Santa Isabel, a partir de Alenquer, com a oficialização das Festas do Divino. Cremos que este é um dos momentos mais solenes daquilo a que António Quadros chama «O Projecto Áureo Português», tema que se integra na obra deste autor, em dois volumes, intitulada «Portugal, Razão e Mistério».

Em suma, «O Culto do Espírito Santo em Terras da Beira Baixa – as longínquas raízes», de 65 páginas e pequeno formato, não se assumindo exaustivo (pois resultou de uma conferência dada pela sua autora e professora), é, contudo, em nossa modesta opinião, um dos estudos mais esclarecedores e radicais deste culto na Beira Baixa e regiões adjacentes. O sentido do popular que a autora imprime criteriosamente na sua obra, é o de um popular não «popularucho», para onde tantas vezes é fácil resvalar. Dizemos popular ou talvez tradicional, pois a autora tem indubitavelmente a intenção de ir ao ponto mais fundo da raiz, dessa raiz incólume ao passar do tempo, o tradicional oculto e intocável que ainda vive, agora aparentemente morto, no coração do nosso Povo. No percurso pelo cancioneiro poético, destacamos a última quadra, da zona de Proença-a-Nova e Alpedrinha. Hoje, dolorosamente conscientes de que em não muitos momentos da nossa História semelhantes ao actual, ela tem sido tão verdadeira. Por isso, leiamo-la como verso e oração:

Divino Espírito Santo
Que lá ‘stais nessas alturas,
Dai-nos luz aos nossos olhos
Já que estamos às escuras.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 19


















O caminho intelectual para a Índia

Alexandra Pinto Rebelo

1498 conta-se entre as datas mais simpáticas para o povo português. Vasco da Gama chega à Índia. O ter chegado à Índia não constitui um feito por si só. Antes dele Alexandre ou os muçulmanos já tinham inscrito as suas viagens, e influências, nas páginas da história daquele enorme país.

O que tornou a viagem de Gama diferente foi o facto de ter sido realizada por mar o que, em linguagem científica da época, significava uma coisa extremamente importante: a rapidez. Gama, ficou célebre, então, por ter ligado, tão rapidamente quanto possível para a época, as culturas marcantes da Europa de então à Índia. Ou se quisermos, o Ocidente ao Oriente.

Para nós, hoje em dia, esse feito tem uma importância mais profunda em termos dos mitos que fomos capazes de gerar sobre o assunto, do que propriamente pela sua importância real. Se, presentemente, já se faz a coisa de avião, gastando apenas algumas horas, isso quer dizer que a epopeia do Gama ficou uma coisa datada, com importância apenas quando se fala de história, mas sem importância nenhuma para os tempos que vivemos. Se já temos antibióticos super potentes, quem vai dar importância às sanguessugas que chuparam milhões de litros de sangue aos infelizes que ficaram doentes no seu tempo?

Mas os orientais, permitam-me que assim os chame de uma forma incorrecta, é certo, mas terrivelmente económica, não se esquecem da viagem do Gama. Em diversos pontos do mundo, ao perceberem que eu vinha deste cantinho, já me disseram, sempre em voz alta “Gama”, “Gama”. Aquele nome, assim retirado das mitologias com que me o ensinaram a envolver, sempre me soou a qualquer coisa estranha. Sempre me limitei a sorrir e a responder com o mesmo nome “Gama”, “Gama”, não fazendo ideia do que estava a dizer. Isto pode parecer confuso, mas não é. Eu sei o que quero dizer quando digo a palavra Gama num contexto português. Mas o que quererá dizer a palavra Gama, quando pronunciada por um oriental? Será isso bom, ou mau? Parece-me, ao menos que, se repetir a palavra, o outro entenderá que estou a sublinhar o seu pensamento.

Será que o sublinho? Possivelmente. Possivelmente, sublinharei todos, ou quase todos, os pensamentos que se possam ter sobre o Gama, ou de alguma forma, sobre as reacções que a sua viagem causou. É óbvio, que prefiro sublinhar Os Lusíadas. É a grande epopeia do seu tempo, sem dúvida, mantendo-se como o grande livro nacional até hoje. Nenhuma tempestade educacional conseguiu retirar aquilo dos nossos programas de estudo. Os Lusíadas são as nossas pirâmides monumentais e eternas.

Mas também consigo compreender a posição dos outros. Daqueles que se sentiram invadidos pelas viagens inesperadas que colocavam seres estranhos nas suas costas marítimas de um momento para o outro, terminando-lhes com o sossego de serem indianos e de gostarem disso.

Compreendo o insulto de serem incomodados por uma cultura que nunca fez grande esforço para os compreender. Este insulto, se nós soubermos ser humildes, deve também estender-se a nós mesmos, àquilo que poderíamos ter feito e não ofizemos nem o fazemos.

Para além da glória de termos descoberto o caminho marítimo para a Índia, devíamos, igualmente, ter tido a glória da descoberta do caminho intelectual para lá. Quero com isto dizer que, Portugal, pela sua posição privilegiada, pela amizade, até, que soube fazer com aqueles povos, poderia ter-se dedicado ao estudo dos seus textos, das suas tradições, formando ilhas bem aventuradas de saber.

Poderíamos ser um dos países ocidentais com mais especialistas nas áreas humanistas ligados àqueles povos, poderíamos ser uma referência a nível mundial (segundo o palavreado sem sabor desta época), mas nada disso aconteceu ou acontece.

Na Índia há uma lenda muito conhecida sobre Brahma, o criador do mundo. Brahma, criou a sua companheira, Sarasvati. Apaixonou-se por ela e imediatamente lhe lançou olhares fogosos. Sarasvati ficou assustada. Tentou fugir dele para cada um dos pontos cardeais mas, para onde quer que fosse, Brahma desenvolvia uma nova cabeça para a ver. Até que Sarasvati foi para o céu e o deus desenvolveu a sua quinta cabeça, olhando para cima.

Quem sabe a data de cór, 1498, deve também saber lendas como esta, compreendendo a sua profundidade e sabedoria. É a única forma destes números fazerem um sentido, transformando todas as rotas em bons sentidos.

É que, ao contrário do que afirmou Pessoa, não ficámos desempregados a partir do momento em que descobrimos a Índia. Pelo contrário, criaram-se inúmeras oportunidades intelectuais, quase todas elas deixadas vagas até hoje. Por isso, quando me voltarem a dizer “Gama”, “Gama”, vou continuar a responder em eco. Seja lá o que isso for, esperando, ao mesmo tempo, que isso seja tudo.

terça-feira, 24 de maio de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 133










O Império com pés de ouro

Cynthia Guimarães Taveira

Não se trata de salvar o mundo, trata-se, tão somente, de tentar reflectir com o coração para fazer as coisas bem.


