(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



terça-feira, 30 de junho de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 10

Cynthia Guimarães Taveira




A Tela
A tela em branco é o começo que não existe mais no mundo. Porque tudo já começou. Tudo menos esse novo quadro. O pintor tem o privilégio dos deuses. E a sua tremura inicial também. Essa dúvida perante o nada e essa força suprema do primeiro traço a partir do qual tudo fica condicionado. O pintor é a condição sem condicionantes. Ele próprio é a tela branca quando a olha. Foi a partir dessa consciência do vazio que nasceu o Verbo. A consciência não tem palavras, formas ou luz sequer. É esse sussurro clandestino que atravessa as entidades e as identidades. Ser criador é fazer parte de uma resistência absurda velando pela continuação da consciência. A alma do artista está ligada à de um deus por um fio de seda. Frágil, imenso, perene e translúcido nas mensagens. A arte só é divina porque partiu dos deuses, não por opção ideológica. O pintor não tem ideias, limita-se a mergulhar nelas, e consegue voar dentro de água e nadar no céu, não distinguindo as matérias por excesso de consciência. A tela branca é o seu berço e o seu sepulcro, alfa e ómega abraçados algures numa eternidade intuída.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

PARA LER: ABDEL HAYY, SOBRE PRISCILIANO E HENRY CORBIN, N'O LUGAR DA ALMA



Desta vez, gostaria de chamar a atenção para um texto de Henry Corbin em que, lembrando Asín Palacios, se refere uma curiosa afinidade ou prolongamento interior, por assim dizer, entre o priscilianismo e uma escola do sufismo andaluz. As pistas singelas que aqui vou deixando são como lembretes de uma nossa história íntima, sagrada, escondida, que nenhum historiador, com olhos exteriores apenas para o que julga ser "factual", nunca poderá ver, por muito que olhe.
Não nos importa "provar" nada disto, o essencial é que alguns possam aproximar-se e, "por dentro", retomar a herança do Portugal profundo. Esses passarão sempre despercebidos, longe das pequenas guerrinhas, deliberadamente longe de protagonismos e das luzes do exterior. Falarão entre si, encontrar-se-ão em reuniões esporádicas, em Mértola ou na arrábida de Sesimbra ou na arrábida do Porto, na sinagoga de Tomar ou no mosteiro de Alcobaça ou no dodecaedro de Almeida, ou apenas no café Luz Verde. Ninguém saberá que é a eles que se deve a perpetuação de uma certa "presença".
E agora aqui vai o texto referido:
"A primeira questão que se coloca a propósito de Ibn 'Arabî é a de distinguir qual a parte exacta, antes de abandonar definitivamente o Ocidente islâmico, que ele pôde assimilar do esoterismo ismaelita ou de um esoterismo aparentado. Encontram-se indícios disso na sua familiaridade com a escola de Almería e no facto de ter feito um comentário à única obra que chegou até nós de Ibn Qasî, iniciador do movimento dos Murîdîn, no sul de Portugal, onde se reconhecem muitos traços característicos de inspiração xiita-ismaelita. Devemos ter em conta um fenómeno notável e simultâneo, numa e outra extremidades geográficas do esoterismo islâmico: o papel do ensino de um Empédocles, transfigurado em herói da teosofia profética. Na escola de Almería, na Andaluzia, Asín Palacios revelou com cuidado a importância deste neo-empedoclismo, ao mesmo tempo que se comprazia em ver nos discípulos de Ibn Masarra (ob. 319/931) os continuadores da gnose de Prisciliano. Em simultâneo, no Irão, a influência deste mesmo Empédocles se fez sentir tanto num filósofo correspondente de Avicena, Abû'l-Hasan al-'Amirî, como na cosmogonia de Sohravardî e na do Ismaelismo."
in Henry Corbin, L'imagination créatrice dans le soufisme d'Ibn Arabî. S.l.: Aubier, reed. 1993
Este trecho, talvez excessivamente técnico para alguns, não deixa de ser extremamente sugestivo na fecundidade densa das pistas que abre: de que modo a gnose priscilianista se pode ligar com o sufismo andaluz?"

sexta-feira, 26 de junho de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 15

António Carlos Carvalho

Fiquei a pensar naquelas pedras da visita a Évora, as da anta do Zambujeiro e as do cromeleque dos Almendres. As pedras fazem-me pensar, tocam-me, mesmo quando não lhes toco. Ao contrário do betão, que me repele: o betão, para mim, é frio; a pedra é sempre quente – sim, quente, de uma maneira que os termómetros não registam, porque o calor da pedra atinge-me através do olhar.
Ao ver pedras, sobretudo as que são trabalhadas pelo Homem, sinto um calor interior, no coração. Sou imediatamente levado para um tempo em que, como dizia Luc Benoist, ninguém julgava poder pensar mais alto do que a sua mão.
Aquela anta e aquele cromeleque, tal como as outras construções megalíticas, suscitam sempre em mim as mesmas interrogações: quem era esta gente capaz de trabalhar tão bem a pedra sem aqueles instrumentos de metal que só muito mais tarde surgiram? Que significado teriam, para essa gente, estas construções? Quais eram realmente as suas funções? Como é que escolhiam os locais para erguer tais monumentos?

Cromeleque dos Almendres

Conheço um arqueólogo, especialista em megalitismo ibérico e professor universitário, que tem em casa imensos saquinhos de plástico carregados de objectos encontrados em locais como estes; uma noite, em casa dele, colocou um punhado de pontas de flecha feitas de quartzo na mão da minha filha Madalena; e depois deixou escapar: «Mesmo com as minhas máquinas, hoje, não consigo fazer coisas tão perfeitas». E eu não resisti a interpelá-lo: «Então, se é assim, porque é que não admites que estes povos não podiam ser “primitivos”, como vocês ensinam aos miúdos na universidade?» Ele encolheu os ombros e confessou que não podia fazer afirmações dessas no meio académico. Claro, pensei, os dogmas científicos (que se vieram substituir aos desacreditados dogmas religiosos) não permitem tais heresias. Mais tarde verifiquei que todos os autores que tentam romper esta carapaça dogmática estão fora do meio universitário.
O que me leva a pensar (faço isso sempre que visito estes sítios arqueológicos) que não sabemos nada para além do documento escrito: não sabemos ler as pedras, nem sequer as medievais... Perdemos essa linguagem, esse código. Só podemos fazer conjecturas e ter cautela para não cairmos no delírio interpretativo, seja ele o da influência extra-terrestre ou o do darwinismo histórico, também chamado progresso civilizacional.
Costumo dizer, por piada, que, se eu mandasse, mandava logo fazer escavações arqueológicas em todo o país, mandava desenterrar a História que jaz soterrada por aí.
E depois tinha muito cuidado, mas mesmo um extremo cuidado, na escolha dos intérpretes desses achados.
Piadas ou sonhos à parte, a verdade é que as antas, os cromeleques, os menhires estão aí, na nossa paisagem, como verdadeiras representações do mistério das nossas origens. Diante dessas pedras trabalhadas, na presença delas, somos obrigados a pensar que nos têm andado a ensinar uma História mal contada – afinal de contas, os primitivos somos nós.

A DOR E O AMOR, 5

No centenário de Alexandre Herculano

Viver é amar, e amar é padecer. Deus é o infinito amor, infinitamente vencendo a infinita dor. Todos os grandes homens, sábios, santos, heróis, filósofos ou artistas, são expressões sagradas, religiosas. A mais alta é o santo, porque na suprema bondade está incluída a verdade suprema e a suprema beleza. Mas quer o sábio, quer o poeta, imortalizam-se como o santo, vivendo a vida instantânea, – da hora e do lugar, com alma de eternidade e de infinito. Não mexendo num grão de areia sem abalar o mundo, não arrancando uma folha de árvore, sem que o universo lhe venha preso.
É dessa família augusta o vulto nobre de Herculano. Encarnou esplendidamente a sua existência individual na existência da pátria, a ideia da pátria na ideia humana, e esta na ideia cósmica e divina. A máscara robusta e grave do historiador emerge duma penumbra ascética, dum fundo de luz e de mistério. As linhas duras idealizam-se, tocadas de sonho transcendente. Descobre-se o monge, o cavador, o soldado, o sábio, o profeta. Sente-se a visão magnífica do homem heróico e religioso. Osculemos todos a sua memória, para exaltar o nosso espírito e purificar os nossos lábios.
1910.
Guerra Junqueiro

quinta-feira, 25 de junho de 2009

PARA LER: PRIMEIRO NÚMERO DA REVISTA «SABEDORIA PERENE»


Acontecimento. Ao cabo de dois anos de existência, o blogue Sabedoria Perene, da responsabilidade Miguel Conceição e Nuno Almeida, concretiza uma velha aspiração dos seus autores: a publicação de uma revista electrónica consagrada ao estudo da Tradição e da Sophia Perennis.
Para ficar a saber mais sobre este interessante projecto, sugerimos-lhe que leia o editorial de Miguel Conceição. E, para aceder à revista, pode usar esta ligação. A colaboração que ali irá encontrar reunida é bastante valiosa, como se pode verificar pelo respectivo alinhamento:

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Editorial
Apresentação
Introdução
A renovação do interesse na Tradição – Whitall N. Perry
Tradição e Sophia Perennis
A Filosofia Perene – Frithjof Schuon
Religio Perennis – Frithjof Schuon
O que é a Tradição? – Seyyed Hossein Nasr
Compreender a palavra “Tradição” – Ali Lakhani
A função espiritual da Tradição: uma perspectiva perenialista – Reza Shah-Kazemi
Carta aberta sobre a Tradição (resumo) – James Cutsinger
Estudos da Tradição
O ponto de partida de René Guénon, parte I – Miguel Conceição
Esoterismo islâmico – René Guénon
Ritos e símbolos – René Guénon
Gnose cristã – Frithjof Schuon
Mulheres de Luz no Sufismo – Sachiko Murata
Sobre a tradução – Ali Lakhani Religião, Ortodoxia e Intelecto – William Stoddart
Schuon e as grandes figuras espirituais do séc. XX – Mateus Soares de Azevedo
Nembutsu como ‘Lembrança’ – Marco Pallis
In memoriam
René Guénon – Martin Lings
A Tradição Primordial: Um tributo a Ananda Coomaraswamy – Ranjit Fernando
Um sábio para o nosso tempo: O papel e a obra de Frithjof Schuon – Harry Oldmeadow
Fragmentos de espiritualidade
Pitágoras – São Simeão, o Novo Teólogo – Padres Jean-Pierre de Caussade e Loius Lallement – Frithjof Schuon – Black Elk – Bhagavan Sri Ramana Maharshi – Jalâluddîn Rumi
Fontes dos textos
Breves notas sobre os autores
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Os nossos parabéns, com um voto de felicidades, ao Miguel Conceição e ao Nuno Almeida.

