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domingo, 29 de agosto de 2010

JAIME CORTESÃO, 50 ANOS DEPOIS, 9

“A que vinha e que significado podia ter esta cerimónia de Coroação do Imperador?
“Quando nos lembramos de que o problema máximo da política na Idade Média foi o da investidura, ou seja da coroação do imperador da Alemanha, a cuja família pertencia a Rainha Santa, prerrogativa que o Papa reivindicava como sua, própria e exclusiva, mas que os soberanos e os espirituais lhe negavam; e que esse conflito esteve particularmente aceso ou reaceso nos fins do século XIII e começo do seguinte, torna-se evidente que a cerimónia, logo tão rapidamente estendida a todo o Reino, representava, e não podia deixar de o ser, o mistério litúrgico dum culto que negava a autoridade do Supremo Pontífice, por consequência herético, e que, ao contrário, proclamava a supremacia triunfante do poder civil.
“E como explicar essa rápida difusão no País, então sob a influência dum sentido de vida laico e civilista? Só uma Ordem religiosa de acordo com esse espírito a poderia ter levado a cabo. E outra não havia senão a dos Franciscanos. Uma prova temos desse facto. A única província de Portugal, onde não encontramos rasto do culto do Espírito Santo, sob a forma de Império, é a de Trás-os-Montes, também aquela onde nos séculos XIV e XV a Ordem dos Franciscanos menos influiu. O que vale dizer que a heresia dos espirituais teve larga difusão em Portugal.
"Mais tarde a Igreja esforçou-se vitoriosamente por incorporar à ortodoxia o culto do Espírito Santo, facto de que já existem seguros indícios na segunda metade do século XV. Mas ganha então um significado que já não entra nesta época e nesta lição.
"Heterodoxo, o culto do Espírito Santo, sob a forma que acabámos de descrever, devoção máxima do povo português durante os séculos XIV, XV e XVI, constitui o prólogo religioso, mas herético, dos Descobrimentos. O descobrimento duma verdade nova implica, por via de regra, a negação dum dogma. No acto de descobrir existe sempre, em potência, uma heresia e uma fé nova. Neste caso, heresia contra a ciência da Antiguidade, que reduzia o diâmetro do Planeta, considerava o oceano inavegável e a zona tórrida inabitável; heresia contra o espírito de confinamento e quietismo anterior a São Francisco; e contra a crença de que a Terra era apenas um lugar de expiação; fé nova na bondade da vida terrena e na excelência da Natureza; no dever de identificar-se com o espírito divino e criador; e em que, no plano da humanidade, descobrir o mundo era a segunda criação.
“Agora podemos definir o sentido da cultura em Portugal no século XIV, como sendo laico, até prescindir da intervenção da Igreja na realização do casamento; civilista, até negar ao Papa o direito da investidura e democratizar a coroação; experimental e expansionista, pelo espírito de dúvida e a negação da autoridade dos Antigos, princípios que presidiram aos primeiros descobrimentos atlânticos – enfim, sentido geral e solidário pela mesma tendência da ciência, do direito, da literatura, das artes plásticas e da religião.
“Um mesmo e único impulso de vida, conexo entre as suas várias formas, impele a Grei. É um protesto que vem do fundo dos séculos, e ora se torna voz de comando nas naves descobridoras; ora meditação científica sobre os problemas de marcar o ponto no mar largo e nas longínquas terras descobertas; ora dá sanção legal à entidade civil, própria e livre do indivíduo; agora no Amadis encarna o poder de excedência e de aventura isenta e heróica, e proclama a santidade do amor humano; logo toma do cinzel, invade o templo com uma rajada de vida laica, humaniza a divindade e aponta à curiosidade dos homens o selvagem, símbolo dos mundos por descobrir; e, enfim, entre malicioso e profético, arranca às mãos do Papa a coroa do Império, para sagrar com ela o trabalho e a liberdade dum culto popular e próprio, que dá sanção religiosa às tendências expansionistas de toda a Grei.
“E foi, levado por esse mesmo e livre impulso, crítico e experimental, que os Portugueses, partindo ídolos, mas ardendo nas chamas do Espírito sagrado, embarcaram para iniciar a maior façanha dos povos do Ocidente: o descobrimento do Mundo e a unificação da Humanidade.”
Jaime Cortesão
in Os Factores Democráticos na Formação de Portugal, pp. 199-202.

1 comentário:

  1. Texto maravilhoso, sobretudo os três últimos parágrafos.
    Passo algumas vezes em Ançã, terra natal de Jaime Cortesão.

    Eduardo Aroso

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