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domingo, 22 de maio de 2011

LANCES E RELANCES, 4













«CRISE NA IGREJA» (!)

Eduardo Aroso

«Nós os vencidos do catolicismo

Nós os vencidos do catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido misticismo
nos acordes dos carmina burana

Nós que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos

Já nenhum garizim nos chega agora
depois de ouvir como a samaritana
que em espírito e verdade é que se adora
Deixem-me ouvir os carmina burana

Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos o jogamos
«Meu deus meu deus porque me abandonaste?»

(Ruy Belo «A solidão dos filhos de Deus» )

«Crise na Igreja». Três palavras enormes. Li-as numa das paredes exteriores de um templo, como anúncio de encontro/colóquio. Algo surgiu em mim instantaneamente, embora esta palavra seja pouco propícia ao pensamento filosófico ou reflexivo. Todavia, o instantâneo pode não ser intuição, faculdade esta a que Bergson deu bastante luz e revestiu de uma mais alta compreensão, sobretudo no mundo académico.

O meu coração, intuitivamente, só não se amargurou por saber que Deus não tem crise e, assim, a frase só pode espelhar a crise da Igreja enquanto instituição, coisa aliás de importância secundária.

A crise na Igreja pode ser sintoma de um modo de ser que oscila entre a conveniência da moda e o que, ao invés de ser afastado, urge doutrinalmente aproximar do público, pelo menos daquele que mostre inclinação para tal. Se assim não for, quanto a este último ponto, teremos muita ênfase na instituição e pouca no «corpo espiritual» de que falava S. Paulo, muito embora ele lá esteja, perene, irradiante e irradiando.

Este quadro, o da crise da Igreja como instituição (ou de qualquer escola de pensamento onde há, de facto, espírito) deve por certo ser considerado como, de tempos a tempos, cuidamos da nossa casa e porventura a arrumamos de modo diferente. Mas numa crise (!) da Igreja enquanto «ecclesia » ou «corpo místico», que está nos antípodas do efémero, só podemos admitir o absurdo de que o Criador está afectado também pela dita crise! Deus está entre e para além do primeiro e do último suspiro. Agostinho da Silva disse haver pessoas que, por tanto atribuírem importância ao diabo, acabam por desvalorizar Deus, expressão que pode ilustrar, com o humor sério e profundo do saudoso professor, o tema deste pequeno artigo.

Os modos de pensar e agir automáticos tomaram conta da sociedade, até em sectores onde era suposto não dever acontecer, dado o carácter intrínseco de permanência em grau considerável que doutrina e filosofia possuem, realidade que não choca com a frase camoniana «o mundo é composto de mudança», se interpretada no devido ponto. A verdade é que as grandes provas são, antes de mais, lançadas aos guardiões do sentido sagrado da Palavra, e só depois aos que a escutam. O Mestre sabia do que falava quando lançou o repto a Pedro que, afirmando sempre que jamais negaria o seu Senhor, acabou por negá-lo, por mais que uma vez. Afinal, tudo são passos no caminho da realização.

Sabemos que a crise portuguesa, no seu mais profundo sentido, tem pouco a ver com os últimos anos de governos e desgovernos, mas que é o desfecho irreversível de um ciclo que se iniciou com o Marquês de Pombal e que agora agoniza em toda a diversidade das instituições, realidade histórica esta que Joaquim Domingues, com o rigor que lhe assiste, tem assinalado nos últimos tempos. Quem se considera na medula da crise fica apenas na instituição ou ao sabor do mercado, ou então, internamente, é impelido a uma reviravolta (se a sua consciência o mortificar), e aí temos o sentido grego de crise como crescimento. Ou então há que escutar de novo «Bem -aventurados os que têm fome e sede de justiça».

Crise na Igreja ou Crise da Igreja? Crise da filosofia ou crise na filosofia? Crise da poesia ou crise na poesia? Um pretenso pensador internamente desorganizado não invalida a irradiância de um corpo de ideias estruturado; versos brejeiros não anulam um sublime poema de amor. Como os limos que crescem e se agarram às paredes húmidas, ao longo da História também os milenarismos têm agarrado conceitos diversos. No que actualmente vivemos, espera-se que não seja nenhuma teoria económica a salvar doutrinas religiosas, filosofias e artes.

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