(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



segunda-feira, 31 de agosto de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 19

Cynthia Guimarães Taveira




Teoria da Arte
Para a teoria da arte a Teoria precede a Arte, tal como o nome indica; para o pintor, no momento exacto em que pinta, a Arte precede a Teoria (mesmo que este a tenha interiorizado). Caso contrário a obra está estragada. Grande parte da pintura contemporânea, trocada por fortunas, está definitivamente estragada. Um pintor não pode pensar demais, tal como, se procura o Equilíbrio e o Belo, não pode usar todas as cores, formas e modelos em simultâneo. Mesmo integrado numa corrente, teoria ou justificação social a espontaneidade preside na demanda, quer da pincelada quer do pensamento. Não se imagina Percival, inactivo, pensando nas inúmeras possibilidades comportamentais que poderia adoptar na sua demanda, saltando subitamente da pedra onde estaria sentado, sabendo de antemão quais as reacções que iria ter de maneira a obter o Santo Graal. Pois se um artista está em constante demanda, o mesmo não se imagina dele. Arte e misticismo são reacções emotivas, mesmo que busquem a ausência de emoção e o apaziguamento da alma. Será o mesmo que imaginar um alquimista que se recuse a acender o fogo. E haverá algo mais espontâneo do que o fogo?

domingo, 30 de agosto de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 28

Madrid
Pedro Martins

Prestes a chegar a Madrid, detenho-me, por alguns minutos, numa estação de serviço nas cercanias de Móstoles, para desentorpecer o corpo moído pela viagem, cinco horas antes iniciada em Estremoz. Há dois anos, já aqui tinha parado para repousar. E, agora como então, compro o El País, para saber novas do lugar que me aguarda. Calha ser sábado e o periódico vem acompanhado do suplemento literário Babelia. A este, folheio-o rapidamente; e, na contracapa, deparo com um anúncio de página inteira, profusamente ilustrado, apregoando os dois últimos livros de José Saramago: A Viagem do Elefante, já em sétima edição por terras de Espanha, e O Caderno de Saramago. Noto que, graficamente, as capas de ambos os livros são tal e qual as das edições portuguesas. Continuo a percorrer o diário castelhano. Nova contracapa – desta feita a do primeiro caderno – aparece inteiramente preenchida com uma reportagem sobre Cristiano Ronaldo, por estes dias contratado pelo Real Madrid a troco de um estipêndio obsceno. Enfastiado, ponho o jornal de lado. Não voltarei a pegar-lhe. Sigo caminho.

Chegado ao centro da cidade, engano-me na direcção. O desvio leva-me para as bandas do Manzanares, riozito famélico. Logo corrigida a derrota, estaciono o carro no parque subterrâneo da Plaza de España e instalo-me na Gran Via. Saio à rua. Tal como a meteorologia havia previsto, não se pode dizer que esteja muito calor em Madrid. Subo a calle. Por alturas do Callao, entro na FNAC, vou ao andar dos livros e sou surpreendido com duas pilhas de exemplares de El Viaje Del Elefante, colocadas, lado a lado, em lugar estratégico. Numa, estão espécimes da terceira edição. Na outra, da sexta. Lembro-me então do anúncio no Babelia e recordo-me de, meses antes, alguém me ter dito que uma grande editora portuguesa estava a fazer sucessivas tiragens de um livro recém-publicado cujas vendas se revelavam um fiasco, só para criar a ilusão comercial de que o seu autor – uma celebridade nacional nossa – continuava a dar cartas. Saio da FNAC a somar dois mais dois e com El Golem, de Moshe Idel, no saco das compras.
Progrido na Gran Via. Alguns quarteirões adiante, surge a Casa del Libro. Vou directamente ao segundo piso, onde estão os ensaios. Há ali muito que ver. Folheando um tomo da Iconografia Del Arte Cristiano, de Louis Réau, colho, desapontado, alguns informes sobre o Pentecostes. Esperava mais. Mas sou compensado com a descoberta improvável de um livrinho de Martin Buber, intitulado Que Es El Hombre?, numa edição mexicana do Fondo de Cultura Económica. (No início de Julho, havia lido, com grande proveito, um outro opúsculo deste nobilíssimo filósofo hassídico: Le Chemin de L’Homme.) Não menos dignas de nota, dada a sua beleza, são as capas da colecção Sophia Perennis, de José J. de Olañeta, Editor. Uma honrada perdição. Eu que o diga. Entretanto, consigo satisfazer boa parte da encomendação que o Pedro Sinde me fizera. Mas Asín Palacios nem vê-lo. De regresso ao rés-do-chão, relanceio o olhar pelos escaparates da ficção. Horrorizado, descubro que as obras de Pessoa, Saramago, Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto e demais autores lusitanos vertidos para o castelhano se encontram colocadas na secção de literatura hispano-americana, e não na de literatura estrangeira! (Escusado será dizer que a gerência do estabelecimento não considerou um terceiro termo.) Nesse instante, a imagem de Franco Nogueira perpassa-me, simpática, a memória saudosa. E saio.
Retrocedo na Gran Via e desço a Calle de los Preciados a matutar no enigma de haver tão poucas livrarias no centro de Madrid. Com a Puerta del Sol em obras (se bem me lembro, já assim a encontrara em Agosto de 2007), derivo para a Calle del Arenal. Topo com novo estaleiro, desta vez junto ao edifício insípido do Teatro de la Opera. Entro no metropolitano. Nos cais das estações, um cartaz publicitário exibindo Cristiano Ronaldo efusivo e em tronco nu repete-se ad nauseam. Lembro-me então de que amanhã será dia de ir ao Prado e ao Retiro e suspiro de alívio…

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

ABDEL HAYY, IPSIS VERBIS

Na imagem: Mehmet II
«Uma religião na diversidade de ritos»

"Una religio in rituum varietate" era o sonho de Nicolau de Cusa, que chega a propor, em 1453, um concílio universal em Jerusalém que procurasse o reconhecimento e o acordo de todas as confissões religiosas ("uma religião") na "diversidade de ritos".
Já, antes, Raimundo Lullio, que escreveu muitas das suas obras em árabe, afirmara que o islão é a religião mais próxima do cristianismo.
Os exemplos de inteligência universal são muitos nos tempos passados; por que esquecemos o melhor dessa época - aquilo com que verdadeiramente devemos aprender - e lembramos, repetindo, o pior? Hoje, quando se procura o "diálogo" entre religiões, está-se a partir já de um ponto de vista laico, sentindo a religião como algo inferior, algo desprovido de valor em si mesmo e que o "bom senso" dos ateus vem "salvar", apelando à "racionalidade", à "razoabilidade". Este discurso da contemporaneidade é altamente corrosivo. O diálogo entre religiões, se tem de existir, é a partir de dentro delas; quem está fora delas não pode ter a compreensão plena do que se trata e mesmo muitos dos que estão "dentro" são apenas a expressão da sua "fé", presos da crença, incapazes, por isso, de se elevar ao plano do intelecto: único "lugar" em que se podem encontrar aquelas almas como os Cusa ou os Lullio ou os Mehmet II.
Os muçulmanos de hoje podiam também lembrar-se dos seus melhores exemplos: para ficarmos na mesma época, o sultão Mehmet II, entrando em Constantinopla (1453), restaurou (note-se!) o Patriarcado Grego Ortodoxo, rodeou-se de sábios e artistas de toda a Europa, protegeu e interessou-se muito pelo cristianismo (que era a religião da sua mãe!!!) e protegeu os judeus.
E o nosso
cardeal que julga que "estamos agora a começar o diálogo" inter-religioso...
A nossa tradição, o melhor dela, está no que retivemos da Andaluzia e no modo como soubemos olhar para as outras tradições; o olhar da Igreja, infelizmente, foi - e não devia! - aprisionante, levou-nos a condenar, a queimar, a estigmatizar muitos dos melhores cristãos, dos melhores judeus e dos melhores muçulmanos. Saibamos voltar a olhar por cima dos telhados: seja a partir da torre sineira da igreja, do minarete da mesquita ou daquela yeshiva que fica no piso superior de uma sinagoga. Na diversidade dos ritos, que se reconheça a adoração do mesmo Deus desconhecido.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 27

A propósito de “Amor Fati”, de Pedro Sinde
Isabel Xavier

No domingo passado, dia 23 de Agosto, vim espreitar o blogue, como outras vezes faço. Desta vez deparei-me com o texto “Amor Fati”, de Pedro Sinde. Eram exactamente aquelas as palavras que eu precisava de ler naquele dia. Depois lembrei-me de que também eu escrevera há muito tempo um poema que ia numa direcção semelhante. Procurei-o, achei-o, e soube que já o tinha escrito em Junho de 1997! O que é que acontecera entretanto? Esquecera o que eu mesma tinha escrito? Ou será que só sabemos as coisas enquanto as estamos escrevendo?

