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segunda-feira, 31 de maio de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 60


Via Sincera
Rodrigo Sobral Cunha

Para o Renato Epifânio

Que me seja permitido nesta ocasião*, junto destes amantes do saber em língua portuguesa – e homenageando um deles –, começar por chamar para o nosso convívio alguém que, na realidade, há muito faz parte dele, Thomas Carlyle, que dizia o seguinte bem a propósito:
“Afirmo que a sinceridade, a profunda, a grande, a genuína sinceridade, é a primeira característica de todos os homens que de algum modo são heróis. Não a sinceridade que a si própria se chama sincera; ah, não, porque esta de pouco vale, na verdade; – não a sinceridade superficial, jactanciosa, consciente, porque esta muitas vezes não passa de pretensão. A sinceridade dos homens superiores é de tal espécie que ele nem sequer dela fala, porque dela não está consciente; não quero com isto dizer que esteja consciente de insinceridade; porque, qual será o homem que possa progredir desviando-se da lei da verdade, por um só dia que seja? Não; o homem superior nem se jacta de ser sincero, longe disso; é que ele não pode deixar de ser sincero! A grande realidade da existência é grande para ele. Por mais que se eleve, não pode afastar-se da terrível presença da realidade. O seu espírito é assim feito de verdade; é grande por isso, antes de tudo o mais. Terrível e maravilhoso, tão real como a vida, tão real como a morte, é este universo para ele. Ainda que todos os homens esquecessem a sua verdade e caminhassem por entre sombras vãs, ele não poderia fazer o mesmo. A todos os momentos o reflexo da chama brilha acima da sua cabeça, inegavelmente, sempre, sempre! Desejaria eu que aceitásseis esta como a minha primeira definição do homem superior. O homem vulgar pode ter essa qualidade, porque ela compete a todos os homens criados por Deus; não pode, porém, haver homem superior que não a possua.”[1]
Meio século antes do pensamento do filósofo escocês que acabais de escutar na tradução de Álvaro Ribeiro, traduzia Sampaio Bruno livremente a continuação desta mesma passagem daquele que designava “o poderoso livro de Carlyle acerca dos heróis e do heroísmo”; considerando então o herói
“um mensageiro enviado do fundo do misterioso Infinito com novas para nós... Ele vem da substância interior das coisas. Aí vive e aí deve viver em comunhão quotidiana... Ele vem do coração do mundo, da realidade primordial das coisas; a inspiração do Todo-Poderoso dá-lhe a inteligência, e verdadeiramente o que ele pronuncia é uma espécie de revelação.”[2]
Mais dizia Sampaio Bruno:
“E a vida, heróica ou pura, santa ou genial, do grande homem convém que se exiba, na sua rutilância, quando tão fumosas se condensam as desmoralizantes sombras das malfeitorias que vinham e vêm sendo o amargo pão-nosso de cada dia.”[3]
E indicava:
“Assim, o culto dos heróis não se degrada em idolatria, e a humanidade, reverenciando o heróico na história, nos seus representantes se contempla, reconhecendo-se e incessantemente aperfeiçoando-se.”[4]
Tal era o que Álvaro Ribeiro igualmente defenderia:
“Em todas as sociedades civilizadas existe este processo de cultura que se chama culto dos homens superiores. Cada povo elege as personalidades históricas e as personagens lendárias que celebra na representação social do seu destino e da sua liberdade.”[5]