A DOR E O AMOR, 4

Antero de Quental
O drama da sua vida

II
Analisemos um pouco.
A personalidade de Antero, inicialmente, desdobra-se da seguinte forma:
Consciência de justo, cristalina, límpida, inalterável, levando, pelo cumprimento do dever, ao heroísmo e à santidade.
Razão metafísica, inquieta e perplexa, ardentemente buscando o segredo do ser, o enigma da existência, o destino do homem.
E, enfim, um princípio mórbido, (almas inferiores) no organismo ligado às duas modalidades supremas, e, ora adormecido ou vencido, deixando-as expandir livremente, ora rebelde e venenoso, intoxicando a vontade, agoniando a razão, mas nunca destruindo o brilho virginal e perene da consciência e do carácter.

Antero de Quental: desenho de António Carneiro
A vida de Antero, desenrolando-se harmónica e luminosa, num jogo acorde da consciência e da razão, sem que o elemento mórbido, por crises, lhe houvesse nunca dificultado ou modificado a trajectória, dar-nos-ia, decerto, não talvez um grande poeta, mas antes um grande herói, ou um grande santo. Não um grande poeta, tomando a palavra no sentido restrito da literatura, pois que, na essência e verdadeiramente, é Nun’Álvares ainda maior poeta do que Camões e S. Francisco de Assis maior poeta do que Nun’Álvares. Heroísmo, génio, virtude, – três momentos do mesmo ser, três aparências da mesma realidade: O Espírito evolucionando para Deus.
Em Antero, dada a sua nobreza moral, a filosofia não significa apenas a curiosidade do intelecto. A ideia torna-se nele em condutora da vida, em norma da existência. As abstracções fazem-se sangue, o verbo faz-se carne.
Há, como disse, naturezas de moralidade baixa e mentalidade superior. Em Antero, o senso moral não desfalece nem hesita. Mas no herói e no santo as ideias, logo que nascem, traduzem-se em actos. Pensar é executar, conceber é realizar. Em tais criaturas, a ama divina subjuga e vence as suas almas inferiores. E dominando-as, dominam o mundo.
Porque não foi Antero um desses homens?
Por duas causas:
A influência deletéria do elemento mórbido e a disparidade contínua da consciência e da razão ante o problema metafísico.
A consciência, agulha reveladora, marcando, imóvel o seu norte, – Deus. A razão, inquieta e desvairada, oscilando, febril, numa tremura de angústia, hoje apontando o desalento, amanhã o desespero, uma hora, a indiferença, outra hora, a dúvida, fechando cada período de ansiedade por um momento de equilíbrio, equilíbrio que de novo se destrói para de novo se encontrar, e que só ao cabo de vinte anos definitivamente se realiza, pela comunhão de toda a alma na luz absoluta da mesma fé.
Por noite negra e mar tormentoso, um barco frágil a duas bússolas guiado, esta indicando sempre a única estrelinha do horizonte, aquela, meia louca, continuamente vacilando, paralelas ambas de fugida, logo diversas e contrárias, até se fixarem, por último, na direcção unânime da mesma estrelinha redentora.
Daí, a ausência daquela unidade psicológica característica dos grandes heróis e dos grandes santos; daí, a terrível batalha espiritual que fez de Antero um homem de génio, por fazer dele um extraordinário desgraçado.
O drama da Consciência e da Razão, eis, afinal, a obra.
Destruída aos dezoito anos a unidade da alma pela morte da crença, a Razão liberta-se, o drama principia. Várias vezes o escreve, e outras tantas o renova, e de cada vez mais intenso, mais largo, mais profundo. Os dois últimos livros dos Sonetos são o drama definitivamente imortal. As versões anteriores, onde há páginas admiráveis, não chegam ainda à grandeza épica e soberana que o tempo não amesquinha, que a eternidade não dilui. É que no poeta das odes agita-se ainda o revolucionário. Os entusiasmos do batalhador encurtam a visão do filósofo. O choque das armas embebeda-o, a cólera exalta-o, e o cisco da arena revolvida empana-lhe as profundidades do horizonte. Soldado bravio e generoso, das rimas faz lanças, das odes faz metralha. Imprime à sua arte um cunho indelével de nobreza moral, mas diminui-lhe o alcance e a estabilidade, pelo ardor momentâneo que a produz, pela ideia efémera que a vitaliza. Arte incompleta.
Chega a hora divina, a hora do sofrimento. Ei-lo por terra, o lutador. Em bocados a lança, crivado de golpes, agoniza imóvel. Um rebelde exausto, um Prometeu paralítico. Quase um cadáver.
O mundo concreto, o mundo das formas, evaporou-se. Nem pés para o andar, nem mãos para o palpar, nem olhos para o ver. Onde estava? No Infinito. A que horas? O quadrante da ideia marca uma única, – a Eternidade. O Espaço, eis o lugar; o Tempo, eis o minuto.
E é nesse cenário formidável que o drama titânico vai desenrolar-se.
Drama genial. Tinha de o ser.
A consciência virtuosa do justo mais bela do que nunca. A razão do filósofo, exaltada, amargurada e patética. E a forma do artista, isenta de contágios, grandiosa e simples.
E o drama, em si, o mais alto e veemente que no espírito humano se desencadeia e tumultua. O drama da Vida e do Destino.
Porém, só a razão e a consciência, aliadas à arte, não o gerariam ainda. Dos elementos dum corpo ao corpo vivo, que distância enorme! Que é um diamante? Carbone puro. Que é um rubim? Alumínio, bórax, cromato de potassa. Mas que temperaturas prodigiosas, que combinações desconhecidas, que electricidades genésicas, para daí formar a estrela dum diamante ou a lágrima sanguinolenta dum rubim!
Na obra imortal do poeta a centelha divina foi o Amor e a Dor. E que admira que produzisse o Génio, se ela quase produz a Divindade! Dum justo, atribulando-o, faz um santo, e dum santo, crucificando-o, faz um anjo. A evolução da natureza, desde um mineral até um Cristo, desde um infusório até um Buda, não é mais que a infinita passagem do amor através do sofrimento, do espírito através da dor. Em vidas sem conta, em vidas inumeráveis, pelo Amor e pela Dor, pode a alma vegetal da cruz atingir quase em perfeição a alma celeste do seu crucificado.
1894.
Guerra Junqueiro

OS POETAS LUSÍADAS, 22



NA MÃO DE DEUS

À Exm.ª Sr.ª D. Vitória de O. M.

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva no colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

Antero de Quental

quarta-feira, 24 de junho de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 9

Cynthia Guimarães Taveira


A Música
Pintar é dançar só que com a possibilidade de podermos fazer sair dos nossos dedos toda a cor do mundo. A música da tela passa primeiro pelo corpo do pintor. A percussão do ritmo de um bando de pássaros ou das árvores que se elevam na floresta sofreu primeiro um bailado nas mãos do pintor. O pintor dança a natureza mas não é um ser natural. Por isso tem saudades da natureza que não é. O artista é uma ideia tida no céu. Algum ser divino se lembrou de o criar. Por ser uma ideia acima de tudo, procura o seu corpo, procura dançá-lo, procura ser tudo o que tem corpo. O pintor é uma ideia em busca de matéria prima. A música e seus ritmos são o suporte do universo que recria. A pintura é arte a partir da arte. Formas e cores a partir de ritmos e sons, como a música é ritmo e som a partir de formas e cores. Todas as artes são uma só, todos os artistas são um só na cumplicidade do olhar, dos gestos e nos voos. Qualquer voo é mais do que um gesto. São todos eles mas mais acima.

A DOR E O AMOR, 3

Antero de Quental
O drama da sua vida


I

Houve em gérmen, em Antero de Quental, um santo, um filósofo e um herói.
Herói, isto é, o idealista trabalhador, o visionário homem de acção, o revolucionário ardente e generoso, cuja figura impávida se destaca com um relevo bélico de atleta e uma fulgurância juvenil de aventureiro iluminado. É o Antero da mocidade. Conheci-o ainda. Mostraram-me há dias um retrato dessa época. Era ele, lá estava a mesma cabeça resplandecente e vigorosa: a juba de oiro leonina, a testa curta de Hércules Farnesio, o olhar azul, cheio de intrepidez e candura, e o lábio virgem, duma pureza helénica, duma frescura silvestre e matinal. Este Antero, impetuoso e combatente, alegre figura indómita de paladino, morreu novo.

O Grupo dos Cinco: Antero está ao centro; Junqueiro é o primeiro a contar da direita do leitor. Da esquerda para a direita, vêem-se ainda Eça de Queirós, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão.

Filósofo, isto é, o espírito abstracto e metafísico, vivendo não a vida efémera e relativa das aparências e dos fenómenos, mas a vida invisível e íntima do universo, interrogando não o como, mas o porquê da existência, librando-se, ávido de infinito, no Tempo e no Espaço, a contemplar até à morte o enigma eterno.