Todos os Impérios político-económicos caíram. Apercebendo-se disso, Fernando Pessoa criou a ideia de um novo Império: o Império cultural. Nada que os Estados Unidos da América não tenham percebido logo no início do século XX. O que os EUA fizeram, e continuam a fazer, foi exportar um modo de vida, por via da indústria cinematográfica, para a Europa e para todos os continentes predispostos a serem evangelizados por ideias maniqueístas com laivos de comédias musicais românticas e autocrítica suficiente para sossegar qualquer tentativa de rebelião face à cultura evangelizadora: westerns e policiais para o jogo maniqueísta entre o bem e o mal, comédias românticas para o jogo dos afectos, filmes politicamente incorrectos com a crítica, quanto baste, ao estilo de vida e vícios americanos, para o jogo político que é necessário manter a qualquer custo. As empresas americanas entraram na Europa por via da cultura. A globalização foi a consequência desse Império político-económico com as roupagens do "american way of life".

Cá em Portugal alguns espíritos ainda com ideias medievais, coloridas por pinceladas milenaristas e uma fé transversal aos tempos, fazem subsistir, ainda hoje, a esperança, não num Império cultural, mas num Império do Espírito Santo. O caminho para se chegar a esse império só pode ser feito por via cultural, sem o factor “Império político-económico” como motor de arranque, porque esse factor, quando isolado, como todos sabemos, está condenado ao desaparecimento.

A ideia de Império é uma ideia natural, mas a sua origem é, bem lá no fundo, religiosa. Por dois motivos: a Criação é uma espécie de expansão, o resultado de um excesso, de um extravasar de qualquer coisa, seja do amor, seja da vida. A origem da vida é naturalmente Imperial: ela surge de algo que “tem a mais” para preencher algo que está vazio. As mulheres conhecem naturalmente esta dialéctica que está no seu próprio ventre e os homens conhecem também esse “excesso” nas sementes fecundantes que guardam: neste sentido, a criação e a criatividade existentes na natureza e na natureza humana são tão somente espelhos da grande Criação divina. Não vale a pena negar a Ideia de Império, pois ela é a génese de tudo: naturalmente há um big bang, toda a semente contém o Império da planta, toda a cria contém o Império do seu ser adulto.

Sabendo de antemão o poder dado pela cultura, dizia há pouco que a América, de uma maneira inteligente, usou e abusou desse poder, mas os propósitos estavam mais uma vez errados, pois os poderes materialistas como causa principal e final não possuem nem qualidade nem tempo de vida eternos. A Europa foi desmemoriada pela América da sua própria cultura e as grandes marcas tornaram-se o sonho europeu de globalização. Mas há um pequeno problema de fronteiras e de diversidade numa Europa que, como diz uma amiga minha, é apenas uma convenção: onde começa e acaba a Europa? Será que a Europa como todo cultural existe? O problema da Europa é que esta não era uma América povoada por alguns índios. Era um território povoado por uma variedade de culturas, por uma variedade de fronteiras, até mesmo naturais, que custaram muitas guerras e muitas vidas nas tentativas de decisão das identidades. A América fez-se a si própria, é um “self made country”, a Europa descobre-se a si própria, como se esta fosse constituída por inúmeros arquétipos sociais, culturais e religiosos. A descoberta pressupõe uma origem, a construção pressupõe uma conclusão.

A falta de jeito europeia para se constituir como potência político- económica reside no facto de ter cultura e diversidade a mais: há uma intuição europeia daquilo que constituí o verdadeiro Império - ele só pode ser cultural, caminhando para o espiritual. Nunca poderá ser apenas político nem económico devido à diversidade de culturas. No entanto, a economia e a política fazem parte da cultura, sem dúvida, mas são apenas elementos dela e, como elementos que são, deveriam ser tratados como especificidades.

No tempo de D. Dinis foram criadas as cortes itinerantes: a resposta mais inteligente ao problema da diversidade - a corte deixou de estar no singular para estar no plural. Não deixando de ser una, tornou-se em simultâneo múltipla pela sabedoria da especificidade de cada região.

Estes novos movimentos de cidadãos jovens, e não só, que acampam nas Portas do Sol à espera de um contrato de trabalho, estão agora com uma intuição parecida. Visam criar grupos de cidadãos que possam intervir de forma directa nas decisões políticas. A neutra Suiça (às vezes tão neutra que se torna entediante ou mesmo exasperante) já experimentou a democracia directa: a sua geografia permitiu a existência desta forma de poder; os cantões governavam-se pelos votos, acordos e desacordos dos seus próprios cidadãos.

A louca tentativa da Europa de abolir fronteiras e de aceitar a globalização como o melhor dos mundos, assim de chofre, pode, pela falta de conhecimento das suas origens, originar os nacionalismos, os fascismos, as ditaduras. É a resposta natural ao sufoco de um Império cultural, político e económico cujo modelo é americano e o desejo imperial continua a resistir e a residir nas grandes potências económicas europeias: a Espanha (que não sendo uma grande potência contém em si esse germe imperial político e económico), a Inglaterra, a França, a Alemanha e o já muito adormecido germe holandês, adormecido por via de uma prática de abertura ao outro, ao estrangeiro, bem como à lição retirada da Segunda Guerra Mundial.

O desejo Imperial é legitimo porque é natural. No caso humano é um desejo natural que caminha para o sobrenatural. No entanto, ele só se cumprirá quando forem respeitadas as fronteiras culturais: respeitadas e desenvolvidas, sem que estas se fechem sobre si próprias e assim estagnem, mas que estejam abertas às outras sem, no entanto, se diluírem nelas pelo factor desesperante da política e da economia. A globalização é diabólica, porque, sob o manto da beatitude do conforto tecnológico, mata este impulso natural de regressar a um tempo perdido. O mito do eterno retorno está sempre presente, pois, como bem observou Mircea Eliade, basta haver o sol e a lua para que os ciclos estejam presentes no imaginário humano.

A Europa sem a sua cultura e sem a sua diversidade é frágil, porque não tem alma. A Europa que põe os interesses económicos à frente dos humanistas é insegura como o euro. A moeda é tão somente um reflexo cultural. O facto de perdermos o escudo levou-nos a perder algo que nos defendia. Curioso nome que arranjamos para a nossa moeda.