A Praia, de João Vaz: clique na imagem para a ampliar
Falei sobre isto com o Pedro Sinde, que escreve como ninguém, de um modo que sempre produz em mim uma espécie de eco, algo que me desperta e me inspira para a vida e para a escrita. O Pedro incentivou-me a enviar o (velhinho) poema para o blogue. Ei-lo:

Amo cada momento
De que se fez a minha vida
Cada ilusão perdida
Cada dor, cada desgosto
As lágrimas que me correram pelo rosto.
Amo as alegrias também
A doce recordação de minha mãe
A realidade de ser
A verdade de olhar e ver
Aquilo que me rodeia:
Traços desenhados na areia
Da praia do mistério e do amor
Onde mora a minha alma, a dor
Que Deus me deu
E constitui a passagem
Que existe p’ra lá do eu
Ao longo desta viagem:
Fascínio do impossível, inquietação
Ausência, loucura, inspiração
A Luz que preside à criação
E acima de tudo o dom da Vida
Excessiva, bela, errante, desmedida
À dimensão exacta da Verdade
Em mim e nós, por vós, na Eternidade!

EXTRAVAGÂNCIAS, 26

Réstea
Pedro Martins

Em pleno labor da escrita, no transe de um intenso convívio com Teixeira de Pascoaes, eis a dúvida que emerge: deverei grafar réstea? Ou, antes, réstia, como, há muito, (e eu só agora o vejo) parece ser norma? A par da minha ignorância, aqui confesso que a primeira forma é, de longe, aquela que mais me agrada. Ainda ontem a fui casualmente encontrar, durante a leitura deleitada de um dos Contos Bárbaros do espantoso escritor duriense João de Araújo Correia (prometo cá voltar em breve, para vos deixar um apontamento sobre os seus Contos e Novelas, em curso de reedição na INCM).
Partilho com o grande Pascoaes a ideia de que o génio foneticamente grave da língua portuguesa, redutível a uma só letra – o e –, foi pervertido pelos ii que, a torto e a direito, lograram usurpar o lugar natural da segunda vogal. Tenho para mim que os ii são riso e sangue – o sol a pino e o diabo a sete! Uma coisa do meio-dia, portanto… que, por certo, não quadra com este nosso sentir brumoso e litoral, próprio de gente da finisterra, onde o sol sempre cumpre o suideicídio do seu ocaso. Sei bem que a fraqueza está do meu lado: não desconheço a importância significativa que António Telmo fundadamente atribui à vogal do meio.
Pascoaes diz que os ii são italianos como os àà são de Castela, mas na imensidão da Meseta é que eu punha os primeiros: lembram-me os cornos dum touro desembolado, correndo até à morte – eran las cinco en punto de la tarde – no redondel de Las Ventas. Ou um par de bandarilhas sangrando o dorso sacrificado do animal.
Com o vate foi diferente. Teve de lidar na areia do deserto. E bem sabia o que o esperava em causa própria. Calculo que, lá onde Deus o tenha para maior glória de ambos, o nosso poeta se amofine com as frechadas que lhe desferem – o que não raro sucede, sempre que alguém escreve Pascoais. Só não terá sido capaz de adivinhar que, ao Marános onde dissimulara o kippah, houvessem de enfiar um grande barrete, como quem tira um Coelho da cartola. Marânus – escrevem eles agora.

Outono, de José Malhoa: clique na imagem para a ampliar
Revertendo. Em que ficamos? Réstea, como eu pretendo, ou réstia, como manda o dicionário? Percorro o sabichão até à saída da entrada. O leitor terá a bondade de me acompanhar:
réstia
s. f.
1. Corda feita com ramas ou hastes entrelaçadas.
2. Uma dessas cordas com alhos ou cebolas enfiadas.
3. Feixe ténue de luz.
4. Pop. Corja; súcia.
andar ou meter-se de réstia: arranchar.


Ficou lido? Pois é célebre! Réstia, que sugere o que resta (o que ainda se tem) – como em uma réstia de esperança –, afinal não vem de resto. Ele há sobretudo cordas, cebolas e mariolas. Mas resta, desta réstia, um feixe ténue de luz, que é bem capaz de nos iluminar. Réstia é a luz que resta, à tardinha, ao crepúsculo, quando o sol se põe. Nem sequer se compõe com o arrebol das matinas, ainda e só a promessa de uma dádiva maior. Réstia é a luz que, outonal, declina. Só por isso é réstia. E é já réstea.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 18

Cynthia Guimarães Taveira




Os Universos
Há uma pilha de livros em cima daquela mesa. São livros de arte. São livros grandes com grandes imagens. Cada livro é de um pintor situado algures na corrente temporal da história da arte. Mas nada disto é bem assim. O que lá está são vários universos. Cada pintor criou o seu. Universos paralelos empilhados numa torre ascendente. Os esfuminhos de Leonardo, as bocas rosadas de Botticelli, as mulheres de Modigliani, os azuis de Chagall. Universos paralelos vivendo em uníssono com o nosso. Lado a lado com aqueles descritos por místicos e xamãs. Um universo só não basta. O inconformismo é a fonte da arte. Essa infelicidade permanente com o tão pouco que se tem. Mais um pouco de rosa nas tuas faces rosadas – diz o pintor ao modelo. Mais luz no fundo do teu olhar e o mundo será perfeito. Uma última pincelada dada como a última ordem da batuta numa sinfonia e remata-se outro mundo na tela. Esse novo mundo agora transborda enfim livre dirigindo-se ao nosso olhar. Não o recusamos, antes o desejamos. A obra é a citação de um universo inteiro.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 24

António Carlos Carvalho

O seu túmulo é o mais majestoso do velho cemitério de Praga, e também aquele onde os visitantes colocam mais pedras e até mesmo moedas...
A sua estátua, erguida desde 1917 junto do edifício do município de Praga, é a mais impressionante da cidade.
O Maharal de Praga morreu há 400 anos e agora tem uma exposição dedicada à sua vida e obra no castelo da cidade, patente até 8 de Novembro, enquanto os correios checos fazem a emissão especial de um selo dedicado àquele que, não sendo natural de Praga nem sequer checo, marcou definitivamente a cidade com o seu nome.
O rabi Judah ben Bezazel Loew (designado Maharal na tradição judaica) nasceu em 1512, talvez em Worms, junto ao Reno. Até aos 40 anos, é apenas um erudito de Posen, Polónia, onde estudou. Depois, durante 20 anos, de 1553 a 1573, ocupa as funções oficiais de rabino da Morávia, em Nikolsburgo. Aos 60 anos instala-se em Praga, mas a título privado, dirigindo a pequena sinagoga-escola da «Klaus», meditando e amadurecendo uma obra que começa a redigir e a publicar aos 70 anos. Em 1592, já octogenário, deixa Praga para exercer as funções de grão-rabino em Posen. Mas regressa a Praga cinco anos depois para ocupar aí as mesmas funções de grão-rabino, que mantém até à sua morte em 1609, com 97 anos.
Ao contrário do que se possa imaginar, esta longa vida não foi pacífica: o Maharal entrou em choque com os rabinos da Posnânia, por volta de 1596; travou várias disputas teológicas com clérigos cristãos; teve de enfrentar um incidente grave no gueto de Praga em 1602. O respeitado erudito era também um homem que não virava costas à polémica quando se tratava de defender pontos de vista que contrariavam rotinas instaladas na sua comunidade.

