(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



sábado, 5 de setembro de 2009

O CAMINHO DO CAMINHO, 4

Cynthia Guimarães Taveira

Reminiscências, criações, verdades
Neste caminho, por dentro do caminho, pequenos elementos fazem ressoar uma memória, ou uma criação, nunca saberemos... Como nos sonhos. Lembrava-se, enquanto percorria esse estreito trilho que ficava dentro de um caminho maior, de pormenores que se tornavam em países, civilizações, continentes inteiros. Assim, nos passos mais fúteis do grande caminho, outros, mais ligeiros, mais mercuriais, menos visíveis por não deixarem rasto, resultavam no tropeço de uma pedra inesperada. A primeira vez que deglutiu um pão de sementes como aqueles novos que agora há, aquele cheiro, aquele sabor foi o ponto de partida para toda a Europa Central como se a conhecesse a fundo. Seria loucura, imaginação a mais ou uma criação espontânea do espírito? Apenas sabia que no momento em que o cheiro e o sabor lhe invadiram o corpo, a sugestão de florestas negras, de frutos pequenos e mimosos, e casas antigas escondidas no meio da vegetação, (podendo ver algumas por dentro e sentir-lhe o cheiro), ganhou uma súbita realidade como reminiscência.
Num sonho, sonhou que era barco, ou antes aquelas figuras femininas que ficavam na proa de um barco antigo. Só que sonhou que era uma dessas figuras realmente. Era viva, levava os braços estendidos para trás e a cara para a frente. Tinha atravessado o oceano atlântico inteiro. Sabia-o no sonho e, estranhamente, tinha chegado a casa. Aquela costa era a sua casa, a América do Norte. Mas uma outra América, antiquíssima, dos índios, apenas dos índios. No sonho sentiu o cheiro dessa América. O cheiro de um continente inteiro que reconhecera (tal como algumas pessoas reconhecem o cheiro de África). Mas aquele era o cheiro do continente americano, ancestral, perto da Atlântida. Perto do princípio da história. Aprendera a essência desse outro mundo, ou apenas o reconhecera no sonho?
Nesse caminho dentro do caminho, depois de quatorze anos vividos em educação musical, por via dos discos da mãe amantíssima de música e de todos os seus géneros, de concertos no S. Luís, na Gulbenkian, de óperas no S. Carlos, de Amálias, de brasileiros no Coliseu, de Beatles e rocks, depois de anos de apuramento do ouvido, anos de dança clássica e Jazz, um dia o irmão trouxe uma cassete de Pogues, e, por detrás da voz rouca de bebida do vocalista, uma melodia esvoaçava, ressoava, entoava de uma forma mágica. Era aquela música que lhe faltava. Aquela da qual sempre tivera uma saudade nostálgica. A música era irlandesa e a civilização celta era uma civilização inteira concentrada em notas musicais. Entendera subitamente uma civilização, captara-lhe a alma, o sentido, o propósito e o porquê, até do seu fim. A música celta era uma língua e uma linguagem. Estava tudo lá, a música era perfeita, e claramente compreensível. Estranhamente compreensível, como se de uma memória se tratasse. Eram almas gémeas, a música entoada e o ouvinte.
Sim, estivera no Egipto, aquele das grandes construções, das grandes magias. Estivera na Turquia dos contrastes, em países da Europa, perante monumentos, quadros, histórias, dissertações académicas, grandes blocos de cultura, imponentes, obssessivos, autoritários, mas foram pormenores, simples, surpreendentes, inesperados que lhe haviam dado a essência de uma outra história, tão intensamente verdadeira.
Questionava-se agora. Sabia que no Oriente falavam em reencarnação. Sabia que poderiam existir estranhas reminiscências inexplicáveis. Sabia que nada disto se aproximava sequer do mundo imaginal, porque esse é um outro mundo, intermediário entre os homens e o espírito. Sabia que a criação era possível a partir de pequenos elementos. Mas também sabia, que por vezes, ao fechar os olhos, no momento em que ainda não estava a dormir um jardim inteiro, barroco, pormenorizado até à mais pequena folha de uma árvore, lhe aparecia em pleno, construído por mão humana, perfeito, detalhado. Existia, o jardim, ou seria uma mera criação do espírito a partir de pequenos elementos? Como pode um jardim assim tão perfeito surgir do nada de um momento para o outro? Não houve tempo para o criar e toda a criação requer tempo. Até Deus para criar o mundo levou alguns dias. Talvez o espaço anule o tempo de alguma forma, talvez ele e só ele possa, num piscar de olhos oferecer-se-nos assim, completamente, inteiro na sua verdade, e até a música, que se desenrola no tempo, talvez esteja sujeita a esse espaço que é de Verdade, mesmo sendo uma criação estranhamente nossa.

1 comentário:

  1. PESSIMISMO

    O que é o homem senão o berço de uma multiplicidade de sonoridades que individualizam a linguagem de cada um dos seus sonhos que se espalhou como os sopros da respiração, inventando margens de rios humanos que cruzaram e cruzam os continentes que nos arborizam os olhares e nos fecundam os ouvidos com os sons que imitam as fantasias da criança que inventou os brinquedos que os adultos transformaram em culturas de paz e de guerra. Foram as guerras que criaram a paz ou foi a paz que as criaram? A sobrevivência é o recado que o Planeta nos envia pelo peso que todos nós exercemos com as descobertas que fomos descobrindo às evoluções dos nossos sonhos, uns poluídos, outros maravilhosos. De tudo quanto sabemos, quantas belezas abriram valas de cemitérios humanos? Dos sons que recordamos e que são exemplos de tradicionalismos que caracterizam memórias da História, quantos são os que reflectem as tristezas humanas, sentidas pelos conflitos que as supremacias económicas geraram como se ouve no “The Band Played Waltzing Matilda”, dos Pogues.
    Somos a criação da energia que nos gera a energia da criação que nos degenera. Sinto que sou um criador de pessimismos, mas o que será o pessimismo, senão uma das fontes criativas do Homem?

    Jorge Brasil Mesquita

    ResponderEliminar