Os povos só se podem entender por vida da cultura e das trocas culturais: a economia e a política são meras consequências disso. No entanto, só podem existir trocas culturais se existirem culturas. Uma só cultura impede a troca. Já não há nada para trocar. Quando se fala em Império Cultural, fala-se de trocas, de saberes, de conhecimentos, de aprofundamentos. Fala-se de sabedoria e esta é composta pelo conhecimento do diverso e apenas por esse conhecimento se atingirá o Uno sobrenatural tão desejado. Quanto ao Espírito Santo, quando esse nos invade, ele é Uno, Igual para todos, e aí sim, assistimos ao verdadeiro Império com pés de Ouro.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

NA QUARTA-FEIRA...

Na próxima quarta-feira, pelas 18h30, na Sociedade da Língua Portuguesa*, Pedro Martins falará sobre "Pátria, História e Epopeia na Obra de Jaime Cortesão".

*Rua Mouzinho da Silveira, 23 em Lisboa ao Marquês de Pombal


NOVAS CARTAS

Em

http://as101cartas.wordpress.com./

Publicadas por Pedro Sinde

CONGEMINAÇÕES

Congeminações - I Ciclo de estudos em homenagem a António Telmo, subordinado ao tema "Ortodoxia e livre-pensamento" continua no próximo sábado, 28, pelas 15 horas, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, estendendo-se até Novembro.
O programa de sábado é o seguinte:

- Apresentação do livro Os Pecados da Rainha Santa Isabel (Ésquilo), de António Cândido Franco, por Isabel Xavier

- Conferência: António Telmo, pensador gibelino, por António Cândido Franco

- Conferência: Hialodoxia, por Rodrigo Sobral Cunha

domingo, 22 de maio de 2011

LANCES E RELANCES, 4













«CRISE NA IGREJA» (!)

Eduardo Aroso

«Nós os vencidos do catolicismo

Nós os vencidos do catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido misticismo
nos acordes dos carmina burana

Nós que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos

Já nenhum garizim nos chega agora
depois de ouvir como a samaritana
que em espírito e verdade é que se adora
Deixem-me ouvir os carmina burana

Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos o jogamos
«Meu deus meu deus porque me abandonaste?»

(Ruy Belo «A solidão dos filhos de Deus» )

«Crise na Igreja». Três palavras enormes. Li-as numa das paredes exteriores de um templo, como anúncio de encontro/colóquio. Algo surgiu em mim instantaneamente, embora esta palavra seja pouco propícia ao pensamento filosófico ou reflexivo. Todavia, o instantâneo pode não ser intuição, faculdade esta a que Bergson deu bastante luz e revestiu de uma mais alta compreensão, sobretudo no mundo académico.

O meu coração, intuitivamente, só não se amargurou por saber que Deus não tem crise e, assim, a frase só pode espelhar a crise da Igreja enquanto instituição, coisa aliás de importância secundária.

A crise na Igreja pode ser sintoma de um modo de ser que oscila entre a conveniência da moda e o que, ao invés de ser afastado, urge doutrinalmente aproximar do público, pelo menos daquele que mostre inclinação para tal. Se assim não for, quanto a este último ponto, teremos muita ênfase na instituição e pouca no «corpo espiritual» de que falava S. Paulo, muito embora ele lá esteja, perene, irradiante e irradiando.

Este quadro, o da crise da Igreja como instituição (ou de qualquer escola de pensamento onde há, de facto, espírito) deve por certo ser considerado como, de tempos a tempos, cuidamos da nossa casa e porventura a arrumamos de modo diferente. Mas numa crise (!) da Igreja enquanto «ecclesia » ou «corpo místico», que está nos antípodas do efémero, só podemos admitir o absurdo de que o Criador está afectado também pela dita crise! Deus está entre e para além do primeiro e do último suspiro. Agostinho da Silva disse haver pessoas que, por tanto atribuírem importância ao diabo, acabam por desvalorizar Deus, expressão que pode ilustrar, com o humor sério e profundo do saudoso professor, o tema deste pequeno artigo.

Os modos de pensar e agir automáticos tomaram conta da sociedade, até em sectores onde era suposto não dever acontecer, dado o carácter intrínseco de permanência em grau considerável que doutrina e filosofia possuem, realidade que não choca com a frase camoniana «o mundo é composto de mudança», se interpretada no devido ponto. A verdade é que as grandes provas são, antes de mais, lançadas aos guardiões do sentido sagrado da Palavra, e só depois aos que a escutam. O Mestre sabia do que falava quando lançou o repto a Pedro que, afirmando sempre que jamais negaria o seu Senhor, acabou por negá-lo, por mais que uma vez. Afinal, tudo são passos no caminho da realização.

Sabemos que a crise portuguesa, no seu mais profundo sentido, tem pouco a ver com os últimos anos de governos e desgovernos, mas que é o desfecho irreversível de um ciclo que se iniciou com o Marquês de Pombal e que agora agoniza em toda a diversidade das instituições, realidade histórica esta que Joaquim Domingues, com o rigor que lhe assiste, tem assinalado nos últimos tempos. Quem se considera na medula da crise fica apenas na instituição ou ao sabor do mercado, ou então, internamente, é impelido a uma reviravolta (se a sua consciência o mortificar), e aí temos o sentido grego de crise como crescimento. Ou então há que escutar de novo «Bem -aventurados os que têm fome e sede de justiça».

Crise na Igreja ou Crise da Igreja? Crise da filosofia ou crise na filosofia? Crise da poesia ou crise na poesia? Um pretenso pensador internamente desorganizado não invalida a irradiância de um corpo de ideias estruturado; versos brejeiros não anulam um sublime poema de amor. Como os limos que crescem e se agarram às paredes húmidas, ao longo da História também os milenarismos têm agarrado conceitos diversos. No que actualmente vivemos, espera-se que não seja nenhuma teoria económica a salvar doutrinas religiosas, filosofias e artes.

terça-feira, 17 de maio de 2011

O PARAÍSO














Senhoras e Senhoras, Vinicius de Moraes, apresenta: o paraíso.
Sintam cada linha do verso como se fosse a vossa vida e vejam como as coisas podiam ser simples, magníficas, com um sopro de frescura atravessando os seres e sem o peso dos tempos. Ainda temos muito a aprender com os trópicos.