Túmulo de Judah ben Bezazel Loew, o Maharal de Praga
Por outro lado, o Maharal é igualmente um homem do seu tempo, muito marcado por esse século XVI recheado de acontecimentos dramáticos. Tal como o nosso Isaac Abravanel, cuja obra conhecia e admirava, o Maharal foi afectado pela expulsão dos judeus de Espanha em 1492; pela renovação das comunidades do Oriente e sobretudo da Terra de Israel, consequência da expulsão; pelas convulsões messiânicas suscitadas por David Reubeni e pelo português Salomon Molko; é tocado igualmente pela Renascença e pelo humanismo judaicos, é contemporâneo de Tycho Brahe, de Keppler e de David Gans em Praga.
Nada do que é humano lhe é estranho. Coloca o princípio da criatividade não em Deus mas no homem. Separado do seu Criador, o homem deixa de ser efeito (em relação à causa divina) para passar a ser ele próprio causa. É livre mas essa liberdade consiste menos na possibilidade de escolher entre bem e mal do que no poder de os criar. A geometria do homem deixa de ser vertical, passa a ser horizontal: existe uma tensão horizontal entre essas duas forças autónomas e profanas que são a natureza e o próprio homem. O Maharal estabelece uma comparação entre a condição do homem e a da árvore. Como a árvore, o homem está de pé, enraizado no húmus fecundante da terra, da gleba, da natureza física e é daí que retira a sua seiva, a sua vida, a sua substância. Tal como a árvore, o homem é é sobretudo um ser soberbamente físico, e a solidez e o desabrochar dessa parte física, irrompendo do ponto mais baixo das raízes para os cimos do tronco e dos ramos, condicionam e asseguram esse «mais» que constituem para a árvore os seus frutos e para o homem o seu espírito.
É impossível resumir a obra que o Maharal foi amadurecendo ao longo da sua vida e que começou a publicar tão tarde. Duas dezenas de títulos («Livro do Poder», «Livro da Glória de Israel», «Livro da Eternidade de Israel», «Luz Nova», «O Caminho da Vida», «As Vias Eternas», «O Poço do Exílio», etc.) que só foram realmente descobertos no século XX, graças a estudiosos como Jacob Gordin, André Neher ou Léon Askénazi e, mais recentemente, Benjamin Gross. Recomendo vivamente a leitura de «Le puits de l’exil – tradition et modernité: la pensée du Maharal de Prague», de André Neher (Cerf, 1991); «Le messianisme juif dans la pensée du Maharal de Prague», de Benjamin Gross (Albin Michel, 1994) e «Que la lumière soit – “Nér Mitsva” du Maharal de Prague», do mesmo autor (Albin Michel, 1995).
Claro que há ainda um outro aspecto a referir quando se fala do Maharal do Praga: a sua pretensa ligação com a lenda do Golem de Praga, o estranho ser que o rabi teria criado para defender a sua comunidade dos perigos que a ameaçavam. Hoje, essa lenda faz parte do folclore turístico obrigatório da cidade mas a verdade é que a lenda (tratada literariamente por autores como Gustave Meyrink, Isaac Bashevis Singer ou Eli Wiesel) só nasceu no século XIX, como explica Moshe Idel no seu monumental estudo «Le Golem» (Cerf, 1992).
Última nota: tanto Benjamin Gross como Moshe Idel participaram na conferência internacional, realizada este mês em Jerusalém, sobre os 400 anos da morte do Maharal. Durante a qual foi projectado o filme «Der Golem», realizado por Paul Wagner em 1920.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

OS POETAS LUSÍADAS, 27

[da série Nocturnos]

MEDITAÇÃO DA NOITE

Vinha alargando a noite… Eu continuava,
Já rouco, e aos berros sem decência alguma.
Ai boca estéril, tumultuosa, e escrava!
Cuspia fumo, pó, fel, sarro, espuma…

Minh’alma aflita ouvia-me, e aguardava,
Pesando-me as palavras uma a uma:
Mas, entre tantos sons, só não ressoava
A Palavra essencial que me perfuma!

Quem me julgou – julgou-me, pois, por tudo
Menos por essa Nota inexprimida
Sem a qual nem respondo aos que me chamem…

E eu fiquei só, desconhecido, mudo,
Pairando, estranho à minha própria vida,
Per omnia secula seculorum…, amen.

José Régio

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

PENSANDO À BOLINA, 8

Pedro Sinde


Amor fati
"Amor fati" é uma expressão latina que exprime a ideia de que se deve amar o seu próprio destino. De vez em quando somos confrontados com acontecimentos inevitáveis, mesmo que nos pareçam pequenos. Perante o inevitável, o necessário, o destino, podemos resignar-nos ou, então, numa atitude de alma mais nobre, aceitá-lo como se tivesse sido uma escolha nossa.
Somos muito menos do que a imagem superficial ridícula que fazemos de nós, mas também somos muito mais, isto é, existe em nós uma sabedoria latente, profunda, pré-natal, que ultrapassa tudo quanto podemos sonhar. Infelizmente estamos separados de nós mesmos, vivemos à superfície de nós mesmos.
No mito de Er, Platão descreve que a alma, antes de nascer, escolhe o seu destino. Perante isto, sabendo isto, podemos, pois, aprender a descobrir porque é que escolhemos aquele acontecimento da nossa vida. Aprendendo a amar o nosso destino, aproximamo-nos daquela parte de nós que sabe, daquela parte da qual estamos separados. Em religião chama-se a essa parte de nós, o anjo; em filosofia aristotélica, a enteléquia ou o intelecto activo; ela é o céu do nosso pensamento, nós somos a sua terra, a terra onde se realiza a sua acção.

Tapeçaria representando as Três Parcas

O português é, dos povos europeus, aquele que melhor conhece a noção de "fado", mas deleita-se excessivamente nele, sem procurar compreendê-lo, quando aquilo que importava era precisamente que sublimasse esse sentimento no cadinho da emoção. Este é, talvez, um dos mais difíceis caminhos, é, também, um dos mais belos. Se amarmos o que nos acontece de tal modo que saibamos que foi desejado por nós, iremos percebendo também a razão de ser do nosso destino, mesmo, sobretudo, no meio do sofrimento.
De todos os acontecimentos, o mais terrivelmente fatal é a morte, a dos nossos queridos e a nossa. Mesmo a morte, a nossa morte, há-de ter sido desejada.
texto originalmente publicado no blogue Maranos

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 25

Basbaques
Pedro Martins

No último domingo, fui ver, pela segunda e derradeira vez, a exposição que está patente no Museu Nacional de Arte Antiga, intitulada Encompassing the Globe – Portugal e o Mundo nos séculos XVI e XVI. Movido pela curiosidade, já ali estivera em meados de Julho, num dia de semana, pouco depois da inauguração. Mas, dada a estreiteza de horários, apenas tivera a oportunidade de empreender uma visita sumária ao acervo que reuniram no último andar do Anexo. Na altura, formei uma má impressão daquilo que, a voo de pássaro, me fora dado observar. Agora, pude comprovar a opinião negativa. Com tempo, e a frio – como convém.
À entrada do museu, vencida a porta que dá para o Jardim 9 de Abril, a presença tutelar de um cartaz do Turismo de Portugal faz-nos esperar o pior. A este propósito, é bom que se saiba que, com o pagamento de uma taxa devida à Smithsonian Institution, luminária americana que engendrou a ideia, e com as despesas de divulgação do evento em Portugal e no estrangeiro (sobretudo em Espanha, pois então!), saíram 500.00 euros dos cofres públicos. E para quê? Para que possamos apreciar “a riqueza da perspectiva inscrita pelos comissários científicos da exposição”, a qual, afiança o portal do MNAA, nos “mostra Portugal como pioneiro absoluto da actual era de globalização de conhecimentos”.
Santo Deus! Por quem nos tomam?! Qualquer pessoa medianamente culta sabe o que Jaime Cortesão escreveu em O Humanismo Universalista dos Portugueses (um livro notável, há décadas esgotado, e que a Imprensa Nacional-Casa da Moeda persiste em não reeditar). Isto, por exemplo:
“Metrópole do Mundo, Portugal criou, de certo modo, cidadãos do Mundo. Formou-se nesses homens, ao contacto múltiplo dos povos peregrinos, uma consciência nova e unitária da Humanidade. Neles, nas suas obras e nos seus actos, raiou pela primeira vez a vasta e complexa compreensão do humano, na sua riqueza e diversidade. Do humano, em todos os continentes e em todas as raças.
“Aqui reside a diferença essencial que distingue o humanismo, nascido do Renascimento greco-latino, localizado no espaço e na Antiguidade, e o humanismo português, integrado no seu tempo, inspirado em todas as culturas do planeta e, se não formando inteiramente, reunindo os elementos de formação do espírito moderno.”

