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terça-feira, 22 de março de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 129



Sono com fim


Cynthia Guimarãs Taveira

Não ter nada para dizer
Nem da vida
Nem da morte
Embaladas estão as hostes
Massas loucas
Em direcção a nada

O sono é doce
E os jogos lúdicos
A música aninha-nos
O sono é doce

Acordar para dormir
Dormir para dormir
Sonhar para não Sonhar
Existir para não se ser
Existir brevemente
Muito breve
Como um golpe rápido de rins
Entre o vazio e a existência

Olhar os olhos dos outros
E ver vazios os poços
Que se queriam lagos
Plenos de peixes coloridos
Atarefados, atentos

Olhar esse sono de frente
Dia a dia, rastejo a rastejo
Esse desaparecimento progressivo
Do relâmpago da arte

Dormir e não mais saber
De fogos e sofrimentos
De gerações e publicações
Esquecer primeiro para adormecer
Adormecer em esquecimento

A memória só atrapalha
Nesse percurso que vai
Da sala ao quarto
Como dantes o sono atrapalhava
O caminho entre a terra e o mar
Onde nos esperava a viagem forte
De sentidos apurados, despertos
Irrequietos, gritantes, espantados
Com olhos maiores que o céu
Onde dantes a perfeição parecia
Tão perto




ACORDAR porque sim
Sem razões, desculpas ou justificações
Rebelar, ser,
Andrajar em palácios
Conseguir colher rosas vivas dos capiteis
Sofrer por amor
Transformar o pó em água viva

Falar com os anjos de novo
Até que estejam cara a cara
Até que se apaixonem de novo por nós

Porque a sintonia é uma questão de vontade
E de acordo e de acordar
Acordar
Ouvir o som do sino
Como um milagre
Ir buscar a espada
E poli-la
E lavar os cabelos
E soltá-los ao vento
Ir à procura para além do poluído
Do sujo, do lixo
Acordar sem culpa
Que a mácula é só o sono

Voltar ao templo
Envolto em nuvens
Desnivela-lo com a realidade
Torna-lo real assim
Desnivelar a angústia com o coração

Voltar à pedra, à madeira, ao fogo
À água.
Usar as mãos e respirar o ar
Voltar, escarnecer se for preciso
Os anjos também escarnecem

Voltar a pisar fortemente o chão
E sentir o vulcão que brota do coração

Desenrodilhar os cavaleiros
Das teias de trevas
Deixar o palácio
Inclinar-nos para esse templo
Criar uma cidade nova
Bem no interior do nosso país interior
Voltar ao bom gosto
À estética
À beleza
A uma inteligência cheia de luz
E compaixão

E deixá-la num báu
Se for preciso
E enviar por correio à hora da morte
Entregue ao portador
A Deus
A um berço de palha levado pela corrente

Acordar e deixar obra
Apenas isso
Que o sono é pedra bruta
Lado a lado a um templo maior.

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