Uma tarde em Itapuã

Um velho calção de banho
O dia pra vadiar
Um mar que não tem tamanho
E um arco-íris no ar

Depois na praça Caymmi
Sentir preguiça no corpo
E numa esteira de vime
Beber uma água de coco

É bom
Passar uma tarde em Itapuã
Ao sol que arde em Itapuã
Ouvindo o mar de Itapuã
Falar de amor em Itapuã

Enquanto o mar inaugura
Um verde novinho em folha
Argumentar com doçura
Com uma cachaça de rolha

E com o olhar esquecido
No encontro de céu e mar
Bem devagar ir sentindo
A terra toda a rodar

É bom
Passar uma tarde em Itapuã
Ao sol que arde em Itapuã
Ouvindo o mar de Itapuã
Falar de amor em Itapuã

Depois sentir o arrepio
Do vento que a noite traz
E o diz-que-diz-que macio
Que brota dos coqueirais

E nos espaços serenos
Sem ontem nem amanhã
Dormir nos braços morenos
Da lua de Itapuã

É bom
Passar uma tarde em Itapuã
Ao sol que arde em Itapuã
Ouvindo o mar de Itapuã
Falar de amor em Itapuã

domingo, 15 de maio de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 18
















De tempos a tempos

Alexandra Pinto Rebelo

De tempos a tempos, surge um mal estar entre as pessoas comuns e a minoria que as governa. Sempre assim foi e, possivelmente, sempre assim será.
Diferente tem sido a forma das pessoas comuns lidarem com isso.
Hoje em dia, por exemplo, os estados modernos formataram o nosso ímpeto político através do conceito de voto. O conceito não está mal pensado. De quatro em quatro anos, ou de cinco em cinco anos, vamos às urnas dar uma espécie de opinião. O voto apenas pode constituir uma espécie de opinião pois, votar em A ou em B, é apenas cumprimentarmos a nossa própria resignação em relação às coisas.
Se tentarmos entender aquilo que se passa, facilmente chegaremos à conclusão de que, os estados europeus, sobretudo os do sul da Europa, chegaram a formas de governo extraordinariamente perversas.
Existem dois grandes grandes partidos com um entendimento entre si de rotatividade do poder. A espera pode ser maior ou menor, quatro ou oito anos, mas o partido que foi o menos votado de ambos tem como certo a tomada dos destinos do país proximamente. Essa espera nem é totalmente desprovida de emoção ou compensação já que, pode-se atacar politicamente o outro partido que governa, enquanto se é compensado com cargos em empresas públicas ou privadas.
O nosso voto tem, desta forma, um único papel. Um papel importantíssimo, não pelos motivos que nos dizem, a nossa opinião contar, mas pela razão de validar esta forma de poder, este entendimento entre partidos.
A democracia não é isto. Isto é o retrato de um monstro mitológico, seja ele qual for, com duas cabeças. De tempos a tempos, vamos dar-lhe o nosso voto, como dantes se levavam jovens ao Minotauro, tentando mantê-lo contente. Sim, é preferível um inferno conhecido a qualquer outro que não se conheça.
Dizia-me o Professor António Feijó que, na América, a democracia funciona mesmo. Se pessoas excessivamente obesas têm dificuldade em passar por portas com medidas standartizadas, eles fazem um abaixo assinado, entregam-no, e o problema é resolvido. Lembro-me de que, quando ouvi este exemplo, pensei “Ah! Então é com isto que se parece a democracia”.
Existirão formas de escapar a esta falácia em que vivemos? Talvez. No entanto, não acredito em revoluções mas apenas na imaginação política. As revoluções são o desespero levado a uma forma de histeria, atacando culpados e inocentes, justificando o caos com uma necessidade arquetipal de justiça.
Nos primeiros tempos de Roma, os plebeus tinham muito poucos direitos quando comparados com os patrícios. Foram feitos vários pedidos para aumentar esses direitos, pedidos esses que não deram em nada. Então, alguém teve aquele toque de imaginação que é raro existir e mais raro ainda ser aplicado. Os plebeus emigraram em massa de Roma e foram instalar-se num local chamado Monte Sacro, perto do rio Anio, com o propósito de fundar ali uma nova cidade, com uma nova política. A cidade de Roma não poderia nunca funcionar sem eles, claro. Por isso, foram enviados emissários, por parte dos patrícios, com a promessa de criação de dois cargos de tribunos da plebe, cuja função seria zelar para que estes não sofressem de abusos de poder. A proposta foi aceite pelos plebeus e assim, regressaram à sua cidade.
Hoje em dia, mais do que nunca, é necessário pensarmos em qualquer coisa semelhante...

EXTRAVAGÂNCIAS, 133












A PRÁTICA DAS PALAVRAS

Cynthia Guimarães Taveira

Primeiro, os monges medievais temiam o seu Deus, temiam a sua punição, a sua justiça-relâmpago e, esse Deus, era como a própria terra: estava no centro do Universo.

Depois, vieram os homens da renascença e disseram: - É o Sol que está no centro do Universo, não a terra, e esse Sol somos nós. O homem é o centro.

Depois veio o papão, e esse papão era tão grande, tão disforme, tão sem-cabeça que o diabo, que havia sido enfraquecido já na Renascença, fugiu. Esse papão é a própria humanidade.

Entrevista de Manuel Luís Goucha a Medina Carreira. Diz o Goucha, depois do discurso confrangedor de Medina:

- Mas então, depois do que me disse, saio daqui sem esperança.

Resposta:

- Mas não saia, Manuel Luís, não saia. Esperança no colectivo não vale a pena ter. Mas tenha esperança no seu percurso individual.

Pois é, pois é, habituámo-nos a uma visão holística de nós próprios: já não nos vemos fora do colectivo, somos nós e as mulheres maltratadas pelos talibãs, somos nós e, ao mesmo tempo, somos as crianças guerrilheiras africanas, nós de barriga cheia mas também a fome assassina, nós e a peste, nós e a guerra, nós e a morte dos outros que vivemos como nossa. Quem precisa de um demónio se os fantasmas reais nos habitam?

É impossível permanecer completamente humano face à dimensão do drama colectivo: almoçamos bem, mas sabemos que há crianças a morrer a cada minuto por não terem almoço; temos um hospital à disposição e, dentro de nós, alguém morre com uma simples infecção; olhamos com ternura os nossos filhos que dormem, mas há um deles, que vive algures dentro do nosso coração-consciência, que pega numa arma e percorre o mato; acordamos de pijama e dirigimo-nos ao duche quente e saboroso e, no nosso interior, alguém tomba com um tiro. É o papão da humanidade que nos percorre como um arrepio permanente. Vivemos arrepiados de terror e, quando o terror é de mais, há um grito em surdina e monocórdico que faz barulho, de tal maneira que nos ensurdece: o grito da justiça. De tanto gritarmos interiormente por justiça já nem ouvimos o próprio grito. E um mundo surdo não se resolve. E assim agonia.