Ou isto: "Humanismo mais pragmático e moral do que filosófico e crítico, ele, dissemos nós, não era apenas uma ideia. Era menos e mais do que isso. Era uma regra de conduta. Um temperamento moral. Uma cultura em acção. O sentimento duma unidade humana a realizar, quer pela fé, quer pelo conhecimento e pelo amor. E só os que se misturaram intimamente à grande aventura do Descobrimento, às influições de outros climas, outros astros e outros povos, o sentiram, o encarnaram e o definiram.”

Creio que estamos conversados. Não será um remoto colégio de cientistas anglo-saxónicos a trazer novas e mandados em questão de sobejo desbravada. Para mais quando a maioria das peças agora exibidas integra há muito as colecções nacionais.

Claro está que há sempre o perigo de, com a expressão globalização de conhecimentos, se querer significar a abominável locanda planetária em que a filosofia nórdica, manu militari, vem transformando o orbe, caso em que o embuste evidente deve ser denunciado.
Nos painéis museográficos que introduzem os diversos núcleos de Encompassing the Globe, curtos textos informativos tendem a reduzir os Descobrimentos Portugueses a uma gigantesca empresa comercial – posto que, aqui e ali, se conceda o registo de alguns feitos de ordem científica e diplomática. Como quer que seja, não fora a presença, na exposição das Janelas Verdes, de um importante conjunto de testemunhos relativos à missionação, pouco – ou nada – nos seria dado ler sobre a dimensão espiritual da gesta grandiosa dos portugueses, a despeito de nela se exibirem inúmeras peças de imediata significação religiosa.
Que os Descobrimentos, obra irrealizável sem o concurso de judeus, cristãos e muçulmanos, visavam a realização da Cristandade universal, na intenção do Quinto Império, mostraram-no à saciedade os hermeneutas da tradição portuguesa. A exposição oblitera, por inteiro, este aspecto decisivo.
É indecente o enlevo acrítico com que, no portal do MNAA, se acolhe o texto de um artigo publicado no New York Times aquando da exposição realizada em Washington, em 2007. Aqui transcrevo o arrazoado do plumitivo norte-americano: “A little-known fact: A version of the Internet was invented in Portugal 500 years ago by a bunch of sailors with names like Pedro, Vasco and Bartolomeu. The technology was crude. Links were unstable. Response time was glacial. (A message sent on their network might take a year to land.)”
Dificilmente se explica a um yankee que o desvelamento amoroso da Natura nada tem a ver com a Internet. A prática eólica dos navegadores portugueses estava nos antípodas da cosmologia de violência de que a rede constitui hoje um insidioso expoente.
Dessa convivência sem mácula com que outrora soubemos, por vezes, lidar com o mistério fascinante dos seres, veio a abolição pioneira da pena de morte, há quase século e meio, a constituir uma das derradeiras emanações. Em princípio, isto seria já o bastante para que nos limitássemos a olhar de alto, e de soslaio, para os pobres americanos. E, no entanto, é o que se vê...
Quem nos virá salvar deste nosso jeito bisonho de basbaques?

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 17

Cynthia Guimarães Taveira
Tríptico d'A Vida - Esperança, Amor, Saudade, de António Carneiro: clique na imagem para a aumentar

O Símbolo
O símbolo submete o pintor à sua vontade. Prende-lhe os gestos, os movimentos, mas obriga-o a olhar para além da imagem. Procura o sentido da forma: do cálice, da ave, do céu, da noite. Procura em seguida conjugar sentidos, semânticas visuais. Nada pode falhar com o símbolo. Ele é preciso, exigente, rigoroso. Quando escolhe símbolos, esse pintor procura não mentir, não falhar. É mais escritor do que pintor, nessas alturas em que a pintura de um pôr-do-sol não tem de estar perfeita mas sim o seu sentido. Ajoelha-se perante as palavras encerradas no símbolo e procura mais longe: o seu âmago, a sua raiz, o que esconde quando revela. Sim, somos demasiado humanos para o símbolo e para saber a matéria de que é feito, qual a ideia que, concentrada, pulsa no seu interior. Talvez este simbolizar permanente seja apenas a casca, dura, impermeável, inflexível e, por isso mesmo, a quebrar, a destruir, a renunciar, para que se faça luz enfim. Talvez esses símbolos pintados não passem de fronteiras para outro mundo, inúteis em si mesmos, mas importantes no momento em que desaparecem no horizonte.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 23

António Carlos Carvalho

Esta noite sonhei que tinha encontrado os diapositivos do António Quadros.

Sei bem o que isso significa para mim: António Quadros era um apaixonado pelas velhinhas igrejas românicas que se encontram por esse Norte adentro, às vezes em lugares de difícil acesso, sobretudo longe dos percursos apressados dos turistas. Mas ele fazia questão de as fotografar e de preservar as imagens delas nos seus diapositivos, cuidadosamente catalogados e arrumados num compartimento da antiga sede do IADE. Imagino que os diapositivos não estarão perdidos, mas sim guardados pela família de António Quadros, juntamente com o resto do seu espólio.

O meu sonho falava-me de outra coisa: de um IADE que se perdeu, que não existe mais, de um projecto cultural e filosófico que morreu com a desaparição do seu fundador.

Sei exactamente por que tive este sonho.

É que há poucos dias, mexendo em velhos arquivos, reencontrei um desdobrável que anunciava as iniciativas do IADE para o ano de 1983-84 – entre elas, um Curso Básico de Cultura Portuguesa, curso livre de dois anos, com horários acessíveis a todos (das 18 às 20 horas, entre segunda e quinta-feira) e que tinha este programa:

Segundas-feiras -- «As Teses da Filosofia Portuguesa», por Orlando Vitorino; «A Imaginação Mítica e Simbólica na Pintura e na Arte Portuguesa», por Lima de Freitas.

Terças-feiras -- «A Pedra Angular, Introdução à Simbólica Tradicional da Arquitectura Portuguesa», por António Carlos Carvalho; «As Instituições Políticas Portuguesas, Fundamentos e Evolução», por Jorge Borges de Macedo.

Quartas-feiras -- «Teoria e Prática da Arte Cinematográfica e o Cinema Português», por António Lopes Ribeiro; «História e Estética da Cerâmica e da Azulejaria Portuguesa», por Rafael Calado.

Quintas-feiras -- «Teoria e Problemática da Identidade Cultural Portuguesa», por António Quadros; «História e Estética do Teatro Português», por Duarte Ivo Cruz.

Estes cursos livres, entre outras virtudes, possuíam a de reunir os assistentes mais improváveis, misturando gerações e profissões, todos unidos pelo mesmo interesse: isto que fomos e que somos.

António Quadros
Lembro-me, por exemplo, de ter no meu curso arquitectos e alunos de arquitectura – e de perguntar a estes o que os levava a frequentar um curso como o meu: «Ninguém nos ensina estas coisas nas nossas aulas da faculdade...»
Mas também ali estavam secretárias de empresas, alunos de Direito ou de Economia, até mesmo um comissário de bordo da TAP.
Os cursos organizados por António Quadros faziam estes pequenos milagres. Criar espaços e tempos para se falar, para se debater o que ele próprio intitulou «A Arte de Continuar a Ser Português».
Do meu ponto de vista pessoal (eu, o jovem anão entre aqueles gigantescos senhores), devo a António Quadros a oportunidade de falar em público sobre algumas das minhas obsessões «esquisitas», de explicar a muitas dezenas de pessoas interessadas o que significava a orientação de um templo numa Idade Média que nunca foi uma «idade das trevas», como muitos ainda insistem em dizer, talvez por serem cegos ou ofuscados pelo néon «pós-modernista».
Depois desse curso livre sobre Simbolismo da Arquitectura Sagrada ainda regi mais um outro sobre o simbolismo do Manuelino, a que assistiram muitos dos inscritos no curso anterior. O IADE criava fidelidades dessas.
Sabemos o que aconteceu a seguir. António Quadros adoeceu e deixou-nos.
O IADE, sem piloto e sem rumo, nunca mais teve cursos livres. Transformou-se num estabelecimento de ensino igual aos outros. As últimas notícias que me chegaram a seu respeito levam-me suspeitar do pior.
E agora resta-me sonhar com imagens perdidas dentro dos sonhos.
Como é que se chama a uma idades destas...?

