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domingo, 17 de outubro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 105




A História do Bruno
Cynthia Guimarães Taveira

Não era para escrever este texto. Por vergonha. Vergonha daquilo que presenciei. Por mágoa, demasiada mágoa. Eis os factos: Uma angolana conhece um aldeão português, e vice-versa, ele também a conhece no sentido bíblico em que um homem e uma mulher se conhecem. Ele é louro de olho claro. Ela é negra, de olho escuro. Desse encontro nasceu uma criança a que deram o nome Bruno. A criança é linda. Tem agora doze anos. Vejo-a brincar na praia. Tem uma alegria imensa em viver. É mulato louro e branco e os traços com que foi desenhada a sua face são africanos. A mistura saiu perfeita e o menino, que conheço há quatro anos, entretém-se, sem que o saiba, a dar lições de vida a um olhar mais atento. A sua vida não é fácil: a mãe separou-se do pai e foi agora viver com um homem muito mais velho, que bebe, que grita, que embirra, que não o ama de maneira nenhuma.
Mas o Bruno é uma borboleta, parece pairar acima de todas as adversidades. É inteligente e tem jeito para escrever. Nas histórias que escreve revela uma imaginação e uma facilidade com a palavra que admiro. Ele balança na vida e com a vida. Ele diz-me, sem que o diga, que o truque para viver está em saber dançar. Saber ouvir uma música acima do quotidiano triste. E pairar assim, acima das circunstâncias, e conseguir, assim, momentos de felicidade. Admiro-o quando o observo. Gosto muito dele. Se pudesse adoptava-o e retirava-o do mundo triste em que vive. Penso nisso às vezes. Antes de barrigas de aluguer, bebés proveta, desejos, absurdamente egoístas, de se ter um filho que sai do próprio ventre como prolongamento de si, vem a adopção. A adopção daqueles que, como o Bruno, quando lhe fazemos uma festa nos dá um abraço do tamanho do mundo, quando se dá um beijo, se recebe mil em troca. Há muitos como o Bruno e eles estão aí, à espera de alguém que os ame para poderem também amar. As provetas deviam ficar para o tempo em que já não houvesse crianças abandonadas à sua sorte.
No dia 1 de Outubro o Bruno foi assassinado com um tiro de caçadeira na testa. O velho, que pertencia à mesma aldeia que o pai do Bruno, chateou-se de vez, ou bebeu de mais, ou apeteceu-lhe (bem lá no fundo, acho que lhe apeteceu) e resolveu matar mãe e filho na mesma noite. Dava-se mal com a mãe e resolveu fazer justiça com as próprias mãos. A seguir, como viu que tinha feito asneira e que iria sofrer consequências sérias por isso, suicidou-se, coroando assim uma noite de cobardia. Matar pessoas indefesas é um acto de cobardia.
No dia 6 de Outubro foi o enterro. Lá fui. Com um desgosto e uma indignação sem tamanho. O meu Bruno morreu. O meu Bruno não morreu de doença, nem num desastre. Morreu porque alguém decidiu que ele ia morrer. Todo o meu corpo é só uma lágrima. Estavam menos pessoas no funeral do que imaginei. Pensei que, coitadas, estariam a trabalhar. A aldeia era confusa, não sabia ao certo quantas pessoas teria. Mas sabia, porque lá trabalhava, que as notícias se espalhavam depressa. Devia ter percebido os sinais pelas conversas: - Ela era má para ele, diziam. – Ela não o deixava beber nada, diziam. – Ela ia para os cafés à noite e fumava! – Ela discutia com ele no meio da rua.
Este último facto, “Ela discutia com ele no meio da rua”, era tido, naquele lugarejo, como um acto verdadeiramente escandaloso. Sabia disso porque trabalhava naquele sítio há oito anos e, pura e simplesmente, havia uma verdadeira opressão na exposição pública dos sentimentos. Punida com repúdios e ostracismos. Vinda de Lisboa, estranhava o fenómeno. Em Lisboa todos discutiam em qualquer lugar. Todos mostravam o que sentiam. Ali não se podia sequer sentir e eu não o sabia ainda. Fiquei a sabê-lo no velório do velho.

O velório do velho foi, paredes meias com o sítio onde trabalho e onde o Bruno brincou durante quatro anos. O velório do Bruno foi noutra terra, colada àquela. Foi mais longe.
Quando cheguei, de manhã, para trabalhar e ir ao funeral do Bruno e da mãe, foi com espanto que percebi que tinham posto o corpo do velho tão perto de um sítio onde o Bruno estava todos os dias. Mas o choque veio depois. Carros e mais carros foram-se acumulando junto à capela e, a aldeia em peso, velava e lamentava a morte do velho assassino. Mais pessoas foram ao funeral dele do que foram ao da mãe e ao do filho. Afinal o velho era filho da terra, e lá devia ter as suas razões para fazer o que fez. Estava desesperado, coitado.

Aquele lugarejo, aquele detestável lugarejo era o oposto do que eu sonhava para Portugal. No funeral da criança, uma amiga holandesa estranhava os nossos costumes e dizia-me: - Se isto fosse na Holanda, havia uma vigília com velas e crianças junto ao sítio onde o Bruno tinha morrido. Havia uma marcha silenciosa na aldeia e quase ninguém teria ido ao velório e ao funeral do velho. Foi com tristeza que lhe disse: aqui, as pessoas desta aldeia são xenófobas e racistas. Vivem perto do mar e nunca viajaram. Nunca saíram daqui. Não conhecem outra realidade que não a sua e recusam qualquer outra. O lugarejo chama-se Malveira da Serra. Fica perto do Guincho. Fica até perto de Lisboa. Mas é uma bolha no espaço e no tempo. Se passarem por lá, não parem.

Dedico este texto ao Bruno. De quem terei sempre saudades. E que não merecia o que lhe aconteceu.

1 comentário:

  1. História impressionante. De facto, justiça e humanismo não existem nesse lugarejo detestável. Fez bem em escrever este texto de homenagem.
    Eu também passei a gostar muito do Bruno.

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