A solução de Medina Carreira é o regresso à selva. Ou isso ou a loucura da impotência. Uma selva de esperança individualista, como a leoa tem esperança numa boa caçada, num bom percurso pela savana, num bom olhar atento e num bom salto sobre a presa, numa boa resolução da sua própria sobrevivência.

A solução está em tornarmo-nos bichos fixados em nós. Desumanizarmo-nos se não queremos enlouquecer. A humanidade não tem salvação, mas nós temos. E até a caridade é um consolo para a alma: fazemos caridade para nos sentirmos bem; desculpabilizamo-nos, assim, da culpa de não sabermos resgatar a humanidade do sofrimento contínuo. Frequentemente se ouve dizer: - Gosto muito mais de dar do que receber. Ou: - Não há nada tão compensador como ajudar o próximo. Ou: - Ganhamos muito mais quando ajudamos do que quando fechamos os olhos e somos indiferentes. A caridade transforma-se num jogo de compensações e a conclusão a que se chega é de um egoísmo retorcido e atroz: afinal somos os grandes vencedores desse estender a mão ao próximo. Há alguns anos, António Alçada Baptista alertava para esse jogo perverso: nas aldeias havia sempre um pobre. Ele era a justificação da caridade das famílias e era mantido pobre para que as famílias pudessem ser consideradas caridosas e assim tivessem um lugar no paraíso celeste. Enquanto existirem maltratados pela vida há céu, enquanto isso existir há esperança. E assim se perde no caminho o sentido de justiça que deveria prevalecer acima do bem e do mal.

Não é em vão que a Bíblia fala num Juízo Final e não num Bem ou Mal Final. Não é a caridade que substitui a Justiça. Daí não conseguirmos separarmo-nos do mundo. Contemos a Justiça dentro de nós como parte integrante da nossa dimensão divina. A Justiça pode conter a caridade ou não. Contemos a Justiça dentro de nós assim como contemos o mundo, e a esperança individual passa sempre pela esperança no outro. Sem ele somos nada e vazios.

A economia a mais também tem os seus perigos. No desespero economicista tornamo-nos individualistas e caridosos. A caridade devia ser substituída pela generosidade.

A generosidade dá e esquece que deu. A caridade não esquece. A generosidade partilha, a caridade é uma falsa partilha, pois quem é caridoso fica sempre a ganhar em termos morais. A pessoa generosa dá até a quem não precisa. A caridade implica carência. A generosidade implica abundância. Nas sociedades tradicionais, as festas eram feitas para esgotar a abundância das colheitas. Nas sociedades modernas pratica-se a caridade para disfarçar a falta de colheitas. A própria natureza sabe ser generosa, mas não sabe ser caridosa.

Há uma diferença pequena entre as duas palavras, mas ela é tudo: é nessa pequena diferença que reside o futuro da humanidade. E então, enfim, entraremos no reino da Justiça.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

ENTENDENDO AGOSTINHO
















Roberto Costa Pinho*

Agostinho e o seu Mistério

Veni Creator Spiritus

Ao contrário daqueles artistas e pensadores cuja vida nega a obra, com Agostinho da Silva dá-se o oposto: a obra só pode ser plenamente compreendida se estiver iluminada pela totalidade da existência. Sua vida confirma e transcende sua obra. A poesia, diria melhor, a utopia que orienta tanto sua ação quanto seu pensamento está solidamente ancorada numa Ética infalível, que pode ser encontrada até nos momentos mais prosaicos da sua vida. A ética, para o cavaleiro Agostinho, era a excalibur com que combatia na sua saga em busca do seu santo graal.
Por ser o símbolo a linguagem que transcende a dualidade verbal, não é possível falar de Agostinho, sendo a unidade que ele é, a não ser em termos simbólicos, a não ser que aceitemos que ao final de sua mensagem ele encanta-se, isto é, transforma-se num símbolo.
Para entendermos este símbolo em que Agostinho se transforma, precisamos daquelas cinco qualidades fundamentais de que fala o Pessoa, sem as quais será inútil interpretá-lo.
Um símbolo é formado por muitos outros símbolos. Agostinho é uma coleção de símbolos a serem interpretados isoladamente, pois cada um tem seu significado, e em conjunto, pois ao unirem-se formam um símbolo único, com significado distinto.
Pensador, filósofo, poeta, político, professor, guia, profeta. Quantos símbolos, quantas faces, quantas existências simultâneas se expressam para formar Agostinho da Silva. Alguma é a dominante? Não. Não é possível compreender a unidade que tal diversidade compõe deixando qualquer delas de lado.
"A verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa".
Por tudo isso, interessa-me em Agostinho o irredutível, o inclassificável, o misterioso.
Agostinho, porém, não tem mistérios!
Bem, este é o seu Mistério! Proponho-me, não a decifrá-lo - correria o risco de ser devorado, como assisti a tantos o serem ao tentar - mas a vivê-lo.
O Espírito Santo - Shekinah é o selo, a cifra, o signo, a chave. Uma chave, não para entender, mas para viver o Agostinho. Trata-se de viver e não de morrer o Agostinho.
Poderemos crucificá-lo no espaço-tempo dos bustos e das biografias ilustres de letras e imagens perecíveis. Ou com ele ascender, transcender, nas asas da sua obra e da sua vida existencial: imortal sempre que vivenciada por nós.

14.05.2005
Véspera de Pentecostes

*Brasileiro, baiano, trabalhou e conviveu com o Professor Agostinho da Silva ao longo de dez anos, na Bahia, em Brasília e em Portugal. Participou da instalação e em projetos do Centro de Estudos Afro-Orientais, do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, do Museu Atlântico Sul, da Casa Reitor Edgard Santos e outros, mas, sobretudo, durante todos esses anos, no Brasil e em Portugal, e até a morte do Professor Agostinho da Silva, manteve, com o mesmo, uma relação, ao estilo tradicional, mestre-discípulo, que determinou em grande parte sua formação e seus interesses existenciais.

Texto recolhido da obra IN MEMORIAM de AGOSTINHO DA SILVA (Portugal: Zéfiro, 2006, p. 403-404).