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

ESTÁ QUASE...

Apelo. A Petição “Não Destruam Os Livros!”, lançada pelo Movimento Internacional Lusófono, e a que os Cadernos de Filosofia Extravaganteaqui se associaram, aproxima-se das 3.900 assinaturas. Com 4 MIL assinaturas, a Petição terá que ser aceite para discussão na Assembleia da República... A Petição pode ser assinada em:
http://www.gopetition.com/online/28707.html

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 16

Cynthia Guimarães Taveira




O Pincel
O pincel não é o prolongamento só da mão. É o prolongamento do olho. É um olho que se aplica. Todo o quadro vive já na ponta do pincel antes de ser pintado. Há uma antecipação natural na arte, uma fusão de tempos. O pincel torna essa fusão possível. Antes de existir já existe. Pintar é tão somente uma confirmação no tempo. O pincel é o fuso da tecedeira fazendo a ligação entre o turbilhão do tecido e o fio. O fuso pode girar para os dois lados, para o antes e para o depois. Dada a mesma origem intemporal, pintor e pincel estão ligados por uma espécie de irmandade. Ambos estão antecipados no seu próprio tempo. Filhos e pais de si próprios. De alguma forma criando se criam, modificando a matéria se modificam. Animar a matéria é apenas relembrar. Vivificá-la é tornar a fazê-la viver. Daí a fusão dos tempos. Se o pincel desliza, o pintor desliza com ele, e a matéria sente-se deslizada. O universo é plástico e informe na sua multiplicidade de formas.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

JUNQUEIRO COMO NUNCA SE VIU

Porto. É um projecto ambicioso, inovador e ainda a concretizar-se, aquele que o Departamento de Som e Imagem da Escola da Artes da Universidade Católica Portuguesa do Porto gizou em torno do atraente site Revisitar/Descobrir Guerra Junqueiro. Sob a coordenação e a direcção científica de Henrique Manuel S. Pereira, estão previstas a edição de um livro e de um CD sobre a música de Junqueiro; a produção de um documentário intitulado Nome de Guerra, a Viagem de Junqueiro, que visa dar a conhecer as múltiplas facetas do escritor (António Telmo e Pedro Sinde, do círculo dos Cadernos, mas também Dalila Pereira da Costa, Pinharanda Gomes, Joaquim Domingues e António Cândido Franco, são alguns dos nomes em foco); e a publicação de um outro volume que, abrangendo diversos universos temáticos, reproduz e amplia as entrevistas realizadas no âmbito daquele documentário. A edição de uma fotobiografia e a realização de um concerto de homenagem ao poeta, em data a agendar, completam este projecto, que o leitor poderá agora descobrir por si próprio, entrando aqui.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 22

António Carlos Carvalho

Será que perdemos de vez a noção de silêncio?
Num estádio cheio, pede-se um minuto de silêncio em homenagem a um conhecido artista popular, falecido na véspera. Os jogadores curvam a cabeça e observam o minuto de silêncio, como fora expressamente pedido, mas a multidão nas bancadas, em vez disso, desata a bater palmas.
No funeral do mesmo artista, quando sai a urna, os presentes também batem palmas (alguns deles, pelo menos, confessavam momentos antes que não costumavam ir vê-lo nos teatros, só o conheciam da televisão).
Não sei de onde veio este hábito insólito de se bater palmas a um artista morto, só sei que nem sempre foi assim.Talvez porque outrora se reagia à morte pelo silêncio e não pelas palmas – os aplausos que não se deram ao mesmo artista quando ele estava vivo e bem precisava desses aplausos para se sentir justificado...
De facto, a morte, a perda de alguém, esse absurdo – continuo a acreditar que fomos criados para vivermos eternamente e que a condição mortal surgiu como um «acidente de percurso» -- só nos pode inspirar silêncio, o silêncio do choque e do espanto, estranheza, recolhimento, meditação.
É o que mostra, aliás, o famoso São Jerónimo de Dürer, no Museu Nacional de Arte Antiga (um museu que poucos portugueses frequentam se não houver lá exposições «mediáticas» ...)
Nunca aplausos – aplaudimos o quê, quem? A Morte? «Parabéns, morte, a tua gadanha cortou cerce o fio da vida a mais um» ...?

São Jerónimo, de Albrecht Dürer

Há em Portugal um défice de apreciação por aquilo que temos, tanto gente como património – e o património humano também é uma realidade. Recordo que no Japão existe o estatuto de «tesouro nacional vivo», atribuído a artistas e artesãos de excelência, por exemplo.
E como entre nós se alimenta a ideia, totalmente errada, de que «ninguém é indispensável», ligamos pouco ou até mesmo esquecemos o património vivo que temos enquanto dura, mas depois «canonizamos» e choramos com lágrimas de crocodilo aquele que morre, batemos-lhe as palmas que nunca lhe demos quando estava vivo e activo em cima de um palco.
Esta questão do minuto de silêncio (repare-se, apenas um minuto – e nem isso se consegue) é um sintoma preocupante do nosso estado de alma, individual e colectivo.
Se não fizermos silêncio, como poderemos ouvir o que o outro tem para nos dizer?
Como faremos a escuta do canto do pássaro, da água que corre, do vento nas folhas das árvores?
Se não houver silêncio dentro de nós, como escutaremos a voz de Deus?
Lembremo-nos daquele episódio extraordinário do profeta Elias no monte Horeb (I Reis, 19, 11 a 13):
«um grande e forte vento fendia os montes e despedaçava as penhas diante dele, porém o Senhor não estava no vento; depois do vento um terramoto, mas o Senhor não estava no terramoto, depois do terramoto um fogo, mas o Senhor não estava no fogo; e depois do fogo um cicio tranquilo e suave. *Ouvindo-o*, Elias envolveu o rosto no seu manto (...).»

terça-feira, 11 de agosto de 2009

PENSANDO À BOLINA, 19

Pedro Sinde


A matéria de que é feita a pedra
Hoje, voltou a acontecer. Desta vez, ia no Metro; nos bancos ao meu lado iam pai e filho, este com uns seis anos. De chofre, pergunta ao pai: “De que é feita a pedra, pai?” Não consegui ouvir a resposta do pai, o que lamentei profundamente, embora o importante estivesse mesmo nas perguntas. E de seguida: “De que são feitas as flores?... e as pombas?” Pensei comigo que a criança ia perguntando à medida que ia vendo, mas não pude confirmar e fiquei intrigado pela hierarquia estabelecida naturalmente: do reino mineral para o vegetal e deste para o animal. É a partir desta “ascensão” que os evolucionistas fantasiam a “evolução”, como se fosse natural que o simples desse origem ao complexo se não tivesse já em si a complexidade. Mas o melhor ainda estava para vir.
A criança, chegada ao reino animal, deteve-se aí e perguntou de que eram feitas as lulas e de que eram feitos os peixes. Depois, para meu assombro, perguntou ao pai: “De que são feitos os nomes?” Agora sim, consegui ouvir o pai a perguntar: “o quê?!”, como se não tivesse percebido bem. O filho repetiu e o pai respondeu com um rotundo e exclamativo “Ó!”.

A Torre de Babel, de Pieter Brueghel, o Velho
Lembrei-me que Adão os nomes aos seres e ocorreu-me que esta criança, filha de Adão, já sabendo os nomes, pergunta agora pela substância. Como se um hemiciclo se fechasse entre o nome e a coisa. Os nomes das coisas decaíram, cruzaram-se numa confusão de línguas, já não temos a língua de Adão, naquele momento primordial em que a língua exprimia, como que em prolongamento subtil, a própria natureza da coisa. Desse tempo ficaram-nos ainda os nomes de Deus, nomes que alguns sábios temerários invocam em mantras, dhikrs, nembutsus, japas ou outras orações jaculatórias. A língua primordial ou as línguas primordiais estão, portanto, reduzidas à essência da essência; para lá disto já não existem. Ora, como perdemos o nome, perdemos o elo intermediário que nos dava o conhecimento íntimo da coisa e é por isso que aquele filho de Adão perguntava ao pai de que são feitas as coisas e até de que são feitos os nomes das coisas.
Esta sessão de metafísica enfiada numa pergunta lembrou-me o quanto é importante perguntar, mas mais até do que perguntar, o quanto é importante saber perguntar, isto é, conseguir estar disponível, livre, apesar de todas as distracções para que somos convocados a todo o momento, para o enigma magnífico do mundo, prontos a parar na estação da perplexidade. Felizmente, não ouvi as respostas do pai, porque há um momento depois da pergunta e antes da resposta em que, se estivermos atentos ao íntimo da nossa alma, sabemos que sabemos a resposta, sabemos que não a queremos ouvir, para não estragar o que sabemos. Como se diz popularmente: uma pergunta é meia resposta. É que parece que se não soubéssemos a resposta nunca poderíamos chegar a perguntar.
E de que é feita a pergunta, pai?