Agora, se principiámos por aqui as palavras que correspondem ao convite que nos foi endereçado pelo autor do livro A Via Lusófona, foi porque, logo na abertura deste, Renato Epifânio faz suportar a noção de Pátria no conceito de cultura; e se este ligado está a culto e aquela a patres (decerto os pais heróicos), assim é que do cultivo dos heróis (que dão forma à pátria, ou se preferirdes, verdadeiramente a informam), tal como do culto destes – decorre aquela cultura que dá de beber às nações, tal como penetra nos campos a água dos rios depois de ser onda do mar e nuvem celeste.
É desta cultura, que espiritualiza as nações, que vemos surgir, à cabeça d’A Via Lusófona, a efígie de Agostinho da Silva como aquele em quem convergem o pensamento e a acção no culto sublime do Espírito Santo. Do mesmo passo que tem o poder de suplantar a “época da cisão extrema” (assim chamou José Marinho a este tempo, conforme recorda Renato Epifânio), convida já o culto do Espírito Santo à extremosa Acção. Obra daquela cultura que vivifica as nações, na de Agostinho da Silva se elege como herói o Povo Português, nascedoiro de nações que conversam acerca do universo em português. Ora, desta conversa é feita a via lusófona.
Ao contrário do que julgam aqueles que se encontram submersos na barbárie solipsista ou na barbárie do colectivismo uniforme, este livro de Renato Epifânio não é o diário de bordo de um navegador solitário: antes nele se encontram, como o vaivém das ondas, as notas de quem voga sobre esse murmúrio luso das águas que une quanto no tempo e no espaço parece separado.
Pela missão que recaiu sobre os ombros de Renato Epifânio, diremos assim dele que, inclusivamente pelo nome, se liga tanto à Renascença Portuguesa como ao que com ela, de diáfano, advém (para quem possa ver).
Mas se alta é a causa, baixos são ainda os homens. Mal ressoa ao duro humano ouvido o combate que se dá entre o Visível e o Invisível.
Mas o que combate, cordato e pacífico, Renato Epifânio – que de si mesmo diz que olha todas as pessoas de frente? Deixe-me responder de dois modos: combate o patricídio perpetrado por aqueles que dilaceram o corpo e a alma da nação portuguesa e todos os veios que a ligam ao mundo. Enquanto sopra a nortada, debaixo dos círculos dos abutres entrega-se a avidez dos chacais à voragem da hora sob o tempo insepulto. De 1755 aqui são dez gerações, de mal a pior, sob o governo burgesso (de burguês) dos publicanos (os cobradores de impostos) sem alma.
Mas regressemos ao início desta ocasião, já que Renato Epifânio é um dos poucos homens sinceros que conhecemos e chamou Carlyle à sinceridade “o mérito salvador, agora como sempre” – precisamente contra as épocas doentes de cepticismo e insinceridade (“Mundo insincero; ateísta, não verdadeiro mundo!”, no qual “Saem os heróis, entram os charlatães”, onde nem sequer há a esperar “nenhuma alba neste crepúsculo do mundo”). Recorda, todavia, o nosso conviva escocês:
“Somente num mundo de homens sinceros a unidade é possível; só entre eles, e ao fim de muito tempo, a unidade pode ser tida por boa e certa.”
E:
“O mérito da originalidade não está na novidade; está na sinceridade.”[6]
Concluindo:
“Profetizo que o mundo vai tornar-se mais uma vez sincero, crente, acolhedor de muitos heróis, mundo heróico, enfim. Será então um mundo vitorioso; não o será até então.”[7]
Concluamos também nós, meu caro Renato e amigos nossos:
Os antigos romanos diziam: Decorum est pro patria mori (decoroso é morrer pela pátria); porém, nós diremos aqui: Decorum est pro patria vivere.
É que há um segredo.
____________
* Este texto foi lido pelo autor na sessão de lançamento de A Via Lusófona, de Renato Epifânio, que teve lugar na Biblioteca Municipal de Sesimbra, no dia 29 de maio de 2010.
[1] T. Carlyle, Os Heróis (Tradução portuguesa e Apresentação de Álvaro Ribeiro, 1956), Lisboa, Guimarães Editores, 2002, pp. 51-52.
[2] Bruno, A Questão Religiosa, Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão, editores, 1907, pp. 152, 373.
[3] Ibid., p. 372.
[4] Ibid., p. 385.
[5] Na Apresentação de Os Heróis, ob. cit., p. 13.
[6] Os Heróis, p. 120. Aí pode ler-se: “Todas as épocas, a que chamamos épocas de fé, são originais; todos os homens, ou quase todos os homens, são nessas épocas sinceros. [...] Eis a verdadeira união, a verdadeira regência, a lealdade, todas as coisas verdadeiras e benditas na medida em que a pobre Terra pode produzir bênçãos para os homens.”
[7] Ibid., p. 164.

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