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O AMOR E A IMORTALIDADE













Na imagem: Pedro e Inês

(Canção Tradicional Portuguesa)

Quando eu era pequenino
Acabado de nascer
Ainda mal abria os olhos
Já eram para te ver

Quando eu já for velhinho
Acabado de morrer
Olha bem para os meus olhos
Sem vida hão-de te ver

domingo, 8 de maio de 2011

LANCES E RELANCES, 3















PORTUGAL ÀS ESCURAS

Eduardo Aroso

Na noite de sete para oito de Maio, passava eu acompanhado de uns amigos na estrada mesmo em frente do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, vulgo Mosteiro da Batalha, quando fui acometido de um súbito mal-estar, desses que não devem estar catalogados nos compêndios de medicina, mas que ainda existem (digo felizmente) em Portugal. Tinha eu sugerido ao condutor do automóvel para abrandar a marcha, já que àquela hora da noite o trânsito era quase nulo, não pondo, por isso, em perigo a manobra progressiva de abrandamento do veículo. Preparávamo-nos para esse olhar que é um olhar que não cansa: contemplar a fachada principal do Mosteiro, porventura o mais emblemático da nossa independência e soberania. Mas – oh, luminoso Arcanjo Miguel! – o monumento estava completamente às escuras! Deprimente panorama. Visão que tudo amesquinha: o espaço ao redor, quem vê e certamente quem é responsável pela situação. Parece não haver um ou dois holofotes para ali colocar, retirados de onde, tantas vezes, abundam em excesso para clarear lantejoulas fúteis.

Portugal só não está todo o santo dia às escuras porque temos a graça do sol, por cujos benefícios nenhuma EDP nos pode cobrar o que quer que seja. Todavia – e isto não é menos grave, devendo perdurar depois de pagos os juros da dita dívida – num outro sentido estamos as vinte e quatro horas completamente às escuras… Essa escuridão não se remove com dinheiro, ou com uma operação de mercados ou com outra acção diferente. Enquanto eu olhava, sem ver, em amargo êxtase, a fachada principal do augusto monumento, quer pela arquitectura quer pelo símbolo que é, ia pensado nos actuais acontecimentos em Portugal e interrogava-me assim: por que é que a chamada troika não “cortou” no excesso de indigência mental que nos governa?

E, enquanto pensava que disto eu nada poderia esperar, ia tecendo silenciosamente um poeminha (como diria carinhosamente Agostinho da Silva), primeiro em jeito de cantiga de alívio, ou escárnio e mal-dizer, como outrora se dizia.

Vem padeira de Aljubarrota,
Deixa agora os castelhanos.
Dá agora nos de cá
Que nos levam ao engano!

Depois, em jeito de prece, pois esta, mal grado os meus pecados, ainda poderia ser escutada por quem, diz-se, tudo ouve:

Nossa Senhora de Fátima
Já perto de Aljubarrota.
Desta vez não há vitória
No fosso da bancarrota.

Mas vós podeis ainda
Muito ajudar Portugal.
Só vós sabeis como evitar
A bancarrota cultural!

sábado, 7 de maio de 2011

A MARGINALIDADE



















"O ser humano singular, que pensa por sua conta e risco e, mais, que tem algo a mostrar (dar) aos outros, nada consegue hoje, apesar de ter liberdade para o fazer. Terá que ser membro de um grupo, associação ou partido, que tenha, como é evidente, número de contribuinte. Já Fernando Pessoa dizia há quase cem anos, mais ou menos isto «quando aparece um grande poeta, quem é que há para dar por ele». Porque agora, mais que nunca, terá que ter uma espécie de “certificação das universidades» ou outra agremiação semelhante.


A fraqueza do pensar é tanta que ninguém acredita verdadeiramente numa ideia nova, num outro caminho."
 
Eduardo Aroso no comentário do texto anterior de Álvaro Ribeiro
 
Comentário ao comentário de Eduardo Aroso:
 
Cynthia Guimarães Taveira
 
Em criança era frequente gozarem com ele na escola e porem-no de parte. Eram as roupas fora de moda que não encaixavam no gosto maioritário. Era um modo de ser, um pouco introspectivo que, de alguma maneira, o empurrava para junto daqueles que, também com uma ou outra característica promotora da diferença, eram igualmente colocados de lado e que, quando não eram alvo de chacota eram higienicamente afastados das brincadeiras: no jogos de futebol, no jogo das escondidas, nas festas de anos. Desde muito cedo o mundo não lhe apareceu ao seus olhos como homogéneo, fazendo ele próprio parte dessa homogeneidade. Pelo contrário, o mundo tinha tendência para se fragmentar e essa percepção era meio caminho andado para uma mentalidade com tendências esquizofrénicas, algo a que escapou por pouco devido ao seu temperamento místico que o incentivava, em contradição, a unir o que estava aparentemente separado.


Crescera na margem e apaixonara-se na margem: o primeiro amor havia sido proibido pela sociedade; gostar de alguém assim, como uma deficiência tão visível, tão chocante? Como era possível tal coisa? perguntavam os amigos e a família. Mais uma vez, agora na adolescência, alvo de olhares, de dizeres murmurados ao ouvido com a mão à frente.

Estranhamente, porém, desenvolvera, graças a esses episódios frequentes, uma força interior diferente. Quase cristã. Entendia Cristo, não pela sua entrega à humanidade, mas pelo facto de ter sido mal entendido. O seu sentimento de um Cristo só e traído era afinal um caminho, de alguma maneira religioso. Sentia que havia um caminho que lhe aparecia como uma contra-corrente, era um caminho estreito, que percorria a correnteza da sociedade e das massas mas em sentido contrario: havia nele a densidade e a integridade, bem como a teimosia e a fidelidade ao seu coração. E sabia que só tinha dado conta da sua existência graças às margens às quais fora votado e não naturalmente procurado. Daí não se poder dizer que houvesse a escolha da rebeldia: a rebeldia, de alguma forma, pelos insultos e pela incompreensão, escolhera-o a ele, de uma forma mais pacífica do que à primeira vista e persistente.

Chegara à conclusão que era a própria sociedade que criava as suas margens, as suas próprias contra- correntes. Ele nada mais era senão um instrumento do destino. E assim, do lado de fora, conseguia ter a percepção da marcha das massas e para onde se dirigiam. Passara de participante a observador e assim poder-se-ia falar de um teatro completo, de um cenário com actores e com público. Não havendo nem o muito certo, nem o muito errado, tudo o que enfrentara até aí tinha, afinal, a sua razão de ser:

Ele representava as ideias de um futuro esperado, mais cedo ou mais tarde encontrado e, quando isso acontecesse, seria a vez desse futuro criar as suas próprias margens num movimento intermitente no tempo até ao infinito. Por isso os antigos falavam de ciclos, do Tao, de um salto entre o branco e preto como lei da vida.