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 15

Cynthia Guimarães Taveira


O Equilíbrio
Da mesma forma que a linha da loucura acompanha, paralela, a linha da vida de um pintor, tocando-a, por vezes, também o desequilíbrio das formas, das cores, são nuvens negras, ameaçadoras, no horizonte. A pintura dada em directo numa televisão pode ser uma experiência trágica. Aquele pintor criava um retrato de Camões em directo. O artista pintou exaltado um poeta cheio de força. Uma força primitiva, até no acto da própria pintura. Chegado ao ponto de perfeição só se podia sorrir perante e exactidão da última pincelada. Mas não era a última. Numa acção, inexplicável, o artista pincela, com o azedume da tinta preta, vários traços que fazem desaparecer o rosto forte daquele Camões. Num ápice a criação havia passado a destruição, a arte perene era apenas efémera. Os humores dos artistas são caminhos tortuosos cheios de esquinas escuras, inesperadas e pulsões contraditórias. A arte nasce no efémero e caminha para o efémero, só no meio é intemporal, só a meio caminho se detém e aí permanece, suspensa, sempre, até ver. É esse equilíbrio súbito que faz saltar o coração, e é nesse equilíbrio breve que nasce, enfim.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 24

De um diálogo de Nathan com Thomé:

– Na última semana, como tínhamos combinado, procurei conhecer o António Telmo, informando-me do seu paradeiro junto dos editores dos seus livros. Falei com alguns deles. Todos me disseram que António Telmo era um nome falso e que tinham perdido o rasto da sua identidade, que era por isso mesmo que não lhe pagavam.

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 21

António Carlos Carvalho

Lendo as notícias preocupantes que nos têm chegado do Irão, veio-me à memória um episódio passado comigo e com iranianos há uns vinte anos, em Lisboa.
O embaixador iraniano em Lisboa resolveu oferecer um jantar a alguns jornalistas num dos hoteis então mais em voga.
Era um jantar para fazer passar a mensagem do seu governo e a ementa, requintada, falava por si: ainda me lembro dos enormes camarões apresentados numa espécie de grande taça esculpida no gelo e iluminada por dentro.
Tudo muito apetitoso, excepto num detalhe fundamental que acabámos por descobrir à nossa custa.
A coisa pedia um vinho, no mínimo uma cerveja estupidamente gelada. Fizemos o pedido aos empregados que nos serviam à mesa mas ficámos então a saber que o nosso anfitrião iraniano só nos dava a escolher entre água mineral e Coca-Cola...
Coca-Cola? Um dos símbolos daquela América que o Irão tanto abominava já nessa altura...?
Sim, senhor, Coca-Cola. Nada de vinhos, por ordem do anfitrião, representante encartado da teocracia republicana iraniana.
Eu e os outros jornalistas trocámos olhares de fúria contida e saímos dali o mais depressa que pudemos – em busca de uma cerveja bem ocidental e decadente.

Nessa altura, eu ainda tinha práticas religiosas severas, fazia jejuns severos regularmente – mas claro que nunca obriguei nenhum dos meus convidados a sujeitar-se a essas mesmas práticas.
Manda a hospitalidade, vinda de tempos anteriores ao Império Persa, que o anfitrião ofereça o melhor que tem aos seus visitantes, que pense neles e no seu bem-estar, no que mais lhes agradar. A eles, não ao anfitrião.
Desde então percebi que o Irão, ainda que sendo apagada sombra da grandeza do Império Persa – que mesmo assim caiu –, nunca vai desistir de tentar submeter-nos às suas regras. O Irão de hoje nunca esqueceu que outrora foi Império e essa marca imperial fá-lo sentir-se superior a todos, mesmo àqueles outros povos que partilham a sua religião.
Só na Europa é que essas coisas caem rapidamente no esquecimento.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

OS PRIMEIROS PASSOS DE ALADINO

Antecipação. Com a devida vénia, aqui se (re)toma, do blogue da Nova Águia, a

Apresentação de A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa (Zéfiro/ Colecção Nova Águia) de Rodrigo Sobral Cunha, com prefácio de António Telmo, ilustrações de Carlos Aurélio e posfácio de Pedro Sinde.

O lançamento deste livro que envolve alguns nomes do círculo dos Cadernos de Filosofia Extravagante está previsto para o próximo Outono. Diz quem o leu que é uma obra notável e surpreendente.

***

“É certo que, para estas matérias, podemos detectar uma espécie de magos confabuladores, alcandorada nos anéis do tempo, que vai contando a história (como o tal árabe cristão a Galland, este aos outros e por aí fora), de preferência cada vez melhor: ponto acrescentando a ponto, espiralando a linha do tempo e assim melhorando o conto, mas sempre a partir de uma mesma essencial verdade que pulsa em segredo aqui e ali na história. Mas muitas outras vezes a história é cada vez pior contada, ponto a ponto se suprimindo o conto, desfazendo em recta a espiral do tempo, até o essencial sentido (aquele que faz a duração vital da narrativa) ficar escondido como uma lamparina na mais profunda das cavernas. Tais pactos de confabulação, como os de Galland e Hannâ Diyâb, reproduziriam assim à escala o processo milenar que fez andar As Mil e Uma Noites da Índia à Pérsia e ao Egipto, com os nomes de Salomão, Alexandre Magno, os Cruzados, ou Dhinazad e Xerazade (filha da noite, em arábico), nas caravanas que pernoitam à roda das fogueiras donde saem génios e criaturas dos outros mundos que há neste. Quanto àqueles cujas vozes e os gestos deram vida às Noites muito para além das vidas dos seus reais protagonistas, até nós, refere o barão de Hammer Purgstall esses confabulatores nocturni, narradores noctívagos que Alexandre ouviu e que Eduardo Lane (tradutor das Mil e Uma Noites) disse que eram uns cinquenta no Cairo de 1850, conforme recorda Borges; e isto sem subestimar os mercadores a quem se deve, na observação de Walter Benjamin, a afinação das astúcias com que o contador de histórias do ciclo das Mil e Uma Noites capta a atenção do seu auditório. Naturalmente, há evidências de ordem vária: ao gosto da arqueologia positiva e da filologia, por exemplo, encontrou o egiptólogo húngaro Ernõ Gaál um manancial considerável para a história de Ala Al-Din em papiros egípcios helenísticos e romanos (II-IV d.C.), situando-a depois da conquista árabe do Egipto pelo século VII e relacionando-a com a prática do roubo de túmulos no Egipto. Mas é dentro da própria história que a coisa que está fora dela se passa!” (A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, § 9)

***

“Que os extremos se tocam, vê-se particularmente bem no caso da tradução, com a traição e a tradição, como é sabido, pois o tradutor pode ser textualmente ou oralmente o traidor ou o servidor da tradição. Mas nem só. Pode acontecer-lhe estranhamente que, transmitindo, traia o tradutor a causa e outras vezes, ao contrário, traindo-a, transmita a causa. Tal é a sina do traditor. O que Galland diz, pois, sobre o assunto é que aquele que descobre Aladino era um mágico africano, que se aplicara ao seu mister – a magia – desde a juventude e que depois de aproximadamente quarenta anos de encantamentos, de operações de geomancia, de sufumigações e da leitura de livros de magia, chegara enfim a descobrir que havia no mundo uma lâmpada maravilhosa, cuja posse o tornaria mais poderoso que qualquer monarca do universo. Por uma operação de geomancia o mágico toma conhecimento do local do tesouro dos tesouros. A lâmpada encontra-se num lugar subterrâneo no meio da China, completamente inacessível, excepto para Aladino (que por isso passa a estar no mapa estratégico do geomante). Desloca-se então ao local, próximo do qual vive não por acaso Aladino. O mago, além de conhecedor das artes do fumo, é também fisionomista e lê no rosto do formoso Aladino “tudo o que era absolutamente necessário para a execução do que motivara a sua viagem”, segundo afiança o narrador gaulês.” (A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, § 12)

