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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



sexta-feira, 1 de maio de 2009

SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO, 9

Carta aberta
Pedro Sinde
Meu caro Pedro Martins

Aqui estava eu a pensar nesta Saudação ao António Telmo e logo me recordei de um episódio que gostava de te contar. Tinha combinado encontrar-me com o Professor Aloísio Lobo no Piolho. O Piolho é o nome por que é conhecido um café de estudantes universitários aqui no Porto chamado Âncora d’Ouro. Entrei e lá estava o Professor a um canto, completamente concentrado na leitura, a sorrir. Depois de nos saudarmos, logo me disse de um jacto: “Sabe, Pedro?, onde ninguém vê nada, o António Telmo vê tudo…” Isto assim à queima-roupa, intrigou-me. É claro que eu não podia estar mais de acordo e nunca exprimiria tão bem e tão sinteticamente um juízo sobre o modo do António Telmo. Baixei os olhos discretamente para ver que livro lia: era a Viagem a Granada. Sabes, como eu, que isto é rigorosamente assim. Ocorre-me, aliás, aquela ideia tão evidente, depois de lha ouvirmos, de que é verdade que há sismos em muitas terras que não têm touradas, mas só há touradas em terras com maior ou menor tendência para sofrerem sismos. Um exemplo curiosíssimo disto, diz o António Telmo, é o facto de os portugueses tanto terem levado para o Brasil, em termos de costumes, mas não terem levado touradas. Também é verdade que no Brasil não há sismos.
Enfim, mas tu lembras-te destas coisas, naturalmente. Dir-me-ias, talvez, que o melhor do António Telmo escritor não está nisto, mas na sua capacidade hermenêutica. Mas isto também é hermenêutica; porque há-de ser sempre hermenêutica dos livros e não hermenêutica dos fenómenos da nossa vida? Não devemos interpretar os acontecimentos do mundo como quem interpreta um texto? Na verdade, se não interpretarmos os fenómenos com que instantemente somos excitados, é como se eles não existissem para nós e, nesse caso, para que acontecem? O António Telmo faz este tipo de hermenêutica constantemente. O que me lembra um outro episódio, este bem curioso, a que o teu homónimo, aquele galego, recordas-te?, o Pedro Martín Lago, se refere em Poética y Metafísica en Fernando Pessoa, caracterizando o António Telmo como um “subtilíssimo hermeneuta”. Realmente, como é possível, senão sobrenaturalmente, saber que o soneto Gomes Leal do Pessoa é a carta astral do próprio Pessoa e não do Gomes Leal? Que voz foi aquela que lhe revelou este segredo? Convenhamos que é espantoso! É que não vemos por que meio natural pôde o António Telmo saber aquilo… Mas também não espanta, pois se até o Manuel Mujica Lainez, lá da Argentina, intrigado com a leitura que fez da História Secreta de Portugal, subtilmente compara o António Telmo a Fulcanelli. De resto, já o António Carlos Carvalho tinha feito a mesmíssima discreta comparação no prefácio a este livro, onde talvez até o argentino tenha confirmado o seu parecer deslumbrado.
Às vezes tenho a impressão de que o mal dos melhores portugueses é nascerem tal, quer dizer, portugueses... Bastaria nascerem num país maior (onde a inveja nunca é tanta porque os invejosos têm mais espaço na capoeira) para terem o lugar que merecem e, sobretudo, para termos nós mesmos o que precisamos, porque os grandes homens, como lhes chama Junqueiro, não devem ficar esquecidos: eles fazem-nos falta!
Mas, ainda a propósito da aproximação entre António Telmo e Fulcanelli, logo me recordei do nosso amigo Ronaldo Castro de Lima Jr., no belíssimo livro (o conteúdo é tão bom quanto o título: Saber do Céu – não chegaste a lê-lo, pois não?), numa nota discreta em que aponta o nome daqueles “que tentam recuperar os verdadeiros valores da metafísica universal”, entre Guénon, Schuon, Coomaraswamy, Burckhardt, Joseph Epes Brown, Michel Valsan, Seyyed Hossein Nasr e Charbonneau-Lassay, por exemplo, lá coloca o nosso António Telmo, aliás, o único português ali referido.
Ainda no Brasil, Santiago Naud, mas a propósito do Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, compara o tipo de hermenêutica que António Telmo realiza com a escola da chamada “Gnose de Princeton”. A formulação científica, ou dita tal, que esse grupo pretendia realizar, no sentido de reencontrar uma ciência espiritual que ponha definitivamente de lado o modelo positivista ainda em vigor, esta formulação científica, dizia, não interessaria particularmente ao António Telmo (que sempre defendeu que o pensamento só encontra a sua verdadeira fundamentação no pensamento do Criador); ainda assim, o essencial deste projecto, bem próximo, por exemplo, de Henry Corbin, não está fora do vasto horizonte de António Telmo.
Já reparaste no quanto é verdadeiro o dito: santos da casa não fazem milagres? Nós sabemos que eles vão acabar por perceber que o santo a que o vizinho reza é afinal o nosso… quando andamos nós a rezar ao deles…

E agora me lembro: e a saudação ao António Telmo? Vou agora mesmo telefonar-lhe para o saudar pessoalmente.
No entanto, deixo-te aqui o início do que tinha pensado escrever:

Faz agora um ano que fez oitenta e um anos que nasceu em Almeida. Se acreditarmos no chamado mito de Er, narrado por Platão, somos levados a pensar que nós mesmos escolhemos o destino que nos é conveniente. Creio que António Telmo escolheu Almeida por duas razões: a primeira é porque a sua planta geométrica deve ser lindíssima vista do céu, recordando as formas geométricas a que Pitágoras e Platão se referem, o que seguramente atraiu António Telmo, como se em Almeida visse o céu na terra. A segunda é porque esse nome vem do árabe al-Maida e significa “a Mesa”. O leitor está-se já a lembrar, talvez, do seu livro Bateleur; também eu, aliás, do Bateleur, da mesa do Pessoa no quadro do Almada, da mesa do escritório do António Telmo e de uma tremenda surata do Alcorão com esse nome.

Fica, meu amigo, com o abraço do
Sinde

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