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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

PESSOA E OS OUTROS




A vida nacional portuguesa sofre hoje os resultados de uma tripla ruptura de equilíbrio. A primeira ruptura deu-se com a entrada da decadência - onde quer que ela se queira colocar, antes, por, ou depois de Alcácer-Quibir. A segunda ruptura de equilíbrio deu-se com a implantação do constitucionalismo, que quebrou a tradição política nacional, sem construir nada de nacional que substituísse o regime nacional deposto.
A primeira ruptura de equilíbrio é a que se dá em todas as decadências - a ruptura da relação hígida entre governantes e governados, estado social em que os governantes, embora por acaso possam governar bem, governam, em todo o caso, sempre fora da relação com o geral do povo que governam. Essa ausência de interpretatividade da parte dos governantes explica-se com facilidade. O primeiro fenómeno das decadências é a perda de coesão social; e o resultado primário da perda de coesão social é a degenerescência do patriotismo. Não que o patriotismo desapareça, mas passa do estado dinâmico constante para o estático. Só uma forte convulsão de origem externa o desperta; sem isso, o geral do povo desinteressa-se da Pátria, desinteressa-se dos governantes, e acabam as classes por se desinteressarem, tanto quanto é economicamente possível, umas das outras. (…)
Quebrada a relação entre governantes e governados, o que se seguiu é inteiramente deduzível desse simples facto. Os governantes, perdido o contacto com a tradição nacional, sem apoio de realidades psíquicas que são o fundamento da vida da nação, passaram a viver mentalmente no estrangeiro, mas, como a quebra de contacto com as realidades nacionais envolve uma quebra de contacto com a única fonte de inspiração original, passaram a viver bastardamente e artificialmente do estrangeiro, impotentes para criar novas ideias, servos submissos da primeira mesquinharia francesa, súbditos reles da hipnose do de-lá-fora.
O povo, a massa governada da nação, quebrado o seu contacto com aqueles cuja função é estabelecer o progresso e estimular o esforço, caíram no baixo tradicionalismo - no tradicionalismo que não é um apego às grandezas passadas, porque as grandezas passadas nenhum povo por educar as pode ter presentes senão por lhas lembrarem os seus governantes; mas no tradicionalismo de gleba e tarro, o apego animal à canga usada, o afinco de vegetal à terra a quem nasceu pegado. Desnacionalização (baixa) nos governantes; supertradicionalização no governados; tal o estado em que nos encontrávamos, e em que nos encontramos.

Fernando Pessoa

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