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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



terça-feira, 28 de setembro de 2010

RAZÃO POÉTICA, 7


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Isabel Xavier ou a arte de sentir*

Para os Teoremas de Filosofia, um dos maiores acontecimentos espirituais foi sem dúvida o de ter sido editado sob o seu patrocínio o livro de Isabel Xavier Catedral. Isabel Xavier tem colaborado nos Teoremas com algumas poesias. O livro é ilustrado por outro nosso colaborador, o pintor de Vila Viçosa Carlos Aurélio. São dois nomes que não dizem nada ou pouco mais que nada ao público culto, mas que são de dois espíritos verdadeiramente interessados pelo que mais importa.
Os poemas de Isabel Xavier pertencem àquela espécie que Eugénio de Castro, discípulo português do rosa-cruz Péladan, caracterizou como oaristos pelo nome do livro que o tornou célebre. Saber tudo quanto se implica nesta designação constitui o melhor comentário de Catedral.

A palavra oaristo não é de uso comum, até entre os literatos ocultistas que lêem e admiram o poeta rosa-cruz. Quem a elevou àquele plano em que a palavra se torna pensamento e o pensamento se faz luz foi Álvaro Ribeiro. Usou-a como a palavra mágica capaz de desvendar os segredos da linguística, até agora encobertos por uma ciência mais preocupada com a linguagem plebeia do que com as formas que a língua recebe quando trabalhada por mentes superiores.

“Cada idioma, escreve o insigne filósofo na página 178 d’A Razão Animada, é um órgão invisível que pode ser configurado mediante sinais gráficos e tipográficos, mas que exerce também funções indiscerníveis pela análise literal ou gramatical. No âmbito de cada idioma vão dialogando os seres humanos, e realizam conhecimento ou ciência, na medida em que continuam a relação de espírito a espírito. Fácil será inferir, portanto, que o diálogo mais profundo, de maior alcance gnósico, sófico e pístico, tem a designação clássica de oaristo”.

Qualquer dicionário nos diz que oaristo é o amor conversado, a conversa que precede, acompanha e amplia a união dos amantes, do amigo e da amada. Seu alto paradigma é o Cântico dos Cânticos. Aquilo que, vivendo o seu romance, eles murmuram, ciciam ou falam “humaniza a vida erótica para a transformar em vida de amor”. Continua Álvaro Ribeiro: “O ritual, por intermédio do mito, daquilo que se diz, vai até à porta do indizível, ou do mistério, e assim ascende à dignidade da liturgia. Sem palavras valorativas de bondade, de beleza e de verdade não pode haver linguagem comunicativa de graça entre os amantes.”

Sublinhamos “à dignidade da liturgia” para lembrar que, durante o sacramento do matrimónio, os ministros são os próprios noivos.

Há, nas linhas transcritas d’A Razão Animada, o princípio de uma teoria do conhecimento que, existente já, embora por modos e expressões diferentes, em Sampaio Bruno e em Leonardo Coimbra, em Álvaro Ribeiro se compõe com uma forma superior de linguística à qual convém chamar, com inteira propriedade, oarística.

A analogia do amor com o conhecimento é uma das linhas de força da tradição judaico-cristã, como se vê pelo Génesis onde se diz que Adão conheceu Eva, isto é, se uniu sexualmente com ela (depois do pecado original, convém dizer-se) e como se vê pelo Evangelho, no relato das bodas de Canaan, quando Cristo a pedido da Mãe transformou a água em vinho.

Por tudo isto se compreende como para Álvaro Ribeiro, pensador da tradição judaico-cristã, o conhecimento seja, como a etimologia ensina, “uma relação de sujeito a sujeito, e humanamente uma relação social de espírito a espírito”. É o que nos diz a página 151 d’A Razão Animada, após ter sido afirmado que as gnoseologias dualistas se lhe afiguram incapazes de explicar o conhecimento pelas relações do Sujeito como o Objecto. Nesta relação, o dualismo resolve-se por redução a um monismo. Ou o sujeito cria o objecto e temos o idealismo ou o objecto reflecte-se no sujeito e temos o materialismo. Há, no primeiro caso, uma assimilação do objecto pelo sujeito, e, no segundo caso, uma assimilação do sujeito pelo objecto. As filosofias germânicas e suas adjacentes, onde, como se sabe, aquela relação, (S – O) é predominante, lidam com uma forma de conhecimento que, por analogia, podemos explicar, recorrendo de novo à Bíblia, como a manducação assimilante do fruto proibido e, por conseguinte, como um acto de baixa magia. Esta linha de pensamento afirma o valor do pecado original e vai levar a ideia, pelo seu prolongamento em ciência do bem e do mal e em tecnologia, até às últimas consequências no domínio da biologia. O oaristo acaba quando as palavras degeneram da imaginação para o sensualismo, tendendo a cingir a mulher como objecto, em vez de por metáfora formarem, analogia com o que acontece no Cântico dos Cânticos. Agostinho da Silva, outro discípulo maior de Teixeira Rego e de Leonardo Coimbra, escreveu algures que só se amam verdadeiramente o homem e a mulher que se amam em Deus. O que equivale a dizer o que os mestres de Cabala ensinavam: há três associados que presidem ao concebimento de uma criança, Deus, o pai e a mãe.
A elevação, proposta por Álvaro Ribeiro, da linguística a oarística funda-se na ideia de que, nas formas superiores de linguagem em que se exprime o sobrenatural, todos os fonemas, todos os verbos, todas as frases se devem compreender como uma misteriosa conversa entre o amante e a amada, até quando ali pareça que se fala de outra coisa. É isso que nos permite ver na poesia de Isabel Xavier um oaristo continuado, até quando pareça não falar do amor. E tudo isto por virtude de um dom feminino raramente tido. Isabel Xavier pensa com o sentimento.

António Telmo
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* Publicado originalmente no n.º 7 da revista Teoremas de Filosofia (Primavera de 2003); e depois em Viagem a Granada (Lisboa, Fundação Lusíada, 2005).

1 comentário:

  1. De cada vez que leio este texto de António Telmo, descubro nele algo novo.

    Se para mais nada tivesse valido o livro "Catedral", já tinha valido de muito por ter suscitado este escrito tão belo, profundo e em que tanto se aprende. Palavras que nos fazem ver.

    Que grata estou a António Telmo!

    Justo é destacar na "Catedral" o contributo decisivo das ilustrações de Carlos Aurélio, que trazem luz aos poemas de um modo muito particular.

    A minha gratidão a Joaquim Domingues, quem executou e teve a ideia de colocar os poemas que eu ia escrevendo em livro. Sem a sua preciosa capacidade de concretização este livro nunca teria sido possível.

    Agradeço ao Pedro Martins esta série de poemas que tem colocado no blogue.

    - Isabel Xavier -

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