Nas almas medíocres e superficiais actua sobretudo a realidade transitória das linhas e dos sons, das formas e das cores. As naturezas elevadas, ao contrário, são sempre subjectivas e metafísicas.

Explicar a existência, atingir o infinito, eis para elas o martírio cruciante, a necessidade inexorável. E à medida que os anos decorrem, que os apetites se extenuam, que a animalidade se adelgaça, mais o espírito idealista se vai libertando das exterioridades enganadoras do mundo tangível e material.

Em Antero foi inato e precoce, irresistível e orgânico, esse dom de filosofia, de curiosidade transcendente. Desde moço ao fim da vida cravou os olhos hipnotizados no mistério supremo do au delà.

As teorias duravam-lhe meses ou semanas, mas, aniquilada uma, arquitectava outra, porque o seu pensamento superior não podia exilar-se do infinito sem raias para a mesquinhez anedótica da estreita vida dos sentidos.

Enquanto novo e combatente, a acção equilibrou nele a contemplação, e a pletora de saúde e o movimento da luta não lhe deixavam derivar todas as energias anímicas para as regiões supremas e vertiginosas da eternidade e do absoluto. Era um balão cativo. A doença partiu o cabo, e lá foi o aeróstato levado pelos ares, através de nuvens, através de raios, através de estrelas, num voo de águia alucinada e fabulosa, até desaparecer e engolfar-se para sempre no abismo infinito, onde as miríades sem conta de nebulosas e de mundos são argueiros invisíveis e fogos-fátuos instantâneos.

O santo, isto é, a alma para quem a virtude é o fim único da vida, o motivo soberano da existência. Antero aliou à grandeza intelectual a grandeza moral. Ao talento correspondia o carácter. Razão vigorosa, consciência límpida. Há moralistas imoralíssimos. Em Antero, concordância plena, identificação ininterrupta do escritor com o homem. Mais bela ainda que os seus livros, a sua vida.

Mas nem o heroísmo, nem a filosofia, nem a virtude criariam, de per si só, o grande, o imorredoiro poeta dos dois últimos livros dos Sonetos. O poeta anterior era de segunda ordem. Quem operou então a maravilha? O sofrimento. A doença, aniquilando-o, imortalizou-o.

(continua)

Guerra Junqueiro

OS POETAS LUSÍADAS, 21


À VIRGEM SANTÍSSIMA

Num sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza…

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade…
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza…

Um místico sofrer… uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira…

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa…
E deixa-me sonhar a vida inteira!

Antero de Quental

terça-feira, 23 de junho de 2009

A BOM PORTO E A BOM RITMO...

Rodrigo Sobral Cunha no Porto, durante a apresentação de Filosofia do Ritmo Portuguesa, no Auditório do Instituto de Biologia Molecular e Celular

Porto. Cerca de trinta pessoas, oriundas de diversas áreas do saber, marcaram presença na sessão de apresentação de Filosofia do Ritmo Portuguesa, de Rodrigo Sobral Cunha, na Cidade Invicta, evento que teve lugar no passado dia 19 de Junho, no Auditório do Instituto de Biologia Molecular e Celular, e foi moderado por Alexandre Quintanilha. Ao contrário do que estava previsto e fora anunciado, o investigador Fernando Carvalho Rodrigues, que iria debater a obra, não pôde estar presente, devido a um atraso do avião que o traria de Bruxelas, onde se encontrava. Perante a súbita impossibilidade, foi o próprio autor que procedeu à apresentação deste seu livro, suscitando vários motivos de conversa numa audiência interessada. Dada a natureza transversal das questões que a ritmanálise levanta, Rodrigo Sobral Cunha teve a preocupação de dirigir especialmente a sua exposição aos cientistas, que ali se encontravam muito bem representados (a par de alguma gente vinda da Faculdade de Letras). E quando a palavra foi devolvida à audiência, várias foram as pessoas que dialogaram com o autor, com particular relevo para Alexandre Quintanilha, muito interventivo. Em suma, uma jornada muito gratificante para Rodrigo Sobral Cunha e para a Serra d’Ossa Edições.

A DOR E O AMOR, 2

João de Deus
(Biografia espiritual)
A arte, quando grande, é religiosa e panteísta. Sente infinito, exprime infinito, sugere infinito. Universaliza indivíduos, evapora números, eterniza momentos. Chega à unidade, toca na essência. Eucaristia sublime, mistério esplêndido, inefável! Deus a cantar no som, a brilhar na cor, a desenhar-se nas formas! Sim! a arte é Divindade, encarnando em música.

João de Deus imortalizou-se, porque nas horas puras e sagradas viveu a vida infinitamente e divinamente, traduzindo-a em cânticos celestes, em melodias mágicas de luz.
Diante dele, o universo maravilhoso, criado por Deus, move-se em Deus, mas a expressão suprema do Divino radia na beleza deslumbradora e fecundante, na graça da amante, na mulher. O centro do mundo de Deus é o beijo de amor, divinizado. Mas, no Campo de Flores, a mulher não se chama Laura, Beatriz, ou Natércia. Não é a paixão singular e soberana, o amor único à mulher única, rasgando com um sulco de fogo, da mocidade à morte, a vida inteira.
Em João de Deus há um árabe voluptuoso, pela carne, e um cristão sem mancha pelo espírito. Toda a mulher formosa lhe leva beijos e canções.
Mas a poligamia da volúpia, continuamente idealizada e sublimada, unifica-se e resolve-se, ao cabo, numa só imagem espiritual.
A mística amorosa de João de Deus tem graus ascendentes de elevação e perfeição.
Primeiro grau: Vê a mulher, é bela, deseja-a. Deseja-a com lascívia, mas sem brutalidade, sem violência. Um galanteio espontâneo e perpétuo, um madrigal contínuo, gracioso e mimoso, florido e ridente. Coisas lindas, mas tudo medíocre, passageiro. Arte efémera. Anedotas.
Segundo grau: O desejo voluptuoso purifica-se, espiritualiza-se, idealiza-se, e o frémito biológico termina em êxtase, no céu. A canção evola-se em oração, e a alma liberta, na asa do amor, ergue-se a Deus, perde-se em Deus.
Terceiro grau: A mulher ideal, cada vez mais bela, mais radiante e mais pura, santifica-se. Ainda corpórea, o desejo sonha-a… sonha-a, de leve, mas não lhe toca. Quem há-de ousar?!... Jamais! Inviolável! É flor sagrada, lírio do Éden! Mulher-estrela, mulher-anjo! Cantá-la como? Adorando-a. Possuí-la quando? Na eternidade, em Deus, na Glória, vencendo a dor, vencendo a morte. O beijo de núpcias é o beijo infinito, o beijo de duas almas para sempre!
Quarto grau: A mulher-alma desencorpora-se, diviniza-se, deifica-se. É graça, piedade, dor, amor, misericórdia, a Virgem das virgens, a Mãe de Cristo, a Mãe de Deus! É Deus em mulher, é Deus no feminino.
Quinto e último grau: O poeta religioso, liberto do mundo, uniu-se a Deus. União verdadeira, fusão suprema? Não. Só chegam a Deus os que levam no coração, como um filho gemendo, o universo inteiro. Os que transportam no seu amor, banhando-a de lágrimas, a dor infinita da natureza. Na obra do poeta há ainda um vazio, uma lacuna. Falta-lhe o berço. E então o santo inclina-se para a natureza, ergue nos braços a humanidade, agasalha no peito a infância humana, e cantando e chorando e rezando, lá vai com ela para Deus. E, quando o amor eterno vencer a dor eterna, existirá em Deus eternamente. Bendito seja!
1910.
Guerra Junqueiro

OS POETAS LUSÍADAS, 20


SEMPRE

Pensas que te não vejo a ti? Bem era!
Gravei tão vivamente n’alma a doce
E bela imagem tua, que eu quisera
Deixar de contemplar-te só que fosse
Um momento, e não posso, não consigo:

Foges-me, escondes-te e, que importa? Esculpes
Mais fundo ainda os indeléveis traços!
Realça-te o retrato! E não me culpes!
Culpa-te antes a ti!... Sigo-te os passos!
Vejo-te sempre! trago-te comigo!

João de Deus

segunda-feira, 22 de junho de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 14

António Carlos Carvalho

Domingo em Évora, desafiados para almoçar com uma amiga da Cynthia e da Alexandra. Apesar da perspectiva de um calor abrasador, lá fomos por aí abaixo, nós de carro e a Alexandra de camioneta – que demorou hora e meia só para entrar na Vasco da Gama...
Chegados a Évora, logo iniciámos o périplo pelas ruelas de nomes arcaicos, saborosos, como Travessa das Gatas. Buscámos um café aberto para matarmos a sede. E a tal amiga, X., veio ter connosco, destroçada: o ex-marido tinha-lhe levado os filhos para casa da «outra». Tentámos acalmá-la: afinal de contas não era propriamente um rapto... Mas X. vociferava, ameaçava, debatia-se, transtornada. Aquilo era mais do que podia aguentar. Uma ofensa. Um abuso. E rogava-lhe pragas.
A partir daí, desvaneceu-se a perspectiva de passar um dia sossegado na Évora onde o meu bisavô morreu, o meu avô viveu a infância e adolescência (nascera em Lisboa mas dizia sempre que era de Évora), a minha tia-avó Ema foi amiga de Florbela Espanca; na cidade que serviu de pano de fundo a «Aparição», o romance de Vergílio Ferreira que me fez descobrir a existência aos 18 anos (e depois teve o mesmo efeito em dois dos meus filhos, o Diogo e o Bernardo). Évora, a verdadeira cidade branca. Évora: se pudesse vivia aqui, virando ao Sul, seguindo o sentido das descobertas. Tenho necessidade de voltar aqui de vez em quando, como quem reata laços de ascendência.
Ainda fomos ver ou rever a anta do Zambujeiro e o cromeleque dos Almendres, depois de um almoço em Valverde. Mas X. estava toda ela virada para dentro, para o seu problema com o ex-marido (de quem nunca se divorciou realmente no seu coração): todas as conversas acabavam por ir parar a ele, a eles, ao que continua por resolver. Feridas por curar.

