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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

AGOSTINHO, 104 ANOS DEPOIS, 4


Reflexão à margem da Literatura Portuguesa*
Tomando como um todo a cultura peninsular, talvez nela não encontremos, não digo uma característica, mas pelo menos um movimento ou um problema mais constante do que o de querer determinar se na realidade a Espanha, aqui no sentido de toda a Península, se deve dedicar, por ter atingido a Plenitude do que é melhor para o mundo, se deve dedicar à tarefa de hispanizar o dito mundo; ou se, modestamente reflectindo no que lhe falta e considerando desejável o que não tem, se deve, pelo contrário, matricular numa espécie de escola de universalismo, como moço de aldeia que afronta pela primeira vez, porque ele ou a família o acharam desejável, ou simplesmente o Estado o tornou obrigatório, a cultura elaborada nas cidades e por elas imposta. Hispanizar o mundo, ou às vezes, apenas a Europa, por quanto se sabe que através dela, na sua época áurea de expansão, o universo se teria hispanizado, eis um dos termos do dilema; europeizar a Espanha, eis outro dos termos do dilema.
Acontece, porém, que não só, e em primeiro lugar, a atitude inteligente e largamente humana não é a de aceitar dilemas, mas ou a de mostrar que são falsos ou a de se encarreirar a terceiras soluções de que o lógico se não lembrou, a não ser que lhe não fosse conveniente pô-las; como também, e em segundo lugar, conviria saber de que modo a Espanha já é suficientemente hispânica. Isto é: se na realidade, antes de procurarmos resolver o tal problema em face da Europa, não teremos de resolver o problema em face de nós próprios. Porquanto pode perfeitamente suceder que, em virtude de várias circunstâncias históricas, e poderemos pôr assim a questão, para não termos de entrar na discussão sempre enfadonha e dificilmente terminável de quem teve ou não teve a culpa, pode ser que, em virtude de das tais circunstâncias históricas, a nossa Península nunca tivesse podido desenvolver-se plenamente, e todo o resto venha daí.
Por um e outro motivo, pois, deixaremos de lado o tomar parte na polémica que opôs, por exemplo, Verney e gente do anti-Novo Método, Feijóo e gente do anti-Teatro, e, mais modernamente, Gasset e Unamuno ou metade do dito Unamuno à outra metade de Unamuno. Nitidamente nos recusamos à batalha. O que não quer dizer que se não tenha uma ideia muito clara do que vale a Europa em face da Hispânia. Não creio que a verdadeira cultura e a verdadeira humanidade e o verdadeiro futuro do mundo estejam para lá dos Pirenéus; não creio que aquilo a que se deveria chamar a Europa, excluindo cuidadosamente não só a nossa Península Ibérica, mas igualmente o Sul da Itália, daquilo a que hoje se chama Europa, não creio que a Europa da gente loira, ordenadora e filosófica seja muito mais do que isso, ordenadora e filosófica, e possa ver-se livre, a não ser por uma transformação que lhe atingiria o próprio cerne, daquele feitio utilitário, prático e mecânico, que a América do Norte, sua herdeira, levou às últimas consequências.
Agostinho da Silva
* excerto retirado do livro homónimo, publicado em 1957

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