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terça-feira, 22 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 9

Palavra de alma


Cynthia Guimarães Taveira


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Observações pontuais à nossa língua são frequentes como se esta fosse, em simultâneo, coisa próxima e distante. Estranhamos a própria língua, tal como estranhamos o nosso próprio país. Não nos habituamos aos dois. Recordo um artigo numa revista sobre estrangeiros em Portugal, sendo que um deles, diferente dos outros, belga, salvo erro, tinha-se apaixonado primeiro pela língua portuguesa, antes de conhecer o país, pelos sons dela, sobretudo por um deles, o Ch. O chapinhar, espelhar, chamar letra a letra, os plurais, com “esses” chicoteando o final das palavras, tornando-as férteis e plurais. Para este estranho à língua, era um som que o sossegava, equivalente ao che-che-che, dito aos bebés para se acalmarem. Língua que, para ele, já falava sem que a conhecesse e o tranquilizava como nenhuma outra língua. Aspecto maternal da língua, será?
E ainda a letra S atribuída à serpente, como fundo de memória representando o nosso país. O S maldito e também bendito, como se nele fossem concentradas duas forças contraditórias, até pela forma, duas linhas opostas, em tensão, mas encontrando-se no meio. Dizê-lo bem ou dizê-lo mal: sonho, saudade, sabor, santo, sabedoria, mas também satânico, sarcástico, sorumbático, sádico. Yin e Yang, vivendo, lado a lado, neste extremo ocidental, onde japoneses vêm ver o fim do mundo ao Cabo da Roca, a volta na curva final da cauda do dragão mas também a crista, na primeira curva do seu início. Portugal é a curva que decide o uroboro em movimento perpétuo, motor imóvel decidindo o seu microcosmos por simples evocações. Não é sagrada, a nossa língua, mas pode conduzir à consagração. É uma língua de missão, actuante, nómada e sempre, para o bem e para o mal, enamorada de outras.


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