Quantas vezes presenciei já casos destes: mesmo nos mais belos lugares, sejam eles Évora, Veneza ou Paris, casais desavindos não vêem nada que não seja o seu próprio confronto. Dir-se-ia que não há «espírito do lugar» que consiga sobrepor-se aos problemas do coração.
Sim, estas histórias são antigas, vêm mesmo desde a alvorada dos tempos. Adam e Hava (Adão e Eva) representam uma humanidade primordial mas também as condições de Homem e Mulher, esses dois seres criados para se amarem, para amarem o resto da Criação e a fazerem frutificar – mas que começam por nem sequer dialogarem: ele e ela falam com Deus mas não um com o outro, como mostra o texto bíblico.
Só muito depois é que um Abraham e uma Sarah, um Isaac e uma Rebeca, um Jacob e Raquel e Léa entram em diálogo frutífero.
Nós, os que gostamos da Filosofia, costumamos citar os diálogos socráticos mas poucas vezes pensamos que o primeiro diálogo filosófico é aquele que acontece (que deve acontecer) entre homem e mulher – o princípio de tudo.
E é esse diálogo sério, implicando saber ouvir o outro, que muitas vezes não acontece – nunca chega a acontecer. Temos um umbigo demasiado grande e orelhas demasiado pequenas...
E depois, quando abrimos a boca, em vez de palavras, de murmúrios amorosos, saem gritos, lamentações, queixas, por vezes mesmo insultos...
Fiquei com vontade de dizer à X. que ela devia passar mais tempo na anta ou no cromeleque (de onde se vê Évora lá ao fundo, no horizonte, porque a elipse de pedras aponta estranhamente para a cidade), buscando aí o silêncio, a meditação – talvez a oração – que lhe faltam.
E depois seguir em frente – para o Sul, o tal «Sul sidério que esplende sobre as naus da iniciação.» No caso dela, mas também no nosso, hoje, essa viagem iniciática chama-se Amor. E Compaixão.

A DOR E O AMOR, 1


O Sacré-Coeur

É no alto de Montmartre, dominando Paris. Topografia simbólica, desafio da Igreja à Revolução. Daquela altura, a cidade fabulosa dir-se-ia o plano topográfico, a maquete efémera duma Babilónia colossal. A cúpula de oiro dos Inválidos lembra, pela forma e pelas dimensões, um capacete persa flamejante, e os dois braços amputados das duas torres de Nôtre-Dame têm dez metros de altura, quando muito. Do estrondoso e estonteador brouhaha da vida de Paris não chega àquela iminência religiosa mais do que um largo murmúrio evaporado, como que o hálito longínquo, a ressonância extinta dalguma forja de ciclopes.
O templo, enorme, é de arquitectura bizantina. O gótico fugitivo, esvelto e rendilhado, principiando num soluço, erguendo-se num ai, e terminando, exânime, num grito de flecha agudo e lancinante, era pouco sólido.
Na catedral quase que há mais alma do que mármore. Mesmo de granito, chega a ser incorpórea. As suas colunas, duma tenuidade vertiginosa, sobem instantâneas, como o raio desce. São, por assim dizer, jactos de fé petrificados, troncos rectilíneos de palmeiras místicas, que se embebem sofregamente pelo azul, expluindo já cima numa girândola de nervuras, numa ramaria côncava de abóbadas. A imponderabilidade extática e descarnada ergue-a da terra, mina-lhe o alicerce. É bela, é sublime, mas frágil. Um sopro a leva.
O Sacré-Coeur é, como devia ser, uma fortaleza bizantina. Levantada ousadamente no alto de Paris, tem a defender-se de Paris. Os muros são duma espessura de monumento egípcio. Há naquela arquitectura o quer que seja de engenharia militar. É um reduto de dogmas.
Não está concluído. Falta-lhe o tecto por enquanto. A maciça obesidade inabalável dos enormes pilares ascende vagarosamente à força de monólitos, à custa de toneladas. Que diferença do templo gótico, por cujas agulhas, incisivas e aéreas, a alma se evade, como um fluido eléctrico, chegando-se a procurar lá no alto, no topo das torres, no ápice das flechas, crepitamentos de estrelas, santelmos de orações…
Fui ao Sacré-Coeur em Junho, num domingo esplêndido. A luz um sorriso, o azul uma bênção. Havia nesse dia uma romaria. Cinco a seis mil devotos, pelo menos. Incorporei-me no préstito que, antes de entrar, deu uma volta à igreja imensa, entoando num coro, melancolicamente formidável, uma espécie de marselhesa do amor divino, um cântico abrasador de esperança e piedade, em que havia ao mesmo tempo rugidos indómitos de oceano, reboadas de angústia, trinos de inocência, ais de viuvez.
Primeiro desfilaram os homens, graves, modestos, respeitáveis, com aquele ar de nobreza fisionómica de quem possui uma crença, uma luz interior, uma alma simples.
Depois as mulheres, esposas e mães, que vinham ali acrisolar a sua fé, bálsamo único para as lutas da vida, para as amarguras do destino.
Depois, como áleas ridentes de amendoeiras em flor, centenas de virgens virginais, o lábio puro, a fronte cândida, o olhar transparente, todas envoltas da cabeça aos pés em nuvens aéreas de musselina, duma graça intacta, duma alvura de pombas. Dir-se-iam corpos de açucenas vestidos em túnicas de luar.
Por último, a infância, pequerruchos de 6 a 8 anos, botões de rosa, embriões de almas, a passinhos miúdos, num encanto de glória, num êxtase de sonho.
E as vozes dos homens, másculas e robustas, casavam-se com as vozes plangentes e lagrimosas das mulheres, com a angélica e translúcida pureza do cântico das virgens e com o balbuciamento cristalino dos mil gorjeios infantis.
Encheu-se o templo e começou o sermão. O tecto da igreja era o céu azul. As dalmáticas do clero e os estandartes dos peregrinos, tecidos a prata, bordados a oiro, dardejavam frementes. O pregador falava de ao pé dum altar provisório de madeira, coberto a damascos. Dezenas e dezenas de borboletas brancas voltavam sobre a multidão ajoelhada, sobre a cruz do sacrário e sobre a teologia do pregador.
A Igreja vive ainda e viverá, senti-o nessa hora, do cristianismo eterno que tem dentro.
Por isso, a Igreja se não destrói, perseguindo-a, arrancando-lhe o oiro das arcas, os anéis dos dedos, os brocados do corpo. Nos dias sublimes e longínquos da sua infância maravilhosa, rota, sem pão, descalça, viveu em antros, gemeu nas galés, os tigres morderam-na, varou-a o ferro, queimou-a o fogo, trezentos anos a perseguiram, milhões de vezes a crucificaram, e, das contínuas mortes da sua carne, ergueu-se, ilesa e luminosa, a sua imortalidade espiritual. E quando mais tarde, dominador a e deslumbrante, no trono de César, foi a rainha única do mundo, para quebrar-lhe a omnipotência, bastou a voz dum monge solitário.
A dor eleva, a dor exalta, a dor diviniza. O cristianismo gerou-o o Amor e a Dor, nasceu, escorrendo sangue, numa cruz. A opulência pagã da Igreja foi o crime da Igreja. Quanto mais simples e mais humilde, mais vitoriosa e mais robusta.
Também se não destrói a Igreja, destruindo Jesus. A essência do cristianismo é universal e é eterna, imanente à vida. Houve cristãos sem conta antes de Cristo, cada santo que surge é um continuador de Cristo que aparece, e todo o homem que, sendo deísta, se eleva a um alto grau de moralidade, torna-se por esse facto um cristão verdadeiro. Cristo é filho do Espírito Divino, porque é filho do ideal humano sublimado, e este é o reflexo directo do Espírito de Deus.
Negar o cristianismo implica, pois, uma loucura monstruosa: negar Deus. Muitos o negam verbalmente, e a ele se encaminham pela virtude e pelo esforço. E outros, que se julgam íntimos de Deus, nem de longe o conhecem, porque a todo o momento o estão negando nos seus actos, embora o afirmem nas palavras, loucas umas vezes, outras vezes hipócritas.
Deus é a infinita perfeição, porque é Amor Infinito, sentido e vencendo a infinita dor. Os mais amorosos são os que mais se lhe chegam, e os mais egoístas, os mais afastados e os mais ímpios.
O mundo caminha para um cristianismo integral, puro e perfeito, que absolutamente harmonize coração e razão, ciência e fé, natureza e Deus.
A escola sem Deus é o infinito sem rumo, é o universo morto, decapitado.
1888. (1)
Guerra Junqueiro
____________
(1) Este artigo foi escrito em 1888. Corrigi-o, creio, em 1904, e publiquei-o depois na Alma Nacional. Agora emendei-o de novo, eliminando várias passagens, umas inúteis ou deficientes, outras condenadas hoje pelo meu espírito.
Eu tenho sido, devo declará-lo, muito injusto com a Igreja. «A Velhice do Padre Eterno» é um livro da mocidade. Não o escreveria já aos quarenta anos. Animou-o e ditou-o o meu espírito cristão, mas cheio ainda de um racionalismo desvairador, um racionalismo de ignorância, estreito e superficial. Contendo belas coisas, é um livro mau e muitas vezes abominável. Há na grandiosa história do catolicismo páginas de horror, mas a Igreja com os Evangelhos cristianizou e salvou o mundo. No catolicismo existem absurdos, mas no âmago da sua doutrina resplandecem verdades fundamentais, verdades eternas, as verdades de Deus. A força moral do catolicismo é hoje imensa, não pode negar-se.