O papel da extravagância é sempre o de provocar o futuro, e nesse futuro há uma correcção implícita dos erros do presente.

Ser extravagante é estar sempre na cruz, e, no entanto, é lá que, no pino da morte, os céus se abrem. O pino da dor é o ponto em que se salta para a dimensão da próxima etapa: esteja ela num céu místico e interior, esteja ela na terra embutida de erros. O mundo limita-se a espelhar o nosso próprio caminho, e o nosso caminho é um espelho do mundo. Entre as margens ou nas margens, o sopro do Espírito Santo vai cantando as suas melodias, quando o amor sublime se solta e voa livre por este e outros mundos.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

PALAVRAS QUE FAZEM VER



















Álvaro Ribeiro e os livres pensadores

“Nenhuma escola, nenhuma seita manifestará benevolência para com o homem extravagante que pensa de modo diferente dos outros, nem quererá atrai-lo para o seu grémio. Esta verdade reflecte-se ao conhecido provérbio: O saber não ocupa lugar. De aí a tendência para negar justiça àquele que for sincero no falar e no escrever. A liberdade de pensamento é assim diariamente limitada pela crítica moral, política e religiosa, num processo que só terminará pelo nivelamento final das inteligências.”

Álvaro Ribeiro, “Escola formal”, Guimarães Editores, s.d, pág. 10

quinta-feira, 5 de maio de 2011

MAIO



















A Perfeita Harmonia

Maio é o tempo da perfeita harmonia.
Trajado de negro, mal rompe a luz
O melro canta uma canção de clara alegria.
Nos campo se abraçam as flores e as cores.

O cuco saúda o Verão majestoso com galhardia.
Passou o tempo dos dias ruins, a brisa é doçura.
No bosque as árvores de folhas se vestem
E se foram nuas agora são sebe de verde espessura.

O Verão vem chegando e corre sem pressa a água no rio.
Manadas ligeiras nas águas mansas a sede saciam.
Na encosta dos montes se espalha o azul do cabelo da urze
E frágil e branca se abre a flor do linho silvestre.

A pequena abelha, de fraco poder, carrega em seus pés
Rica colheita oculta de flores
Dos verdes prados. Na sua tarefa não há fadiga:
A formiga vai e depois vem para logo ir e nunca parar.

Nos bosques a harpa tange melodias, música de paz
Que acalma a tormenta que o lago agitara.
E o barco balouça de velas dormidas
Envolto em bruma da cor das flores do tempo de Maio.

Na seara escondida, e de sol a sol, solta a codorniz
Um canto de energia como um bardo real.
Esguia e delgada, mui branca e pura, saúda a cascata,
Em murmúrio de prata, a calma serena do arroio que a bebe.

Ligeira e veloz, no céu a andorinha é um dardo negro.
Há música que paira na encosta e no vale, nos montes em volta, a cintilar.
Os frutos do Verão já se anunciam em gomos formosos.
Cantam as aves na ramaria e no rio os peixes pulam e saltam.

O vigor dos homens de novo renasce e ao longe a montanha
Mostra sem medo sua glória, altiva e sem mácula.
Da crista ao chão, as árvores do bosque são uma festa
De verde e de folhas; e a planura é um lavor de cores e flores.

Os dias de Maio são de alegria e de esplendor
Quando as donzelas sorriem de orgulho pela sua beleza
E os jovens guerreiros se mostram mui hábeis, ágeis e esbeltos.
Os dias de Maio o Verão anunciam, o tempo é de paz.

E no céu azul há uma criatura que é ave inocente.
Pequena e frágil, de límpida voz da água clara,
Canta a cotovia maravilhas e contos em que apenas diz
Que a perfeita harmonia é o tempo de Maio.


Poema Irlandês, Autor desconhecido (séculos IX-X), retirado do livro "A Perfeita Harmonia -
poemas celtas da natureza", tradução de José Domingos Morais, Edições Assírio & Alvim, 2004,
Pág. 16

terça-feira, 3 de maio de 2011

ANTÓNIO TELMO, SEMPRE















“ O «ocultismo» (hoje prefere-se dizer «esoterismo») não é evidentemente aquilo que nos livros se expõe de ocultismo. As almas melancólicas são atraídas pelo esplendor de mistério que deles se desprende, mas também pelo jogo fácil e bizarro de imagens, aparentemente distantes, que se projecta, conduzido pela metáfora, no espelho das correspondências. Nos espíritos mais experiente e adultos, o movimento das imagens obedece a leis precisas da razão poética.


Com a ideia de impedir que a arte poética degenere nesse jogo da fantasia onde a relação de géneros pela metáfora não culmina num género superior, unitivo e iluminante, mas se perde num associar de fantasmas mentais ad infinitum, automático e vazio, tentaremos nesta introdução mostrar algumas directrizes essenciais para um organon da razão poética especulativa.

Não há progressão sem movimento triádico. O paradigma da progressão é o andar do homem que se faz a três tempos e não a dois, porque o esquerdo e o direito estão misteriosamente ligados a um centro de energia no baixo ventre. O pensamento metafórico automático procede da relação de duas colunas, representáveis na tábua pitagórica transmitida por Aristóteles:

Limite               Ilimitado
Ímpar               Par
Uno                 Múltiplo
Direita              Esquerda
Masculino        Feminino
Imóvel             Em movimento
Rectilíneo         Curvilíneo
Luz                  Treva
Bom                 Mau
Quadrado        Oblongo

Seja qualquer ser sensível, o sol, por exemplo.

Ligando-lhe um predicado próprio, diremos que «o sol é luminoso». Aquilo que na coluna de correspondência, onde está Luz, no vai permitir fazer depois, é atribuir ao substantivo sol predicados sucessivos relativos aos restantes termos. Assim, o sol é luminoso, masculino, par, bom, e, perante um absurdo inevitável como o de dizer que é quadrado, será também possível tomá-lo por um outro aspecto que é aquele pelo qual determina os quatro pontos cardiais.

A imagem do sol sugere a imagem da lua. O aprendiz da arte poética põe-na em relação com a outra coluna: a lua é feminina, por exemplo. Desenvolve depois operações mentais similares.

Por este procedimento, no qual deslizam frequentemente as almas poéticas preguiçosas, é possível ligar entre si todos os seres sensíveis e todas as ideias, enquanto imagens, repartindo-os em duas grandes ordens de contrários. Como, por outro lado, cada ser sensível é curvo num aspecto, rectilíneo noutro, luminoso ou impar ou masculino e os seus contrários se o aspecto muda, o procedimento acaba por identificar o dois, regressa de novo ao um.”