***

“Nem toda a riqueza do sultão, acrescida da do seu grão-vizir e demais homens ricos do reino, era suficiente para acabar uma só das janelas do palácio de Aladino, manifestamente uma das maravilhas do mundo. Como é evidente, o problema não era apenas de ordem técnica, pois nem mesmo os melhores ourives e joalheiros do reino (manifestamente decadente) conseguiam compreender a ordem de subtileza artística em jogo. (Não sabiam sequer distinguir jóia de joie, que é como quem diz o trigo do joio!). É que se aquele palácio podia fazer-se da noite para o dia e durar pelos séculos fora, podia igualmente desfazer-se do dia para a noite. O que explica que a janela imperfeita, não na arquitectura mas na ornamentação de diamantes, rubis e esmeraldas, fosse completada com um estalar de dedos de Aladino, com a lucerna ao alto. Xerazade escapa ao régio imposto diário sobre a beleza mantendo o rei (seu marido) acordado; pois onde uns cortam, põem outros e à história das decapitações contrapõe ela uma verdadeira narrativa: com pedraria da árvore da vida temperou Aladino a sua moradia. Sem a boa conselheira, portanto, o reino afundar-se-ia nas trevas (sem ouvidos para a múrmura fala de Xerazade, soam as decapitações na Europa). De variedade quase infinita, como é bom de ver, são os materiais para edificação e os melhores não estão propriamente à mão. “Os grandes feitos da arte, observou Ruskin, são tornados possíveis quando as almas dos homens se encontram como as jóias nas janelas do palácio de Aladino, puras por igual as pequenas gemas e as grandes, sem precisar de cimento, mas sim da harmonia das suas facetas.” (A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, § 47)

***

“Fora de portas da cidade, o mágico africano levara Aladino muito para lá dos amplos arredores com casas e palacetes de belos jardins, desaparecendo aos poucos qualquer sinal de presença humana e alargando-se o horizonte em plena extensão. Um lagarto contornou uma rocha procurando sombra. Aladino, que nunca andara tanto na vida, sentiu-se exausto de tão longa caminhada.

– “Tio!” – perguntou ao falso irmão de seu falecido pai o alfaiate Mustafá: “Aonde vamos? Só vejo descampados e montanhas e nem uma árvore já! Se continuarmos, não sei se terei forças para regressar à cidade!”

– “Coragem, sobrinho!”, respondeu-lhe o falso tio na persecução do seu estratagema; – “quero mostrar-te um jardim que excede de longe todos os que viste até hoje; está próximo, ainda que não te pareça, mas quando lá chegares hás-de me dizer o que seria não o teres visto depois de estares tão perto dele! Enche-te de coragem, Aladino, pois já és um homem! Levo-te a um sítio maravilhoso, perto do qual todas as riquezas dos reis deste mundo são coisa de crianças!”
Convencido, reergueu-se o ânimo a Aladino e dirigiu-lhe então o magrebino doces palavras, para lhe tornar mais leve o caminho e contou-lhe histórias de encantar, ora verdadeiras ora falsas, entretendo-o, rumo ao fim secreto que o trouxera da extremidade da África ao Oriente extremo. E para Aladino não perder o ritmo, o mago tirou de um saco hermeticamente fechado um fruto carregado de ritmo: uma laranja marroquina. Abriu-a ao meio, mostrando-lhe a geometria octangular daquele fruto e deu-lhe a provar o sabor da matemática convidando-o a transformar a geometria que ali via em energética aritmética, saboreando-a de modo a ficar a saber inteiramente ao que sabe a laranja (“toda a vez que não encontrares geometria na laranja, como a decagonal ou outra, é porque ela não presta”). E o africano, viajado como era, falou-lhe pausadamente de outras terras: primeiro, daquelas onde vivera – Índia, Pérsia, Arábia, Síria, Egipto – e depois, das que atravessara, por exemplo a maior floresta do mundo, a taiga da Sibéria, com seus silêncios e seus sons. Falou-lhe moroso dos costumes dos outros povos: por exemplo, como os aborígenes australianos cantavam os caminhos, como repetiam passo a passo desde o Tempo do Sonho os cantos primordiais da Criação, onde foi dado nome às coisas, e como cada homem fazia o seu caminho ritual de amplas extensões, lugares e viventes segundo uma música de versos sagrados que era também um mapa para encontrar os passos dos irmãos desde o Início. E disse-lhe mais verdades acerca do povo das andorinhas e do povo dos girassóis e ainda de certos povos do mar. Ensinou-lhe também um provérbio mourisco: “Aquele que não viaja desconhece o valor dos homens”.

E nisto chegaram ao pé de uma montanha, ao fundo de um vale deserto. Soprou uma brisa desconhecida no rosto de Aladino. O mago parou a estudar atentamente uma rosa-do-deserto.

– “É aqui!”, exclamou de olhos rebrilhantes como sóis negros. – “Repousa um instante e prepara-te, Aladino, pois estás à beira de ver coisas extraordinárias e desconhecidas dos mortais; e quando as vires, hás-de me agradecer teres testemunhado maravilhas tais que olhos humanos nunca viram!” (A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, § 51)

***

“Para entrar na gruta, isto é, para levantar a pedra que tapa a entrada, Aladino, diz-lhe o mágico, deve invocar o nome do seu pai e do seu avô, isto é, deve invocar os seus patriarcas. Nessa invocação, podemos ver o sinal da ligação à cadeia dos antepassados, que é condição necessária para que o neófito possa encontrar aquele “poder” primordial, simbolizado pela lâmpada. A esta cadeia de ouro se chama em língua árabe, no sufismo, silsila. Podemos aqui lembrar, agora, que Cristo desce ao limbo dos patriarcas ou dos pais (limbus patrum) para os resgatar, mas esse acto de resgatar contém em si necessariamente um outro: o de reatar a cadeia dos profetas, seus patriarcas ou ancestrais, até à origem adâmica, em que o último se liga ao primeiro ou o mais baixo ao mais alto ou o de baixo ao de cima. Trata-se, de algum modo, de estabelecer a relação com a sua silsila: de resto, não deve ser por acaso que S. Mateus se dá ao trabalho de referir, logo no início do seu evangelho, a ascendência de Cristo. Os sufis fazem o mesmo para comprovar a validade da sua iniciação, pois todas as silsilas válidas vão dar ao profeta Maomé, daí recuando, profeta a profeta, até Adão. […] Ainda em relação aos patriarcas de Aladino, convém ter presentes estas duas etimologias: o nome do seu pai, Mustafá, significa “o eleito” e Aladino significa “a glória da religião”. Ora, o filho do “eleito” é, portanto, a “glória da religião”. Não nos é dito o nome do seu avô, talvez porque simbolize aqui a origem da sua origem.”

Pedro Sinde (Posfácio)

***

“Aladino permaneceu na caverna durante três dias (sexta-feira, sábado e domingo) que – coisa ainda não inteiramente notada – são os dias santos das três religiões abraâmicas, aquelas que, segundo Álvaro Ribeiro confluem na formação do pensamento português. Se a interpretação iniciática que Pedro Sinde fez do Aladino estiver correcta, a passagem de Ruskin pode bem ilustrar a unidade interna, e transcendente, com que a gnose da tradição lusíada, pelo prisma da imaginação criadora, cingiu os três monoteísmos.”

Pedro Martins

***

“O mágico negro foi lá [China] que adivinhou Aladino e a sua lâmpada e veio de extremo a extremo da terra até ao Império do Meio, para, uma vez de posse da lâmpada, poder dominar o mundo, fazer dele o seu globo, uma farsa macaqueada do Quinto Império. No momento exacto em que estava prestes a consegui-lo, uma criança negou-lhe esse poder. Aladino não lhe entregou a lâmpada. Pouco foi preciso depois para que nesse mesmo mundo, que é o nosso, reinasse a Bondade e a Beleza.