domingo, 21 de junho de 2009

A DOR E O AMOR: AS «PROSAS DISPERSAS» E A FILOSOFIA DE GUERRA JUNQUEIRO


Revisitação. Guerra Junqueiro não chegou a concretizar o projectado livro A Unidade do Ser, onde nos daria a conhecer, de forma sistemática, o seu pensamento filosófico. Mas, a esse pensamento – pelo menos, até certo ponto –, será sempre possível reconstitui-lo, seja através das páginas (um resumo completo) daquela obra em prosa que puderam chegar até nós, seja a partir da poesia do vate da Pátria, e também pela leitura das suas prosas dispersas, reunidas em volume em 1921, ainda em vida do poeta. A partir de amanhã, e até à próxima sexta-feira, aqui iremos publicar algumas dessas Prosas Dispersas, pondo em evidência as duas polaridades que tendem a definir a filosofia de Junqueiro: a Dor e o Amor. Acresce que, nesta selecção de textos, o diálogo com a poesia será quase uma constante, circunstância que a rubrica Os Poetas Lusíadas não deixará de sublinhar.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 20

Álvaro Ribeiro*
Rafael Monteiro

Algo de insólito se verificou na sessão da Assembleia Nacional, realizada no dia 21 deste mês de Janeiro, ano de 1970.
A evocação tardia (porque feita após o termo da vida terrena) de José Régio permitiu a Veiga de Macedo, associando-se calorosa e sentidamente à homenagem, nobres e justíssimas palavras de apreço por Álvaro Ribeiro, pela obra e pelo escritor, «extraordinário pensador que da sua vida tem feito sacerdócio».
O ilustre deputado leu aos seus pares trechos da «Dedicatória» do último livro do mais português dos nossos pensadores: A Literatura de José Régio – o mais humilde livro que a um homem pode ser dado escrever, «livro porventura único na nossa literatura de pensamento», segundo as certas palavras do editor.
Há muitos anos, certamente, que tão alta e representativa Assembleia não escutava palavras de tão justos louvor e apreço para com a obra de dois dos mais nobres espíritos da nossa terra, de dois dos mais inteligentes portugueses das últimas gerações.
Se podemos pensar que nem toda a assembleia desconhecia o nome de José Régio, cremos ser, para a maioria, nome sem significado, o de Álvaro Ribeiro. Louvemos, por isso, o acto de Veiga de Macedo, o acto de lembrar aos políticos eventos e verdades que, transcendendo-os, importa conhecer: verdades e eventos cujo desconhecimento não dignifica os homens.
Insólito dissemos ter sido o acontecimento; bastará, como demonstração da nossa asserção, o relato da Imprensa, que conta: Veiga de Macedo, a uma interrupção que lhe foi feita, houve que responder, respeitosa e firmemente: «Não estou a fazer retórica! Estou a prestar homenagem a um pensador!»
Tão desabituados andam os homens de ouvir palavras nobres, tão afastados estão da beleza e da verdade!

* * *

Álvaro Ribeiro é, como Régio foi, um vivo entre mortos, ente acordado que pensa e age entre seres adormecidos. Despertá-los tem sido a missão do seu génio; no reino onde dormem, embora adormecidos se entronizem. Se não quereis que vos chamem retóricos, não os desperteis.

Os despertos que durmam – eis a regra de todos os que, à luz, preferem a treva, regra que os obrigou, por feminino temor, ao culto de um deus nocturno; cega-os os raios do Deus luminoso e verdadeiro. Não correspondendo neles a idade cronológica à idade do espírito, continuam adolescentes entre adultos – e o diálogo é de surdos quando estes falam e aqueles escutam.
Álvaro Ribeiro, pensador português agraciado, fez da sua vida – onde há dores e soluços – gratuito dom a todos os portugueses. Entre os anos de 1943 e 1965 escreveu e publicou onze livros magistrais; não podem eles deixar de ser lidos e meditados por todos quantos se dizem honrar com a condição de portugueses.

Depois da influência exercida por Leonardo Coimbra, na Faculdade de Letras do Porto (de 1919 a 1931), Álvaro Ribeiro foi o filósofo português de mais magistral influência em Portugal, quer se reconheça ou se negue tão importante verdade.

Pouco habituados ao reconhecimento, não manifestámos ainda a Álvaro Ribeiro a merecida gratidão que lhe devemos – manifestação que há-de ser, necessariamente, diferente do banquete encomendado ou da homenagem em dia certo…

«Dos trinta anos para cima, e até aos cinquenta, já servi o tempo propício à expiação», escreve o filósofo, citando os Números. Que, para ele, agora, a vida terrena seja de paz, e que nela lhe permitam realizar um dos seus desejos, ainda não há muito manifestado: o de dirigir a publicação de uma edição popular da obra de Aristóteles. Conceder a Álvaro Ribeiro o necessário para – em paz – tornar real o seu desejo, será o modo digno de lhe manifestarmos toda a gratidão que lhe devemos, que todos lhe devemos.

Há, no nosso país, meios suficientes para concretizar aquele desejo; esperemos (a esperança é uma virtude) que os homens inteligentes e bons possam contribuir para que o homem e o pensador viva em alegria e paz os últimos anos da sua vida – entrecortada por dores e por soluços.

*Publicado originalmente em Jornal da Costa do Sol, de 31 de Janeiro de 1970, e republicado em Sesimbra Eventos, n.º 35, Fevereiro/Março de 2005.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

PARA LER

Petição.
O MIL - Movimento Internacional Lusófono difundiu hoje, através do blogue da Nova Águia o apelo que passamos a transcrever, e a que os Cadernos de Filosofia Extravagante se associam.

____________
NOVA PETIÇÃO MIL: “NÃO DESTRUAM OS LIVROS!”
Verificando-se que editoras nacionais estão a proceder à desativação comercial dos livros não esgotados mediante a sua destruição, e que esta hipótese é igualmente contemplada pela editora do Estado português, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, o MIL: MOVIMENTO INTERNACIONAL LUSÓFONO considera isto um escandaloso crime de lesa-património, que vai fazer desaparecer muitos milhares de volumes preciosos da nossa cultura que, apesar do seu valor, não tiveram sucesso comercial junto do grande público.
Perante esta situação, o MIL apela a todos os cidadãos que assinem esta petição, exigindo que as editoras nacionais, e em particular a Imprensa Nacional - Casa da Moeda, não destruam as obras em questão, oferecendo-as antes às bibliotecas, escolas e centros culturais nacionais, aos leitorados de Português e departamentos onde se estude a Língua e a Cultura Portuguesas nas universidades estrangeiras, bem como às universidades e centros culturais dos países lusófonos. Para tanto, os Ministérios da Cultura, da Educação e dos Negócios Estrangeiros (este através do Instituto Camões), bem como a TAP AIR Portugal, devem-se articular com as Editoras na estratégia da distribuição e transporte dos livros a nível nacional e internacional.
Em vez de se destruir património precioso e insubstituível, esta é uma ótima oportunidade de se prestar um serviço à cultura e à educação nacionais, bem como de promover a cultura portuguesa no espaço lusófono e no mundo, tarefa por todos reconhecida como fundamental na qual o Estado não se tem empenhado devidamente.
PARA ASSINAR:http://www.gopetition.com/online/28707.html

PENSANDO À BOLINA, 6

Pedro Sinde


Brevíssimo diálogo desconcertante
Encontro um amigo na rua e saúdo-o naquele estado habitual em que se saúdam as pessoas umas às outras, quer dizer, em que é o hábito social a falar por nós, em que perguntamos sem que esperemos uma resposta verdadeira.

- Como estás? Correu-te bem o dia?
Olhou-me com ar pensativo. Estranhei a demora na resposta; não é normal, perante uma banal pergunta de cortesia, o nosso interlocutor ficar mesmo a pensar nela. Ele levou a sério a pergunta. Ao fim de algum tempo, que mais parecia não ter fim, respondeu, fitando-me profundamente:
- Sinde, meu caro, passou mais um dia, foi milagre atrás de milagre e, no entanto, eu vivi-o como se fosse natural estar vivo...
- Como assim? - perguntei, ainda absorto no meio da estupefacção.

Na imagem: Impressão: nascer do sol, de Claude Monet

- Repara, o sol ergueu-se no céu e veio iluminar a terra; eu despertei como que da morte, pois deitei-me de noite e só me levantei com o sol a erguer-se e não me lembro de nada entre o deitar e o levantar; andei, senti, pensei, pude olhar o mundo e tudo isto sem sentir que estou vivo. Não é espantosa a estupidez a que se pode chegar?