António Telmo em “Gramática Secreta da Língua Portuguesa”, Guimarães & Cª Editores, 1981, pág. 9,

segunda-feira, 2 de maio de 2011

domingo, 1 de maio de 2011

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 53

António Carlos Carvalho

No passado Sábado, ao sairmos de Sesimbra, depois de um animado debate em torno das inevitáveis questões que o pensamento de António Telmo nos coloca constantemente e face à perplexidade que esta época terrível do País nos suscita (o que fazer? Como sairmos desta? Quem nos mostra novamente o caminho? Etc., etc.), lembrei-me outra vez da Arca de Noé. Isso mesmo, a famosa Arca.

Na verdade, a Arca tem andado comigo, às voltas na minha cabeça, desde há muito tempo - e mais agora, que acabo de traduzir um romance em que ela é personagem principal… Lembro-me, aliás, de ter visto, em 1987, aquilo que é apresentado no Museu do Patriarcado da Arménia como sendo um fragmento autêntico da Arca, um pedaço de madeira velha e ressequida, exposto aos olhos abismados do visitante.

Mas a Arca é muito mais do que uma relíquia bíblica, para uns bem real, para outros uma quimera ou uma fantasia piedosa. A Arca, para mim, e talvez para alguns, é um símbolo do que devíamos construir novamente neste tempo de outros dilúvios.

Trata-se, afinal, de preservarmos o legado precioso que nos deixaram os nossos maiores, entre eles o que continua mais perto do nosso coração e da nossa cabeça (António Telmo), e de transmitirmos essa herança, se possível acrescentada com os nossos contributos, aos nossos filhos e netos, ameaçados tal como nós por um «apagão» da memória, da identidade, da língua, da pátria e da mátria, face ao que ameaça aniquilar-nos agora e mais adiante.

Até mesmo a preservação das espécies está agora novamente em causa, e entre elas a espécie humana, a do verdadeiro Homem, com H maiúsculo, situado num certo espaço, falando uma certa língua, vivendo numa certa cultura.

António Telmo foi, é, e continuará a ser o mais perto que conseguimos conhecer de um Homem Justo que nos indica o caminho e o meio de escaparmos destas novas-velhas catástrofes. E sem nenhum dos defeitos de Noé (que era pouca coisa, embora o melhorzinho que então havia…). Buscou a luz entre as trevas e as ilusões. Quis sempre ser maior do que era. Usou a liberdade dos filhos de Deus sem se deixar prender por nenhuma amarra. Navegou pelo dilúvio da vida do Mundo Moderno confiando sempre na promessa de um lugar de paz, de verdade e de justiça. Sabia, de ciência certa porque iluminada, que um dia chegaria à sua Ilha do Amor.

Ensinou-nos, pelo seu exemplo, como se navega em águas tormentosas que duram muito mais do que quarenta dias e quarenta noites.

Porque as navegações, e os descobrimentos, não acabaram. E a necessária Arca ou Barca está em nós - somos nós. Uma Arca feita de palavras (como a original, tal como explica a etimologia hebraica) e das acções a que elas nos conduzem ou impelem, necessariamente.

Diante de nós, um dia destes, vai surgir um novo arco-íris, um símbolo da Aliança.

Para que tudo recomece - desta vez bem. Esperemos. Assim seja.

AS ESTRELAS DO FIRMAMENTO PORTUGUÊS














Ao Pedro Sinde, depois de o escutar, hoje em Sesimbra

Cynthia Guimarães Taveira

A diferença do nosso amor à sabedoria

Não há filosofia portuguesa porque aquilo que há não é uma disciplina. Há um amor à sabedoria, génese, de toda a filosofia.

Como não há filosofia portuguesa, nem tão pouco filosofia em Portugal, também não há mestres e alunos, nem mestres e discípulos. Há conversas e silêncios, cartas que se trocam, olhares que percorrem o horizonte e se fixam num ponto comum.

Há um passeio de almas dadas e memórias e vivências. E as almas assim dadas, dão passos novos e velhos todos os dias. Há um reencontro nas palavras escritas, um reconhecimento da verdade, acima dos mestres. E essa verdade só tem sentido com a liberdade.

No amor à sabedoria, em Portugal, dá-se o fenómeno raro da condução pelo destino. O destino aparece, bem vestido, fingindo que é o diabo, pega na mão do neófito e fá-lo caminhar pelo atalho dos acasos e pela estrada larga das coincidências. Muitas vezes morre, e assim se deseja, para voltar a nascer. Não progride na disciplina: morre e vive, alternadamente.

O atalho dos acasos condu-lo à presença de alguém, às vezes mais novo, às vezes da mesma idade, e esse alguém vai ser o companheiro das tertúlias que são sempre namoros à sabedoria.

A estrada larga das coincidências condu-lo ao propósito de um céu que sonha para que a obra se faça.

Não há filosofia portuguesa porque somos poetas. E somos poetas mesmo quando não escrevemos versos. Somos poetas no ser e no desejo. Um mundo é uma escrita que pede para ser rescrita com letras escolhidas pelo nosso coração, lugar de Deus, infinitamente sensível.

Na escrita do nosso amor à sabedoria há sempre um leitor, perdido na fiada do tempo, que no momento em que lê, grita no silêncio da sua noite tranquila: - É isto!

No nosso amor à sabedoria há tanta ciência como poesia, tanto engenho como arte. E o desejo é sempre o da sabedoria última e que esta viva em nós em cada gesto. A sabedoria que procuramos só tem sentido se for traduzida no gesto.

Não há filosofia em Portugal nem filosofia portuguesa. Mas há amigos que do fundo do coração, choram, honram e veneram os seus amigos, com quem passearam, com quem escutaram o pulsar da natureza e a melodia secreta que dela se escoa, ascendendo até ao espírito, ao Logos, ao eterno presente.

Há amigos que viram as mesmas estrelas e que partilharam a sua luz. Isso é afinal uma filosofia portuguesa, vivida e criada em Portugal. Há filosofia portuguesa e filosofia em Portugal. E basta haver uma lágrima por ela vertida para estar viva. E está viva. Que mais podemos desejar?

(Este texto situa-se entre a existência e a não existência de filosofia portuguesa, cabe ao leitor experimentar a profundidade da nossa filosofia: tão profunda que chega a fingir que não é, aquilo que deveras é…)