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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



sexta-feira, 1 de outubro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 101



António Telmo
Rodrigo Sobral Cunha

Texto lido em homenagem a 16 de
Setembro na Biblioteca Nacional

A presença de António Telmo surgia como um grande silêncio pela brisa da tarde e quando falava a voz era cava e como que murmurejava num português claro, assemelhando-se sob estes aspectos ao mar. Os seus gestos eram calmos e movia-se como um carvalho na ciência do ser. Amava a amplidão do horizonte e a sua paisagem era a planície alentejana sob o límpido azul.
Tudo nele estava orientado para a acção do intelecto em convergência com a imaginação, ao que designava razão poética, e o seu modo de estar nobremente criacionista traduzia isto mesmo em toda a linha. Se lhe acontecia encontrar-se em situação de passividade, vítima da razão patética, pouca coisa levava a sério, embora o sentido da atenção nele fosse como uma corda firme. Frugal quanto às aparências, tinha um elevado sentido da beleza e gosto aristocrático que completava com as virtudes da veracidade e da lealdade.
De António Telmo, que pensou sempre com todo o seu ser, se pode dizer que era feito da madeira subtil da árvore da filosofia portuguesa; dessa árvore ignota cuja copa, tal como as raízes extremes, no reino da luz se aloca.
Interpretando o pensamento de seus mestres José Marinho e Álvaro Ribeiro, aprendeu a conciliar no seu os de Platão e de Aristóteles. Teve Platão por “o maior pensador europeu”. Com Sampaio Bruno aprendeu o exercício hermenêutico de extrair a luz da obscuridade e com Leonardo Coimbra aprendeu a graça inventiva desse “amor amante” que se verbaliza e faz gesto irmanando a luz. A Agostinho da Silva, a quem designou “Monarca do Espírito”, convidá-lo-ia para padrinho de sua filha, pondo ao filho o nome de Manuel. A propósito das Três Meditações sobre o Êxtase de Dalila Pereira da Costa, que contou também entre os seus melhores amigos, escreveu António Telmo: “tendo eu percorrido numa longa viagem as várias obras-primas da literatura esotérica – árabes, judaicas, cristãs da Alemanha, da Itália ou da Inglaterra –, em nenhuma me foi dado encontrar, em meditação do êxtase, um texto tão inteligente, tão exacto, tão lúcido, diria mesmo tão racional, e, no entanto, quase só constituído por interrogações.” Num certo sentido, pode dizer-se dele que leu ou viu tudo; de Oriente a Ocidente e de Ocidente a Oriente.
Uma das mais altas inteligências que tem conhecido Portugal, calhou-lhe na sorte, entretanto, dar aulas a crianças em Estremoz. Aí lhe sucedia ensinar, por exemplo, quem fôra o primeiro rei de Portugal e quais os seus feitos, enquanto fazia os sumários reproduzindo os programas ministeriais. Um dia colocou em exame aos seus alunos essa mesma questão: quem é o rei de Portugal (por antonomásia) e quais os seus feitos? Metade das respostas dos meninos afiançaram que era o “Zé Maria”, o contínuo da escola (que informava os alunos no recreio que era ele quem ali mandava). Este género de historietas sérias e outras histórias de outra natureza, eram correntes no círculo de amigos de António Telmo, círculo que ele mesmo animava com iniciativas que iam do comentário de livros e acontecimentos a discretas intervenções públicas sempre comunicadas a poucos. O convívio com o filósofo estava imbuído de uma atmosfera rarefeita, sem nuvens; e se algumas apareciam, dissolvia-as rapidamente o seu fino sentido de humor.
Entende António Telmo o diálogo como uma arte gnósica mediante a qual a verdade, depois de percorridos certos passos, se revela aos intervenientes através de uma sublime espécie de diafaneidade. O silêncio era substante a todo o diálogo com ele, supervisionado pela presença do espírito. De quem desconhecesse a capacidade do silêncio e da fala autêntica, o nosso filósofo afastava-se simplesmente sem qualquer palavra. O que naturalmente dava azo a vulgares opiniões, consignadas na sentença de Heraclito: “Os cães ladram aos desconhecidos”.
Para António Telmo o mundo, ou melhor, o Universo é uma interioridade a pensar. Significa isto que o “universo”, como o vê a ciência, é simplesmente exterior, oco até; não tem ressonâncias com as vivências do homo scientificus. Em contrapartida, “sagrado” (ou secreto) é o Universo experimentado com nosso inteiro ser; ou seja, com aquilo que em nós é capaz de intuir o uno e o diverso, discernindo para melhor compreender a plural vida do Universo. Ora, no pensamento de António Telmo uma tal compreensão é o que propicia a verdadeira imaginação.
Pela razão poética especula o filósofo acerca das imagens vivas que o movimento noctidiurno exibe e esconde à sensibilidade e à inteligência, entre luz e treva. O pensamento criacionista de António Telmo deve ser visto como uma teoria operativa, pois a contemplação nele é acção sublime que, iluminando o ser, esclarece o Universo, até ao seu essencial mistério.
Tendo feito seu o pensamento de Fernando Pessoa – “Minha pátria é a língua portuguesa” –, a obra de António Telmo procurou sempre a sabedoria interior da janela da língua portuguesa, desta feita totalmente aberta para o Universo.
Gostaria de terminar recordando as seguintes palavras concedidas pelo filósofo a uma entrevista: “Um dos sinais do Quinto Império é que ainda há andorinhas. O provérbio diz que uma andorinha não faz a Primavera. Mas eu acho que faz. Enquanto houver um homem onde resida a espiritualidade, há sempre um princípio do Quinto Império.”

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