E também a Verdade, porque tudo será um Milagre da Luz.”

António Telmo (Prefácio)

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

OS POETAS LUSÍADAS, 26


[da série Nocturnos]

UMA NOITE

Que fria mão me vem fechar a porta
De sobre o lábio da primeira estrela?
Que morto florilégio me flagela?
A que prisão a noite me transporta?

Oh! que de semelhanças de ave morta
No descerrar dos gonzos da janela!
Lisas paredes, como branca tela,
Não sei que sombras o luar recorta …

Ai, como um túmulo, ao que vem de fora,
Oh! minha pobre casa, onde não entro
Hoje, que é noite, e apenas me demora,

Na embalagem que é só pagar o porte,
Que fria mão a há-de fechar por dentro?...
Mas não: Não desças mais, frio de morte.

Afonso Duarte

sábado, 1 de agosto de 2009

FANTASIAS GRÁTIS E IMAGINAÇÃO À VENDA, 5*

Carlos Aurélio


(conclusão)
Coca-Cola sempre houve desde que há mundo publicitário e desde que trocaram o Menino Jesus pelo Pai Natal, esse velho negociante enchumaçado a branco e vermelho, capaz de vender refrigerantes de Verão no auge do Inverno. Foi todavia na década de 80 e após guerra fratricida com a Pepsi que a marca ganharia domínio global. Culminou na queda do Muro em Berlim o qual, diga-se, levou para leste o devaneio capitalista e trouxe, em troca, o marxismo ideológico para as elites dominantes a ocidente. Quando um muro cai tudo se aplaina em ambos os lados. Nestes anos 80 dominava um “espírito” Coca-Cola na atmosfera do mundo, a fantasia global coincidia com as imagens publicitárias de jovens a saltarem e a correrem no areal ardente das praias, engalfinhados atrás de risinhos supostamente felizes e sensuais. Uma geração rica, rasca e optimista, desinibida, muito fresca, “muito Coca-Cola”! O sonho imaginário do planeta cabia inteiro num cartaz saído de um frigorífico, gotinhas refrescantes agarradas à pele dos corpos e dos copos, as latinhas e as garrafas a dessedentarem a humanidade sedenta de consumo. Abriam-se as portas do paraíso, automáticas e livres à entrada de cada hipermercado, tudo saboreado a crédito e a dinheiro de plástico; ao mesmo tempo era o surf e a ginástica aeróbica, tudo à superfície e à tona da vida; eram os yuppies fanatizados em dinheiro e Bolsas, os desportos radicais para quem já não sabe que as raízes precisam de substrato vital; depois foi a sida, aterradora e terrível, a lembrar que há sempre a escuridão de um túnel no fim da estrada sensitiva e sombria em que transformámos a vida. «Ceci tuera cela» ─ sic transit gloria mundi.
Quando o ocidente americanizado entrou na década de 90, já estava quarentão sem ter amadurecido, grisalho sem perceber as coisas simples, desperdiçado, mimado, sem a descoberta genuína de uma nova puerícia capaz de rejuvenescer. Bastaria ter sentido o poder magnífico de uma brisa no rosto, a candura do sol, a fraternidade a sério.

Mas não foi assim. Veio o estilo de vida Benetton nos anos ’90, pleno no seu falso furor das cores lindas e outonais apropriadas a cinquentões nostálgicos, uns porque viveram o Maio de 68, outros porque adorariam ter isso no curriculum. Fomos invadidos pelo “politicamente correcto”, sentimental e voluntarista, utópico e estúpido na medida em que as utopias desviam da verdade existencial susceptível de evolução. Bem diz o aforismo que o óptimo é inimigo do bom. A estética Benetton montou-se à garupa das imagens do cordeiro inocente a dar marradinhas fraternais no lobo negro, outrora carnívoro, nos cartazes do padre, a preto, a beijar a freira de branco, nos três corações de músculo e sangue em três cores que anulam raças, nos beijos gays e no ruído da música techno, tudo em exibições de rua como se fossem feras dentro de jaulas em passeio contraditório no meio da selva mental. Tudo muito estridente no conteúdo, muito melífluo na forma, tudo Benetton, naquelas imagens da farda militar ensanguentada em realismo trazido da Bósnia, no homem, qual “Cristo”, agonizante entre lágrimas genuínas da sua família, num calvário que afinal serve para vender roupas com as cores da sida e da morte. A multidão aí vai como rebanho à tosquia, conduzida por “bons” sentimentos sociais, enfim… estamos no mundo das united colors of money!

A estética Benetton é a ditadura lamecha e sentimental do mundo exibicionista que proíbe a intimidade e impede, portanto, o verdadeiro amor, que é sempre subtil e íntimo para ser alto e fundo. Trata-se de uma vulgar estesia para sexo em massa, voyeurismo em que uma pocilga humana na TV pode descer a palco de Big Brother, em que esgares faciais fingem harmonia musical pelo Karaoke, em que o strip tease no masculino estupidifica o que resta de feminino, uma estética que anuncia e promove a era sem os dois géneros, donde, o fim da faísca criadora da arte entre os sexos, incluindo a progenitura. O estilo Benetton marca o fim dos últimos mitos humanos: o do amor, o da família, o do espírito. A estupidez geral gosta de traduzir os Mitos primordiais por mentiras para fazer passar essa abjecção de tornar o mundo como mera consequência social, fazer dele um espectáculo da multidão onde reine a clonagem sentimental, de almas parecidas e iguais, que é a malvadez suprema da fantasmagoria sensitiva no ataque à imaginação animada. Até aqui, os Mistérios e Mitos primordiais do mundo ainda se projectavam em Ritos religiosos capazes da mediação entre visível e invisível, e os Ritos em imagens de alma sublimavam a imaginação criadora ao alcance dos homens.

A Coca-Cola fez tudo “jovem”, para depois a Benetton moldar essa juventude de tipo “novo” na uniformidade em absoluto, tudo sem fronteiras de categorias de pensamento, sem distinção de conceitos. Ficámos no limiar da estupidez generalizada do relativismo, num mundo sem cores distintas de pensamento, tudo muito Benetton neste daltonismo que igualiza o substancialmente diferente.

Por fim, o ano do milénio trouxe a estética CSI, sim, essa dos filmes servidos em cores fluorescentes a néon, em luz fria de contra-picado que exala das autópsias e da exactidão científica, como se a vida fosse ela própria passível de ser fixada numa Crime Scene Investigation. Tudo agora é artifício puro, imagem virtual, seres abjectos em silicone sofisticado e vestidos a negro, cravejados a poros e a pêlos em alta definição de TV digital, tudo na ressaca estética do hiper-realismo americano, como se o mundo fosse um museu de cera gigantesco a derreter sob os holofotes do satanismo. Agora sim, triunfa a new age e a espiritualidade mórbida vendida pela internet em CD’s, estamos já no lado de lá desse “sobrenatural” que tanto odeia e vampiriza a natureza, nas tatuagens e nos piercings que fazem falar os corpos porque as almas já estão mudas, ou tão só, narcotizadas pelo odor subterrâneo. Chegámos ao grau zero da humanização, a um passo da evolução invertida que, pelo darwinismo, nos fará símios através do mimetismo generalizado das imagens planetárias.

Como nos afastámos de Victor Hugo e do seu romance, a Nossa Senhora de Paris! A bossa da corcunda de Quasímodo foi-se-nos passando das costas para o peito e por aí nos puxaram a alma. Sem espírito capaz de liberdade nada somos, sem palavras seremos pedras, mas pedras inertes e mudas como não são as da catedral gótica que se levanta em Paris. Ou então, pior ainda, abriremos a boca para nos saírem apenas sons metálicos, repetidos e clonados, enquanto gesticulamos fingindo que somos gente. «Ceci a tué cela» ─ isto matou aquilo, as imagens virtuais silenciaram as verdadeiras palavras humanas e agora, talvez estejamos a um passo de nos tornarmos tão só desenhos animados.

E no entanto, ao lado e na penumbra de tudo isto, o espírito vivo do amor que verdadeiramente tudo move assiste-nos e penetra-nos. Só ele é, desde as raízes das ervinhas, desde o alto das estrelas. E só ele será.

Maio de 2009

____________
* artigo originalmente publicado na edição de 1 de Julho de 2009 do Diário do Minho.