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quarta-feira, 15 de abril de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 5

António Carlos Carvalho

Há duas semanas ouvi a curiosa notícia de que ninguém sabe bem a quem pertence um quinto do território português. Dias depois, ocorreu aquela tragédia do terramoto em Itália. E eu pensei: aí está a resposta, indirecta, a essa dúvida portuguesa sobre a posse da terra. A terra, toda ela, aqui, em Itália, no resto do mundo, pertence ao seu Criador. Nós só temos o usufruto disso e de tudo o mais. Fomos colocados neste mundo, que não é nosso, para o guardarmos e melhorarmos.
Tudo o que temos é um dom -- a começar pela própria Vida, obviamente (por isso é absurdo o que se ouve por aí, constantemente: «A vida é minha, faço dela o que quiser!»)
Mas se é assim com o mais precioso, a Vida, então passa-se o mesmo com o resto, menos importante: nós não somos donos, proprietários, senhores de coisa alguma. Tudo o que julgamos, ilusoriamente, ser nosso, «por direito», é apenas um empréstimo, algo de provisório.

Mas claro que só percebemos estas coisas evidentes quando a terra treme e as nossas casas desabam sobre nós, quando de repente nos encontramos sem nenhum dos bens que julgávamos nossos, muito nossos.
Ou quando, no limite, a vida que nos foi dada nos é retirada e partimos de vez, deixando para trás todos os tais bens que julgávamos adquiridos.
Emile Benveniste demonstrou claramente que o verbo «ter» se formou ao mesmo tempo em que a propriedade se instalou.
O Baal, divindade arquetípica da idolatria (contra o qual se levanta um Elias), é etimologicamente o «senhor», mas também «o esposo» e o «proprietário». A civilização ocidental, que se tornou mundial, e que fez da sua História um historial de destruição de bens e de vidas (basta ver o que se passou no século XX), fez do «ter», da «propriedade», o seu ídolo maior. E atribuiu um preço a cada coisa – incluindo a terra, a água, a casa, os alimentos, a saúde, a cultura, os próprios bens espirituais. Constantemente somos chamados a «ter» -- e não a «ser».
Curiosamente, todos os grandes sábios e mestres foram homens que nada tinham, nada possuíam, de nada eram proprietários. Mas que se preocuparam em ser – seres humanos, verdadeiramente.
E foram nómadas, claro. Como cada um de nós o é, na realidade: estamos aqui de passagem, não somos de cá, temos raízes no céu. Quando termina a nossa viagem por este mundo, levamos apenas connosco o que o nosso coração tiver aprendido, por ter sabido dar, isto é, por ter sabido usar bem os dons que o Criador lhe forneceu para essa mesma viagem.

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