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quinta-feira, 5 de março de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 1

António Carlos Carvalho

Há uma semana, o meu computador começou a enviar-me mensagens aflitivas: está a ficar com pouca memória. Não pude deixar de sorrir – um sorriso de vitória. Também tu... Sempre me queixei de falta de memória, minha, ao longo da vida (esqueço-me facilmente de nomes de pessoas e de títulos de obras, tenho dificuldade em decorar textos, etc.) e agora queixo-me da falta de memória dos meus contemporâneos, sobretudo de alguns mais novos do que eu e que julgam que o mundo começou com eles e que já nasceram a saber tudo.
É, aliás, típico desta época confiar a memória ao computador. E, depois, temos resultados destes...
Por coincidência, tenho andado a ler (e a anotar, à mão, claro) um livro recente, muito interessante: «Talmud – enquête dans um monde très secret», de Pierre-Henry Salfati (ed. Albin Michel). O autor faz um verdadeiro périplo pelo mundo dos talmudistas actuais, de Jerusalém a Nova Iorque, passando por Paris, Veneza, Londres ou Worms. Uma investigação cheia de pormenores curiosos, incluindo a importância que o Talmude teve no processo de divórcio de Henrique VIII, o ódio que Lutero tinha ao Talmude e aos judeus em geral, o estudo diário do Talmude por um grupo que faz a viagem de comboio, todas as manhãs, entre Long Island e Manhattan.
Mas o mais importante para mim, a contas com esta questão da memória, é o que Salfati conta a certa altura: quando era estudante na yechiva (escola talmúdica) de Brunoy, desceu às caves desse antigo palácio, transformadas em túmulo ou catacumba para os livros demasiados usados no estudo (na tradição judaica, estes livros não se deitam fora, são guardados em lugares especiais, «guenizot», onde se vão desfazendo, esfarelando). Mais tarde, enquanto fazia a investigação para este livro, voltou a a descer às mesmas caves para ir buscar um fragmento do Talmude que fosse pouco maior do que a unha do polegar, que não contivesse uma frase inteira. Salfati queria comprovar se era verdade o que diziam os estudantes a respeito de um dos seus mestres, o rav Hillel Pevzner: era capaz de reconhecer qualquer passagem do Talmude numa simples vista de olhos (só o Talmude da Babilónia conta 37 tratados repartidos por 20 volumes de 35 centímetros de altura, ou seja, mais de 2700 páginas, sem contar com os comentários anexos no final de cada volume, que representam mais ou menos a mesma quantidade...).
Salfati e um grupo de alunos igualmente curiosos apresentam então o minúsculo fragmento ao rav Hillel e este demora apenas uns 20 segundos a reconhecer o pedacinho de papel: «Tratado Menahot, página 22, verso; comentário dos Tossefot, o primeiro no alto da página.» E era verdade... Espanto geral. Excepto por parte do rav: «Porquê todo esse vosso espanto? Isto não é nada. O meu mestre é que era um génio. Na yechiva de Samarkanda, divertíamo-nos a passar um lápis pela capa de um qualquer volume fechado do Talmude; a certa altura parávamos o lápis e o nosso mestre era capaz de nos recitar as palavras de cada página que se encontravam no prolongamento do lápis. Cada palavra, em cada página, de um lado e do outro. Isso é que é razão para espanto. Eu não sou capaz de fazer tal coisa.»
Lendo esta descrição, lembrei-me, inevitavelmente, do que George Steiner (que não é um talmudista) contou a respeito da sua infância: o pai obrigava-o a decorar páginas inteiras de clássicos gregos e só depois o menino George podia ler romances e outras frivolidades... Daí o elogio apaixonado que Steiner faz sempre do «saber de cor» (de memória, de coração... interessante associação).
Foi sabendo de cor páginas inteiras do Talmude que muitos judeus resistiram aos campos de concentração, agarrando-se à memória viva, feita gente, da tradição oral sobre a Torah, elaborada ao longo de mais de sete séculos por sábios que viveram em Israel e na Babilónia até ao início da Idade Média. Essa sucessão interminável de questões e respostas que suscitam outras questões é muito mais do que parece à primeira vista: é a prova provada de que a memória nos mantém vivos e de que as palavras dos homens nunca conseguem esgotar os infinitos sentidos das outras Palavras, as que foram divinamente inspiradas. Segundo a tradição judaica, o Talmude não é uma obra acabada: é a verdadeira obra aberta, sempre pronta a receber as novas contribuições das gerações seguintes. Que usam a memória e a palavra para prosseguir o diálogo.
E eu, aqui no meu cantinho, ao teclado de uma maquineta estúpida com falta de memória (pelos vistos ainda mais do que eu), só posso sentir inveja.

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