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terça-feira, 11 de maio de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 39

António Carlos Carvalho

Nestes dias de festejos, bandeirinhas e outros espectáculos lamentáveis, fujo em imaginação para bem longe e só me lembro de um certo homem caminhando pelo deserto, antes que no horizonte apareçam os primeiros raios do sol nascente.
Faz isso todos os dias, como um ritual só dele. É a sua maneira de escutar a voz interior, mas também o silêncio (outro tipo de voz) do deserto, que aliás começa ao fundo da sua rua, e Arad, Israel. E esse homem, que tem nome de profeta, Amos, talvez inconscientemente, (ou não) está a repetir o gesto dos profetas do seu povo que sempre buscaram no deserto a presença da voz, da palavra, do espírito.
Não nas cidades, não nas multidões, mas no deserto, na solidão, no silêncio.
Reencontrei Amos Oz há dias, num documentário sobre ele feito pela televisão grega.
Digo «reencontrei» porque na verdade tive o prazer e o privilégio de falar com ele por duas vezes em Lisboa, quando aqui veio para o lançamento das edições portuguesas (Asa) dos seus romances «A Caixa Negra» e «Conhecer uma Mulher».
E agora ali estava ele outra vez, mas no pequeno ecrã do meu televisor, filmado a caminhar pelo deserto, na casa de Arad, na casa de Jerusalém onde nasceu em 1939, no kibbutz Houlda onde viveu 32 anos, mas também em Salónica -- onde viveram tantos judeus portugueses, cujos descendentes foram levados para morrer nos campos de extermínio (uma história triste que nós, portugueses, olímpicamente ignoramos…)

Amos Oz

Os familiares de Amos Oz (Klausner) não vieram de Salónica mas sim da Lituânia, de um desses outros lugares onde também a «solução final» funcionou para a maioria. E acabaram por se instalar em Israel, forçados pelas circunstâncias. Oz conta a história deles e a sua, e a de Israel -- num livro de memórias absolutamente espantoso, «Uma História de Amor e de Trevas», igualmente publicado pela Asa.
Releio-o mais uma vez e encontro estas passagens, que me parecem o contraponto perfeito para a actual crise europeia:
«Somente o meu pai e os pais dele acabaram por se instalar em Jerusalém: o irmão do meu pai, o tio David, a sua mulher, Malka, e o filho pequeno deles, Daniel, nascido um ano e meio antes, tinham ficado em Vilna: ainda que judeu e apesar da sua juventude, o meu tio David tinha sido nomeado professor assistente de literatura na Universidade de Vilna. Era um europeu convicto numa época em que ninguém o era na Europa, tirando os membros da minha família e os seus semelhantes. Os outros eram pan-eslavistas, pan-germanistas ou simples patriotas lituanos, búlgaros, irlandeses, eslovacos. Nos anos vinte e trinta, os únicos europeus eram os judeus».
A pátria espiritual do tio de Amoz Oz eram as literaturas europeias. «Ficou no seu posto, fiel ao progresso, à cultura, à arte e ao espírito sem fronteiras, até à chegada dos nazis a Vilna: os judeus cosmopolitas e apaixonados pela cultura não sendo do gosto deles, assassinaram David, Malka e o meu primo, o pequeno Daniel».
«Cerca de ano e meio antes da ascensão do nazismo, na cegueira do desespero, o meu avô sionista tinha mesmo solicitado a cidadania alemã. Que lhe recusaram, felizmente para nós. Na época, os três quartos da Europa só aspiravam a desembaraçarem-se definitivamente de todos estes pan-europeus fervorosos, poliglotas, doidos pela poesia, convencidos da superioridade moral da Europa, amadores de dança e de ópera, amorosos do património europeu, sonhando com uma unidade europeia pós-nacional, apreciando a cortesia, as vestes e as modas europeias, admiradores incondicionais de uma Europa que, desde há anos, se tinham empenhado em acariciar, em enriquecer em todos os domínios e por todos os meios, esforçando-se por se integrarem, por enternecê-la fazendo-lhe uma corte desenfreada, por se fazerem amar, aceitar, por satisfazê-la, por fazerem parte dela, por serem amados…»
A maior parte desses europeus morreram como sabemos. Alguns escaparam a tempo, como os familiares de Amos Oz, que em Jerusalém continuaram a sonhar com essa Europa desfeita literalmente em cinzas. O pai do escritor lia livros em 16 línguas e falava 11. Como acontecia, aliás, com tantos dos vizinhos da sua pobre casa, onde não havia mais nada do que livros. Livros esses que, às vezes, era necessário vender para alimentar a família…
Agora que tanto se fala de crise europeia, mas atribuindo-lhe causas económicas e políticas, gosto de me lembrar dessa Europa e desses europeus, recorrendo às memórias de outros, Amos Oz, George Steiner ou até mesmo Stefan Zweig. Neste outro deserto, urbano e ruidoso, em que caminho, agarro-me a eles como bóias num naufrágio.
E vem-me à memória essa outra frase terrível, atribuida ao lisboeta e europeu Menasseh ben Israel:
«Aquilo que alguma vez aconteceu será para sempre possível».
P.S. Há dois meses e meio que tenho o meu Pai internado num hospital. Por isso me tem faltado o ânimo e a disponibilidade para prosseguir estas «Anotações». Foi essa a única razão -- que não haja equívocos a esse respeito.
E agora a elas volto, apesar de tudo, com a esperança de vencer a dor com a escrita. No fim de tudo, resta-nos a palavra. A citação do dia só pode ser esta, evidentemente:
«O meu reino não é deste mundo» (João, 18, 33).

1 comentário:

  1. Caro Amigo António Carlos Carvalho,

    É com satisfação que, neste blogue, leio de novo a sua rubrica «Anotações Pessoais». Quanto aos dias dolorosos por que tem passado, permita-me citar, continuando com João:16, «Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há-de converter-se em alegria!»

    Eduardo Aroso

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