Cristianismo debaixo de terra
Por Alexandra Pinto Rebelo
Os quatro evangelhos canónicos não são férteis no que diz respeito a referências ao mundo ctónico. Parece que este nível, tão actualizado no paganismo, é propositadamente silenciado. O interesse principal é o ir anotando feitos de Cristo, mostrando-o como o grande propósito. O que estes homens parecem dizer é que estão a assistir a uma (nova?) cosmogonia e a toda a mitologia que daí advém. É uma mitologia não escutada, ao contrário do habitual, mas exibida à sua frente. Estão a assistir a gestos primordiais, tendo isso mais importância do que tudo o resto.
Aqui chegados, é impossível não fazer analogias com todo o simbolismo surgido com o aparecimento das sociedades agrícolas. Também as sementes, exemplos maiores de vida suspensa, são lançadas à terra, aí permanecendo até ao seu renascimento. Tal como a Lua, (desaparecida durante três dias antes de ressurgida – “A Lua é o primeiro morto”, segundo E. Seler) as sementes, durante todo o seu processo de oclusão debaixo de terra em morte aparente, reaparecerem devidamente transmutadas. Estes processos, observados e apreendidos, encaminham o ser humano para a evidência de que não existe morte. Torna-se mais legíveis, então, o vasto número de parábolas cristãs relacionadas com o mundo vegetal, pontes indicadoras da possibilidade efectiva de Ressurreição.
O gosto do cristianismo dos primeiros séculos por espaços debaixo do chão, será um encenar cíclico desta suspensão da vida. São construídas câmaras, mais ou menos extensas, sacralizadas sobretudo pelo deslumbramento, e mistério, do próprio processo. Aí, não só os “aparentemente mortos” são depositados, como têm lugar as refeições rituais dos vivos. Refeições festejando, ou solicitando a abundância, dependentes do próprio sucesso das fases agrícolas. Dependentes, pois, da esperança na sucessiva ressurreição das sementes.
Por esta altura, já o cristianismo deixara transbordar a sua latente vocação ctónica. A criação destes espaços reais, subterrâneos, possibilitava a cumplicidade simbólica dos vivos, no germinar das sementes, por proximidade. Em câmaras que, tal como os neófitos (pelo menos os Pessoanos), sabiam que não existia morte. Nem a da alma, nem a do corpo.