- Pois - balbuciei, turbado e desconcertado. - Até amanhã, Denis! - preferi despedir-me, antes que eu mesmo começasse a sentir que estou vivo.

texto originalmente publicado no blogue Maranos

quarta-feira, 17 de junho de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 13

António Carlos Carvalho

No dia 7 deste mês, alguns políticos portugueses descobriram que as sondagens mentiam.
Esta descoberta, que deve ser acrescentada aos anais dos descobrimentos portugueses no mundo, causou alguma perplexidade nesse dia e no seguinte, mas caiu imediatamente no esquecimento (como, aliás, os Descobrimentos portugueses em geral – afinal de contas, naquela época não havia televisão e nenhum navegador foi transferido para Espanha por quase cem milhões de euros...)
Se tudo isto fosse para se levar a sério, no dia a seguir às eleições as empresas de sondagens abriam o jogo e fechavam as portas, envergonhadas. Ou alguém as mandava encerrar, numa qualquer Operação Pinóquio.
Mas como tudo isto não passa realmente de um jogo de «faz-de-conta», as tais empresas continuam a funcionar e darão notícia das suas «actividades científicas» nos meses mais próximos, até às eleições.
Por mim, pergunto apenas: só agora é que os tais políticos descobriram que as sondagens mentem?
Mas em Portugal é costume não se dizer o que se pensa e sente – tivemos mais de dois séculos de Inquisição e quase meio século de ditadura; aprendemos na carne o custo de se dizer a verdade, preferimos então dizer o que convém ou dá melhor imagem de nós.
E, afinal de contas, as sondagens, como também as famosas audiências dos meios de comunicação (TV, rádio, jornais, revistas), existem há muito tempo, foram aliás importadas dos Estados Unidos, como quase tudo o que constitui agora o nosso sistema de vida e de valores. Nos EUA, alguém se lembrou de aplicar os métodos da publicidade ao campo da política, para se poder prever o comportamento dos «clientes» ou «consumidores», vistos como massas, números simples.
E é verdade que, entretanto, o magnífico sistema que nos rege tem-se encarregado de nos reduzir a números: cada um de nós «existe» agora mais pelo número do bilhete de identidade, número do contribuinte, número da segurança social, número de utente dos serviços de saúde, etc. – do que pelo nome que os pais lhe deram.
Acontece que, aos olhos de Deus, cada um de nós é único, insubstituível – ao contrário do que nos apregoam e nos querem fazer acreditar: «Ninguém é insubstituível», dizem os mentirosos.
Tendo sido criado à imagem e semelhança de Deus (que não cabe nas sondagens nem nas estatísticas), cada um de nós nasceu para cumprir um papel determinado neste mundo, um projecto pessoal que corresponde aos desígnios divinos. E que ultrapassa de longe o papel de «cidadão eleitor».

René Guénon
Já em 1945 René Guénon escrevia um livro precioso intitulado «O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos», (ed. Dom Quixote, 1989), em que analisava «um dos traços característicos da mentalidade moderna, a tendência para reduzir tudo ao ponto de vista quantitativo», a tendência dita «igualitária», «a tendência para a uniformidade», que exige que os indivíduos sejam tratados como simples «unidades» numéricas, «realizando deste modo a unidade por baixo». Um indivíduo assim, lembrava, seria um «corpo sem alma», alguém em que o aspecto qualitativo ou essencial desapareceria quase totalmente («na realidade nunca se pode atingir o limite»), um indivíduo que deixaria de ter verdadeiramente um «nome» que lhe fosse próprio, porque estaria «como que esvaziado das qualidades que esse nome deveria ter»: seria pois «anónimo», no sentido inferior desta palavra. «É este o anonimato da “massa”, de que o indivíduo faz parte e na qual se perde, “massa” que não é mais do que a colecção de indivíduos semelhantes, todos considerados como outras tantas «”unidades” aritméticas puras e simples».
Neste mesmo livro, Guénon tem um capítulo dedicado à «ilusão das estatísticas». Lembrando que o ponto de vista científico moderno se caracteriza pelo desejo de reduzir todas as coisas à quantidade, e que só podem ser «exactas» as matemáticas puras, refere o «carácter falacioso das estatísticas», que «não são mais, no fundo, do que a contagem de um maior ou menor número de factos que se supôem inteiramente semelhantes entre si, condição importante sem a qual a sua adição não teria qualquer sentido; é evidente que deste modo só se obtém uma imagem deformada da realidade, porquanto os factos de que se trata só são efectivamente semelhantes ou comparáveis numa medida menor. Só que, fazendo alarde de números e cálculos, as pessoas dão a si e aos outros uma certa ilusão de “exactidão” que poderíamos qualificar de “pseudo-matemática”; mas, na realidade, sem mesmo nos apercebermos e em virtude de ideias pré-concebidas, destes números pode tirar-se tudo o que se quiser.»
Guénon era também um matemático e fazia questão de sublinhar que os números pitagóricos, «encarados como os princípios das coisas, não são, de modo nenhum, os números tais como os entendem os modernos matemáticos ou físicos, do mesmo modo que a imutabilidade primordial não é a imobilidade de uma pedra, ou que a verdadeira unidade não é a uniformidade de seres destituídos de todas as qualidades próprias; e, no entanto, porque nos dois casos se trata de números, os partidários de uma ciência exclusivamente quantitativa bem quiseram contar os Pitagóricos entre os seus “precursores”!»

terça-feira, 16 de junho de 2009

OS POETAS LUSÍADAS, 19

SONETO DE CIRCUNSTÂNCIA

Os semideuses são boxeurs, ciclistas,
Futebolistas ou chauffeurs; e Deus,
Com semideuses tais, deserta uns céus
Que a ninguém, já, lograva dar nas vistas.

Para salvar o mundo, há um rol de listas
De provérbios arianos ou judeus;
Mas ninguém quer ser salvo! E os vãos troféus
Bolorecem nas mãos propagandistas.

Aristo, demo-cratas e mais cratas
Vão, de atómicas bombas na algibeira,
Contratar paz com artes diplomatas.

O amor dispensa as setas e a seteira.
E em tal progresso, os santos da Reacção
Masturbam-se na imensa solidão…

José Régio

segunda-feira, 15 de junho de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 8

Cynthia Guimarães Taveira




A Luz
Consta que Turner se fechava na escuridão completa abrindo subitamente as cortinas para que a luz entrasse nos seus aposentos, subitamente, instantaneamente. A luz era um choque. Para os pintores toda a cor é luz. A sua alma está ligada à visão. A sua alma é composta por uma espécie de fios de seda, levíssimos, que se agitam mais ou menos suavemente com a intensidade das cores. A luz é a quinta essência omnipresente em todos os eixos de representação: no drama em lusco-fusco, na comédia do escarlate vibrante. A sombra é um pretexto para o seu realce. A captação das sombras nos olhares humanos é sempre o contraste com a luz que poderiam ter. Há retratos múltiplos em pinturas antigas onde o olhar desvenda inúmeros adjectivos, em sequência, ininterruptamente: aquele homem de negócios era orgulhoso, poderoso, seguro e talvez escondesse um medo. Aquela dama era jovem, ainda com não-sei-quê de criança. Nela havia vaidade, ingenuidade, provocação, frontalidade e timidez. A Gioconda gera adjectivos contraditórios, dai a filosofia zen ser possível ao contempla-la. E tudo isto com a ponta de um pincel e algumas cores. O pincel é um cálamo de luz. A partir daí todas as palavras são possíveis. Não há verbo sem luz, nem luz sem Verbo.

domingo, 14 de junho de 2009

PARA LER

Recensões. Sobre O Canto dos Seres, de Pedro Sinde (por Joaquim Domingues), e Filosofia do Ritmo Portuguesa, de Rodrigo Sobral Cunha (por António Braz Teixeira e Renato Epifânio), no terceiro número da revista Nova Águia. A notícia pode ser lida no blogue da Serra d'Ossa Edições.

A partir de hoje, o noticiário relativo à Serra d'Ossa será dado de modo desenvolvido no blogue dos Cadernos de Filosofia Extravagante, com uma chamada sumária na página da nossa editora.

«FILOSOFIA DO RITMO PORTUGUESA» APRESENTADA NA PRÓXIMA SEXTA-FEIRA, ÀS 17:00, NO INSTITUTO DE BIOLOGIA MOLECULAR E CELULAR, NO PORTO

Porto. A Cidade Invicta volta a acolher a apresentação de um título da Serra d'Ossa Edições. Desta feita, será o livro Filosofia do Ritmo Portuguesa, de Rodrigo Sobral Cunha, do círculo dos Cadernos de Filosofia Extravagante.
A sessão, moderada por Alexandre Quintanilha, terá lugar no próximo dia 19 de Junho, pelas 17:00, no Auditório do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), e conta com a presença do autor e do investigador Fernando Carvalho Rodrigues, que irá debater e apresentar o livro de Rodrigo Sobral Cunha. Carvalho Rodrigues foi Director dos programas de Ciências da NATO, e ficou conhecido como o "Pai do Satélite Português". Trata-se de um reputado cientista, que já recebeu diversos prémios e condecorações, dos quais se destacam o Pfizer (1977), a comenda da Ordem Militar de Santiago da Espada (1995) e o doutoramento Honoris Causa (1995) pela Universidade da Beira Interior.
A representação do IBMC caberá ao moderador da sessão, Alexandre Quintanilha, um biofísico com interesse por várias áreas de conhecimento e numa perspectiva abrangente, em particular no que se refere à promoção da uma cultura científica. Alexandre Quintanilha tem estado ligado à integração de várias áreas do saber, entre elas as ciências da vida e a filosofia.
O evento terá lugar no n.º 823 da Rua do Campo Alegre, e está aberto a todos os que se possam interessar pela temática.

sábado, 13 de junho de 2009

PESSOA E OS OUTROS, 6

A quadra popular

A quadra é o vaso de flores que o Povo põe à janela da sua Alma.
Da órbita triste do vaso escuro a graça exilada das flores atreve o seu olhar de alegria.
Quem faz quadras portuguesas comunga a alma do Povo, humildemente de nós todos e errante dentro de si própria.
Os autores deste livro realizaram as suas quadras com destreza lusitana e fidelidade ao instintivo e desatado da alma popular.
Elogiá-los mais seria elogiá-los menos.
17-IV-1914

Fernando Pessoa

(prefácio ao livro Missal de Trovas, de António Ferro e Augusto Cunha, publicado em Lisboa em 1914)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 12

António Carlos Carvalho

Santo António de Lisboa leva nos seus braços Fernando Pessoa, em vez do Menino Jesus. É o que vemos numa estátua que se encontra exposta na montra de uma loja de bricabraque situada na Rua Luz Soriano, ao Bairro Alto, em Lisboa.

