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quarta-feira, 15 de julho de 2009

NOS 70 ANOS DE PINHARANDA GOMES, 3

“As Crianças ao Deus dará [1]

Em cada Outubro, milhares de crianças e de jovens são lançados nas escolas, como lenha a forno. O fenómeno é mais do que o efeito de um propósito de os pais de fazerem, de seus filhos, uns homens. O fenómeno resume-se, no acidental, tornado essencial, na preparação para o emprego – no começo da luta pela vida.
São milhares de crianças, efectivamente iguais na juventude e nas necessidades, mas terrivelmente diferentes em tudo o mais. (…)
Todas essas crianças necessitariam, na melhor das vidas, um mestre por cada uma, um pai por cada uma, um educador à medida de cada uma. Esse mestre, esse educador, é o pai, é a mãe, ou deveriam sê-lo; mas o sistema não o permite. (…)
Assim, todas essas crianças, medidas pelo único metro da moderna pedagogia, são lançadas nas escolas como objectos aprendizes. Perdem o nome, passam a ter um número; a família perde peso na sua emotividade, e o contrabalanço é feito por novas amizades, e outros interesses. E o que recebem não é um fluido que lhes encha a alma; é a obrigação de se prepararem para saber fazer. A condição operária antes da condição humana. Salvo o tempo lectivo (…) todo o resto do tempo ficam entregues a si mesmas. (…) E, paradoxalmente, na era das ciências pedagógicas, as crianças não encontram, nas escolas, os necessários pedagogos.
Aliás, reina por aí uma notável confusão (…), já se comete o erro de confundir pedagogia e didáctica e, por consequência, de tudo referir à pedagogia, pondo a didáctica de fora. É preciso rever os conteúdos das palavras.
Na antiga cidade de Atenas, as famílias livres mandavam os seus filhos ao liceu, isto é, à escola, que, em geral, ficava afastada do lar familiar. O liceu tinha um professor, o didacta, ou seja, o que ensinava esta, aquela, ou todas as disciplinas.
As ruas de Atenas não eram, naquele tempo, sossegadas, e as crianças que iam sozinhas de casa para a escola corriam certos perigos, como o de serem atacadas, raptadas, ou induzidas a maus costumes. Para evitar tais causas e os óbvios efeitos, as famílias contratavam os serviços de um escravo de confiança (…) que tomava a seu cargo levar a criança à escola e, depois, de ir buscá-la (…) o pedagogo (…).

Ora, hoje, ouvimos falar em pedagogia a propósito de tudo, e até em pedagogia das ciências, como se as ciências necessitassem de pedagogia.
Do que as crianças necessitam é de didáctica, isto é, de quem as ensine, e não de quem as leve à escola. Mais, a pedagogia e a didáctica não se aplicam às ciências, mas às pessoas, ou seja, pedagogia para as crianças das escolas, ou dos liceus, de, didáctica, para os alunos das escolas, liceus, oficinas e universidades.
Todos os anos, ao mesmo tempo, as autoridades lançam nas escolas centenas de professores. (…) Às escolas chegam os professores humanistas, os que visam fazer de cada criança um funcionário e, alguns, poucos, que olham para dentro das crianças, e nelas projectam a vontade de criar um homem em cada uma (…), e a todos as crianças têm de ouvir e atender (…) [dando] a tolerância, a humildade, a submissão a um corpo de didactas não raro incoerente e contraditório. (…)
Quando as ciências pedagógicas não eram ciências, as funções dos pedagogos eram preenchidas (…) pelos Preceptores e Prefeitos [alguns dos quais confundiram] prefeitura com policiamento. Ora, o Prefeito é um Puericultor, alguém que não deixa as crianças ao «deus-dará», mas as orienta, as assiste, as ensina, as ocupa eficazmente nos tempos livres, e cria grupos de interesses objectivos, e estabelece harmonia e amizade, onde seriam de esperar a desarmonia e inimizade.
Ora, as escolas actuais puseram de parte a função prefeitural [substituída] pelos Contínuos, cuja missão é mais a de defender a escola contra os abusos das crianças, do que de defender as crianças contra os abusos das escolas. (…)
Pretende-se que as crianças cresçam desinibidas, e sem complexos. (…), mas outros complexos e frustrações as intimidam e que decorrem do facto de um crescimento sem apoio, de um amadurecimento sem amor, de uma puberdade sem assistência, de uma iniciação ritual extemporânea, de uma vivência sem Modelo e sem exemplo, logo destinadas a operários ou a técnicos, sem que ninguém se preocupe com os seus seres de homens e de mulheres. (…)”
Pinharanda Gomes

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[1] «Interpelação e Consolação do Triste Reyno da Luzitaina», in Meditações Lusíadas, Lisboa, Fundação Lusíada, 2001, pp. 181-182;

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