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segunda-feira, 21 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 8

Dois cantos de O Crocodilo, de Saint-Martin


Inácio Balesteros (tradução e nota introdutória)


Nota introdutória

«O Mal existe e é imoral negá-lo» - disse Leonardo Coimbra num dos seus livros; mas o Mal não é em si mesmo um princípio; o Mal não é imutável.

A obra O Crocodilo, de que vos apresentamos dois capítulos, trata precisamente da guerra do Bem e do Mal, passada em Paris, durante a Revolução Francesa; os dois capítulos que ides ler, tratam precisamente do Bem; do Bem que nas coisas anda, nas coisas e nos seres; Bem supra-natural, que constantemente nos acompanha.
Madame JOF é anagrama de FOI ou FÉ, na nossa bela língua. Ela e a “Sociedade dos Independentes” combatem por Paris, para que o “Génio do Mal”, o “Crocodilo” não vença; e é o que acontece, por isso mesmo, porque o Mal não é imutável.
Contamos apresentar dentro em breve a tradução completa desta obra; até lá deixamos-vos com a leitura destes dois capítulos.

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O CROCODILO

Canto 14


História de Madame JOF
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Com as últimas palavras, esta mulher, que dizia chamar-se Madame JOF, dissipou-se no ar como vapor; desaparecendo desta forma súbita e extraordinária, deixou o voluntário Ourdeck tomado de um espanto que o leitor compreenderá facilmente. Mas como ele não tinha a mínima ideia de quem era esta Madame JOF, é necessário dar-lhe a conhecer o que uma tradição de muito poucos conhecida conservou.
Esta mulher nasceu no ano de 1743, na força do Inverno, na capital da Noruega, a sessenta graus de latitude. Foi o fruto de uma gravidez extremamente dolorosa, e o seu nascimento foi assinalado por acontecimentos extraordinários: durante oito dias, a contar daquele em que veio ao mundo, o Sol ficou tanto tempo sobre o horizonte como durante o solstício de Verão; todas as neves se fundiram; as águas dos rios correram; os prados cobriram-se de verdura, os jardins de flores, as árvores de frutos. Mas o mais extraordinário foi que os cardos e as plantas venenosas ou malsãs não nasceram.
Diz-se mesmo que o famoso abismo do Malstrom se cerrou e que os barcos puderam navegar em segurança; acrescentam que os mágicos negros, de que o norte é um formigueiro, foram de tal forma perturbados nas suas operações que tiveram de as abandonar; que mesmo os pequenos malfeitores foram de tal forma atormentados na sua consciência que, vinte léguas em redor, não se ouvir falar de nenhum crime.
Um historiador sábio, membro da academia de S. Petersburgo, amigo do pai da criança, de visita no momento destes acontecimentos, foi subitamente tomado por um espírito profético. Aproximou-se do berço da menina e depois de a olhar com atenção, anunciou que seria grande em conhecimentos e virtudes, mas que o mundo não a conheceria; seria no entanto a cabeça de uma Sociedade que se estenderia a todas as partes da Terra; que esta Sociedade se chamaria dos Independentes, e que não seria semelhante a nenhuma outra conhecida do mundo.
Observou de novo a menina e, carinhosamente, fez uma segunda profecia que não foi conhecida nesse tempo, e que, mesmo nos nossos dias, só um pequeno número a conhecerá: que ela ensinaria os homens a viver até aos 1473 anos. Pouco depois, deixou os seus amigos e voltou para a sua pátria, onde, com grande espanto dos seus concidadãos, contou a história de que acabava de ser testemunha.
A jovem norueguesa manifestou, desde a mais tenra idade, o destino singular que lhe fora predito. Começou a andar muito tempo antes do que sucede com as crianças vulgares; viam-na afastar-se do convívio humano, como se a frivolidade do mundo pesasse sobre ela. Desde que as primeiras luzes da razão se manifestaram no seu pensamento, dizia coisas tão acima da sua idade que todos os que a ouviam ficavam surpreendidos.
Se, na sua presença, pessoas instruídas tratassem questões relativas às ciências, ou aos mais profundos conhecimentos, mostrava, não só compreender tudo o que diziam, mas que, se quisessem, ela podia ir mais além e mais alto. «Porque, dizia-lhes ela algumas vezes, é no mundo da ciência que deve aparecer o poder da reminiscência; que se pudessem interrogar-se e conhecer-se a si próprios, veriam que luz maravilhosa poderiam comunicar aos que os ouviam. Poderia um músico encantar nossos ouvidos, com o som do seu instrumento, se não tivesse antes e sem cessar, o cuidado de aspirar o ar?»
Chegada a idade de sete anos, desapareceu da casa dos pais; queria encontrar o momento e o lugar onde o sol se levanta; desde então, nunca mais se soube, nem os caminhos por onde andou, nem os lugares que habitou; soube-se somente, por tradição, que usou vários nomes e tomou diferentes qualidades; que tinha a faculdade extraordinária de se fazer conhecer ao mesmo tempo em diferentes países, e a pessoas vivendo em lugares distantes uns dos outros, que não tinham entre si qualquer relação; enfim, que era devida a esta faculdade de estar ao mesmo tempo em lugares diferentes a impossibilidade de se saber onde morava; que era olhada como uma verdadeira cosmopolita, no sentido rigoroso do termo, que não foi bem compreendido, quando a apresentaram como se de um ser errante se tratasse.
Como habitava em qualquer lugar do mundo, em cada um tinha a sua Sociedade dos Independentes, a qual, na verdade, se devia chamar Sociedade dos Solitários, já que cada homem tem em si mesmo essa sociedade.
Madame JOF, dadas as circunstâncias infelizes que ameaçavam Paris, reunia frequentemente nesta Capital a sua Sociedade, para a informar das verdadeiras causas dos acontecimentos que se preparavam, e para os incitar a que, com os poderosos meios que possuíam, ajudassem a Capital na resistência ao inimigo mortal.
Como esta Sociedade se distinguia inteiramente de todas as sociedades conhecidas, não se podendo dizer que era uma sociedade, não se pode entender a palavra reunir com o significado que vulgarmente se lhe atribui. Assim, ainda que apresente aqui Madame JOF como reunindo os diferentes membros da Sociedade dos Independentes, a verdade é que não se juntavam; que esta assembleia se realizava estando cada um dos membros isolado do outro, estivesse onde estivesse, sem estar sujeito a um local, a nenhuma cerimónia, ou limitado por casa fechada; que cada um dos membros tinha o privilégio de ver ao mesmo tempo todos os outros, e de por eles ser visto; que enfim, tinham o privilégio de estar todos em presença de Madame JOF, como Madame JOF tinha o privilégio de estar presente a todos ao mesmo tempo, quando quisesse, qualquer que fosse a distância ou o lugar que habitassem.
Foi devido a este privilégio que os diferentes membros da Sociedade dos Independentes, comunicaram uns aos outros o estado de perturbação em que a Capital estava mergulhada, e se encontraram com Madame JOF. A seguir damos-lhe um resumo do que ela lhes disse nas diversas assembleias que, como já dissemos, não são como as assembleias vulgares.
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