Não sei quem é o artista que tal escultura fez, mas a ideia é feliz: sublinha, de uma maneira ingénua ou talvez irónica, que o poeta nasceu no dia em que se assinala a morte do santo, 13 de Junho, que ambos nasceram na mesma cidade, apenas em colinas diferentes separadas pelo vale do Rossio – e, claro com uma diferença de oito séculos. Por ter nascido nesse dia, o menino dado à luz no Largo do Teatro de S. Carlos recebeu os dois nomes do santo, Fernando António: Fernando, nome de baptismo, e António, nome monástico. E também herdou a mesma obsessão pela palavra: o santo pregou-a do alto dos púlpitos e o poeta fez dela o seu instrumento de entendimento da vida e do mundo.

Fernando Pessoa aos dez anos

Há dias, arrumando livros numa estante, passei novamente os dedos e os olhos por uma preciosidade: o número 84 dos Cadernos Culturais da Editorial Inquérito, publicado em 30 de Janeiro de 1944, «A Nova Poesia Portuguesa», de Fernando Pessoa, com um prefácio de Álvaro Ribeiro. O caderno reúne artigos do poeta inicialmente publicados em 1912 em *A Águia* e novamente publicados em 1941 pela revista *Ocidente*, e também uma carta de réplica a Adolfo Coelho publicada em 1912 no jornal *República* e e transcrita no livro de Boavida Portugal, *Inquérito Literário*, de 1915.

Nesse prefácio, Álvaro Ribeiro lembrava:
«A obra dos poetas da Renascença portuguesa deu motivo a duas interpretações de ordem filosófica: a de Fernando Pessoa, nas páginas de *A Águia*, e a de Leonardo Coimbra no livro intitulado *O Criacionismo* e em outros escritos menores. É sabido que Leonardo Coimbra foi o primeiro filósofo português do seu tempo, e que exprimiu, numa obra complexa, difícil e por vezes enigmática, um drama espiritual que terminou pelo acto da conversão religiosa. Mas quanto a Fernando Pessoa, há quem ignore que ele escreveu alguns ensaios de estética e de metafísica que enriquecem o património filosófico dos portugueses.»
E ainda:
«Fernando Pessoa era poeta e filósofo, ouvia dentro de si as falas do diálogo eterno. Era também um profeta. Não foi arrancar a realidade portuguesa às trevas do inexistente, com a candeia de historiador ou de passadista: viu-a imediatamente, de olhos erguidos para o Céu, à luz brilhante dos mitos.
«Terá o povo que esperar alguns anos pela publicação integral da obra filosófica, estética e política, de Fernando Pessoa. Se, durante esse prazo, nos convencermos definitivamente de que não nos cumpre receber lições do passado, nem do estrangeiro, chegará o público amadurecido à compreensão de uma obra original. Será o momento próprio de determinar os valores autênticos da espiritualidade portuguesa pelo diálogo constante entre a poesia e a filosofia.»

OS POETAS LUSÍADAS, 18



O ENCOBERTO

Que symbolo fecundo
Vem na aurora anciosa?
Na cruz morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.

Que symbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Christo.

Que symbolo final
Mostra o sol já disperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.

[21-02-1933]
[11-02-1934]

Fernando Pessoa

PESSOA E OS OUTROS, 5

Entrevista sobre Mensagem

A calva socrática, os olhos de Edgar Poe, e um bigode risível, chaplinesco – eis a traços tão fortes como precisos a máscara de Fernando Pessoa. Encontramo-lo friorento e encharcado desta chuva cruel de Dezembro a uma mesa do Martinho da Arcada, última estampa romântica dos cafés do século XX. É ali que vivem agora os derradeiros abencerragens do Orpheu. A lira não se partiu. Ecoa ainda, mas menos bárbara, trazida da velha Grécia, no peito duma sereia, até à foz romana do Tejo. Fernando Pessoa tem três almas, baptizadas na pia lustral da estética nova: Álvaro de Campos, o das odes, convulsivo de dinamismo, Ricardo Reis, o clássico, que trabalha maravilhosamente a prosa, descobrindo na cinza dos túmulos tesouros de imagens, e Alberto Caeiro, o super-clássico, majestoso como um príncipe. Mas desta vez fala Fernando Pessoa – em «pessoa». O título da sua obra recente, Mensagem, está entre nós, como um hífen de amizade literária. Porquê o título?

O poeta desce a escada de Jacob, lentamente, coberto de neblinas e de signos misteriosos. A sua inteligência geometriza palavras, que vai rectificando empós. A sua confidência é quase soturna, trágica de inspiração íntima:
Mensagem é um livro nacionalista e, portanto, na tradição cristã representada pela busca do Santo Graal, e depois pela esperança do Encoberto.
É difícil de entender, mas os poetas falam como as cavernas com boca de mistério. De resto os versos são oiro de língua, fortes como tempestades.
– É um livro novo?
– Escrito em mim há muito tempo. Há poemas que são de 1914, quase do tempo do Orpheu.
– Mas estes são agora mais clássicos, digamos. Versos de almas tranquilas…
– Talvez. É que eu tenho várias maneiras de escrever – nunca uma.
– E como estabelece contacto com o deserto branco do papel?
Pessoa, numa nuvem de ópio:
– Por impulso, por intuição, que depois altero. O autor dá lugar ao crítico, mas este sabe o que aquele quis fazer…
– A sua Mensagem
– Projectar no momento presente uma coisa que vem através de Portugal, desde os romances de cavalaria. Quis marcar o destino imperial de Portugal, esse império que perpassou através de D. Sebastião, e que continua, «há-de ser».

Fernando Pessoa recolhe-se. Disse tudo. Sobe a escada de Jacob e desaparece à nossa vista, num céu constelado de enigmas e de belas imagens. Ferreira Gomes que está ao nosso lado olha-nos com mistério. Que é do poeta?

(publicada no Diário de Lisboa de 14 de Dezembro de 1934)

quinta-feira, 11 de junho de 2009

PARA LER

Transcrição. Do texto, e da carta que o acompanhava, enviados por Nuno Cavaco à revista Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, no passado dia 8 de Junho, e que esta não publicou. Na sequência do envio dos dois documentos, Nuno Cavaco, que integrava a direcção da revista, viu o seu nome ser suprimido do cabeçalho da mesma. Decidiu, então, publicar aqueles documentos no seu blogue, Crónicas de Conistorgis. Pela relevância da matéria, que envolve diversos membros do círculo dos Cadernos de Filosofia Extravagante, decidimos aqui transcrever esses documentos na íntegra.

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LEONARDO, Revista de Filosofia Portuguesa

O texto que segue foi enviado no dia 8/6/2009 ao Francisco Moraes Sarmento para que fosse publicado na Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa com a maior brevidade possível face à gravidade do assunto que trata. Não foi publicado.
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LEONARDO, Revista de Filosofia Portuguesa
Os sinais indicam a transposição de todos os limites admissíveis, roçando mesmo a bestialidade, afigurando-se caso para invocar a presença de um D. Quixote que, em tributo ao irmão Orlando Vitorino, a visão de António Telmo nos revela, “para derrotar os mágicos negros e as suas manipulações”.
A Leonardo tem seguido uma concepção editorial e uma linha redactorial cuja forma se revela repetidamente despropositada, esbanjadora, pouco objectiva, pouco séria, chegando mesmo a recorrer-se a algumas formas de expressão e termos que antevêem certos contornos de boçalidade em contextos nos quais não vislumbro motivo. Acresce a gravidade o facto de textos assinados pela Direcção veicularem esta imagem, mais diabólica que simbólica e pouco estimulante e abonatória ao exercício poético e filosófico. A Revista de Filosofia Portuguesa que se pretendia perdeu o rumo inicial e sobre ela recai uma névoa que tende a turvar as rotas possíveis.
Na tradição poética e filosófica que se iniciou com Sampaio Bruno e formalizou num "organon" principial com Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra na Renascença Portuguesa, a geração dos mais velhos está ainda representada por António Telmo e Pinharanda Gomes, que nos garantem o magistério da palavra e a iniciação numa tradição que tem vindo a aperfeiçoar a expressão poética e filosófica, assinalava o Director da revista no texto em que pretendia definir o lugar de Todos nós, os da Leonardo[1], e traçava a rota da viagem que nos compete.
Vêm estas palavras a propósito da resposta assinada pela Direcção ao comentário do leitor Pedro Sinde, na sequência do artigo do Miguel Bruno Duarte intitulado: “Os malefícios de Salazar ao Porto”. A resposta ao Pedro Sinde em nome da Direcção afigura-se inadmissível, pois não me revejo no essencial do seu conteúdo e muito menos na forma, o que de resto sucedeu em diversos outros escritos que para trás foram publicados.
Surpreende-nos ver um texto assinado pela Leonardo (para justificar a posição de um dos membros da Direcção) invocar a abstracção do “sentido comum” da figura de D. Quixote em detrimento da imagem que o filósofo lhe confere!... Não é a primeira vez que a Leonardo dá sinais desta ordem; é inaceitável que a Leonardo dirija ao público textos que traduzam uma inconsciência dominada por quadros mentais rasteiros, talvez oriundos de um determinismo estruturalista e materialista.
Seria conveniente que o Miguel Duarte esclarecesse o sentido que dá à expressão de guerreiro para que não estimule no leitor a tentação fácil de recorrer ao sentido comum de interpretação quanto ao entendimento da imagem que pretende projectar do Orlando Vitorino.
Se entendermos a guerra como a expressão dramática do conflito último entre os homens depois de entre eles aparentarem esgotados todos os argumentos que capacitem a via simbólica, em cujas consequências relevam a destruição das existências e o domínio dos espíritos diabólicos, no palco em que tal brutalidade ocorre vislumbramos os guerreiros seus excelsos actores… Sendo o actor, aquele que faz, com uma virtualidade que só a ele pertence, o que há de significativo na acção[2], fica o ofício do actor todo aí: as palavras são da personagem, o outro do actor, e ao emprestar-lhe, com o corpo visível que ela não possui, a voz que ela também não tem, da personagem recebe o actor as palavras que não são suas[3]. Embora reconheça superior nobreza na figura do actor cuja vida por definição toda ela ocorre de forma significativa, e assim o guerreiro, temos que esse não se afigurava o perfil de Orlando Vitorino, até porque nunca perdia a razão. Essa era uma capacidade de abertura ao espírito que o assistia e que lhe garantia a não necessidade da guerra, a qual entendia que só a estupidez e a visão parcial e obtusa das questões poderia gerar, como em algumas ocasiões ele nos referiu. De resto, em palestra que promovemos para estudantes de urbanismo e de arquitectura da Universidade Lusófona, lembro de Orlando dissertar sobre aquelas artes que entendia não ser conhecedor profundo, utilizando por isso o recurso ao conhecimento e à experiência que detinha nas artes do palco; começou então por nos contar que no teatro fez de tudo um pouco, foi empresário, dramaturgo, encenador… só nunca foi actor. Efectivamente tenho que Orlando Vitorino não era um guerreiro, até porque me parece incompatível com a figura do filósofo.
Só quem não tem o sentido do sagrado não percebeu que a forma como Miguel Duarte referiu as intenções de Telmo para com o irmão profanam sim senhor a relação duplamente fraternal que ambos perfilham, de sangue e de pensamento, pelo que parece compreensível a dedução de Pedro Sinde em direcção a uma eventual intenção caluniosa de Miguel Duarte sobre António Telmo. Mesmo que Miguel não pretendesse deixar implícita a ideia que António Telmo tratou inferiormente o irmão Orlando, essa foi a leitura de, pelo menos, um leitor, o Pedro, já que foi o único que se pronunciou. Mas, já agora, o Pedro não se encontra só nessa leitura, pois sei também que o Elísio Gala a fez[4], tal como eu a fiz.
A obsessão da Leonardo sobre Sesimbra já se torna despropositada. Não se afiguram questões filosóficas a ser tratadas, em vez de se insistir ridiculamente em discutir pretensas e obscuras intenções dos organizadores dos colóquios de Sesimbra de quererem silenciar sepucralmente o pensamento de Orlando? Parece porém natural que o evento que pretendeu colocar na ordem clara das mentes atentas a renovação do espírito de 57, por motivação e esforço dos convivas de António Telmo, evidentemente se alimentou, bebeu e inspirou no seu testemunho, em sua relevante autoridade e alto magistério. Sem dúvida, a Leonardo teria seguido outra via, mas a Verdade ambicionada parece-nos a mesma. O magistério e autoridade de António Telmo no evento em causa afiguram-se suficientes para que se lhe deva respeito e confiança. A voz, a força e o lugar de Orlando Vitorino no escol da filosofia portuguesa em geral, e no movimento de 57 em particular, foram garantidos e ficaram então bem marcados no contributo, na pena e na palavra de seu epígono Francisco Moraes Sarmento. Outros terão contribuído para relevar seus mestres, ou as teses de pensadores decisivos no movimento. E os universitários de serviço lá estiveram para, felizes e contentes, da verdade nada dizerem, mas, quem sabe, como sempre parece, quais agentes secretos, ali foram tentando recolher informações e a estrutura dos acontecimentos para depois em seus laboratórios, sob técnicas distantes de qualquer simples mortal, tomados de espírito ingénuo tudo deformarem e até à exaustão decomporem, sabe Deus com que propósito ou finalidade… Portanto, o painel estava completo e o desenho realizado sob a justa batuta de António Telmo.
São indignas as veredas do espírito que insuflam insultos, calúnias ou boçalidades quando as suas direcções pretendem atingir companheiros de viagem. Tanto mais interditas se devem afigurar essas veredas quando esses companheiros são autoridades que sacrificaram as suas vidas em prol da actualização daquele pensamento filosófico cujo espírito, invocando a ordem magistral de Orlando Vitorino, os da Leonardo tanto pretendem catalizar auto-proclamando-se como que seus fiéis depositários, porta-estandarte, justos guardiães e decisivos continuadores da ortodoxia filosófica da pátria portuguesa. Ora o espírito corre independente da vontade dos homens, e recebe-o quem estiver preparado no sítio e no tempo adequados; não foi, não é, nem será exclusivo da Leonardo, por simples vontade dos seus responsáveis, a permanência e a contenção do espírito filosófico dos portugueses, mesmo aquele dado a conhecer por Orlando. Outros, para além dos que fazem actualmente a Leonardo usufruíram e beneficiaram forte e seriamente do convívio tertuliar e magistral do Filósofo. Entre eles, incontornáveis e na primeira linha: João Luís Ferreira, Gonçalo Magalhães Collaço, e Elísio Vaz e Gala. Cada um certamente actualizando e personalizando o espírito que mais importa, fiéis ao magistério que receberam, no uso e na superação dos meios, contra-tempos e circunstância com que se deparam. Porém, estes, pouco ou nada têm colaborado com a Leonardo, mas sabemos que, lá, por onde e quando cada um deambula, caminha e actua, as suas vidas marcam sempre em alerta às coisas do espírito e fiéis ao magistério que Orlando generosamente lhes disponibilizou. Portanto, não revejo n’Os da Leonardo a detenção do exclusivo do pensamento filosófico português, embora considere sem dúvida que o Francisco Moraes Sarmento enquadra o trio de primeira linha acima referido. Para a continuidade séria da revista, e para que cumpra os propósitos a que se propôs, não podem Os da Leonardo exigir para si o exclusivo do pensamento português, nem do magistério orlandino, nem da filosofia portuguesa. Até porque o pensamento é o órgão da liberdade, e sobre qualquer homem pode ocorrer derramar-se o espírito que mais importa, e no escol da Filosofia Portuguesa fora da Leonardo diversos parecem os indivíduos que se encontram abertos e disponíveis à sua actualização. Lembremo-nos que a geração dos mais velhos está ainda representada por António Telmo e Pinharanda Gomes, que garantem o magistério da palavra e a iniciação numa tradição que tem vindo a aperfeiçoar a expressão poética e filosófica.
Nunca deverá a revista desviar-se na sua concepção editorial e linha redactorial do exercício de ordem poética e filosófica, muito menos quando os temas, assuntos, ou notas tratados reportam, invocam ou recorrem aos mestres e autores consagrados do movimento.
Pinharanda Gomes e António Telmo não são propriamente uns universitarões nem uns politicozinhos da nossa praça, muito menos uns socialistazecos desses que ou lhes somos indiferentes ou a lidarmos com eles a única linguagem que entendem será eventualmente aquela que o aristotélico brasileiro Olavo de Carvalho[5] por vezes utiliza, quando a eles se dirige. (Francamente, à primeira vista poderíamos considerar que o Miguel não está a discernir o alvo, mas nos seus escritos já deu provas de não ser assim tão míope, de onde torna legítimo questionarmos se não persegue outra intenção alheia à filosofia portuguesa.) Efectivamente, são os dois filósofos autoridades a quem antes de tudo devemos respeito e reverência, e a quem devemos muito do pouco que sabemos…
Assim em meu entender, ou a Leonardo retoma a via da revista de filosofia portuguesa a que se propôs, ou deve encerrar. Por fim, enquanto membro da Direcção da Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, quero aqui deixar um pedido de desculpa ao António Telmo e ao Pinharanda Gomes, assim como a todos os leitores sérios da revista, pelos textos e palavras despropositadas que aqui foram veiculadas.
Nuno Cavaco
Quarteira, 8/6/2009
[1] Francisco Moraes Sarmento, Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, edição electrónica, 2008.
[2] O Discurso sobre o que o teatro é, texto que encerra a primeira edição de Tongatabu, de Orlando Vitorino (Teoremas, Lisboa, 1977).
[3] As Regras ignoradas da arte de bem representar aqui publicadas para que nelas se louvem os actores que representarem Tongatabu, texto que abre a segunda edição de Tongatabu e Nem Amantes Nem Amigos, de Orlando Vitorino (Teoremas de Teatro, Lisboa, 1965).
[4] A propósito, Elísio Gala escreveu uma carta dirigida ao Francisco Moraes Sarmento e a mim.
[5] http://olavodecarvalho.org/

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Carta a Francisco Moraes Sarmento


Deixo a título de registo as palavras que seguem, as quais foram enviadas por correio electrónico ao Director da revista Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, Francisco Moraes Sarmento, com o conhecimento de João S. Botelho e Miguel B. Duarte (constituíamos os quatro a Direcção da revista), no dia 8/6/2009. Importa saber que até ao momento presente não recebi a propósito qualquer resposta ou contacto, verificando porém que, sem que me fosse dado conhecimento prévio, hoje o meu nome deixou de constar naquela Direcção...

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Caro Francisco,

Desde que foste embora não sei ao certo quem tem sido o responsável pela publicação dos textos na Leonardo. Nunca tive conhecimento prévio de qualquer texto, nota ou comentário desde então publicados. De resto, já em outras ocasiões eu te manifestei desagrado sobre alguma forma e conteúdo do que vinha saindo na revista. A questão, culminante no texto assinado por Direcção em resposta ao Pedro Sinde por comentário de sua autoria sobre o artigo do Miguel Duarte, "Os malefícios de Salazar ao Porto", ultrapassou os limites do desrespeito e da falta de seriedade sobre as autoridades magistrais da filosofia portuguesa, e para com os leitores atentos da revista.

Este entendimento levou-me a escrever o texto que te envio em anexo, o qual pretendo que seja publicado na revista com a maior brevidade. Tendo em conta o conteúdo do mesmo, e se pretendemos dar continuidade à revista, mais considero que Miguel Duarte deve abandoná-la.

Um abraço,

Nuno.