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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



segunda-feira, 23 de julho de 2012

EXTRAVAGÂNCIAS II, 6


A Dama
(dedicado aos homens que escutam...)

Cynthia Guimarães Taveira

O Amor da Dama é:

Incondicional

Atravessa os círculos dos mundos

Atravessa-os só para vir ter connosco

Nada mais lhe interessa

A não ser possuir-nos

Totalmente

Ela lê-nos, sabe-nos, conhece-nos até à raiz

Embala-nos, submete-nos, mata-nos

Dá-nos vida

Fragmenta-nos e enche esses fragmentos da sua

Própria substância

Une o seu coração ao nosso

Bate ao mesmo ritmo

É o mesmo coração por instantes

A Dama é:

Quem nos acolhe, nos escolhe, nos vigia

Nos cerca em becos sem saída

Nos fala pelas pessoas, atravessando-as

Ela é quem nos condena a um estranho exílio

Do mundo, das coisas, das pessoas,

Exílio de nós mesmos

Ela é quem nos tirou Tudo

E nos deu Tudo

O seu Amor é

Transbordante

Totalizante

Próximo

Forte

Sereno

Nunca nos deixa sós

E deixa-nos para sempre solitários

A Virgem deixa-nos

Num deserto em expectativa

Suspensos

Indefinidos

Prováveis constantemente

E aparece-nos em pequenos gestos

O Amor que deixa

Espalha-se através de nós

Nos outros seres.

Ela é o verdadeiro pó de projecção

Pó cósmico pairando a cada respirar

Ela gera Irmãos quando faz os seus filhos morrer

Ela é a Vida

A culpa e a redenção

O sorriso final

Que nunca morre

A nossa eternidade possível

A reunião de todos os sonhos

Tomados num cálice

A semente do início

Potência das potências

Ela a grande surpresa

Na noite

Na Verdadeira Noite

Ela forma o Dia no seu ventre

Ela dá-nos o sonho de um dia ver o Dia.

domingo, 15 de julho de 2012

SABEDORIA ANTIGA, 21

















Ecce Homo?

Alexandra Pinto Rebelo

Neste texto colocarei algumas hipóteses de reflexão em relação ao Ecce Homo do Museu Nacional de arte antiga. É um quadro enigmático, de origens não menos misteriosas. Sabe-se apenas que é “proveniente dos conventos extintos”, de acordo com a sua ficha no MNAA.

O título que o acompanha, Ecce Homo, insere-o numa pintura de tema histórico bastante difundido. Pilatos, exibe Cristo à multidão, devidamente adornado com símbolos da realeza como sejam o manto púrpura e a coroa, tornada de espinhos. É um dos episódios de maior tensão nos Evangelhos canónicos. Pela primeira vez na, até aí, sua curtíssima história, a doutrina cristã está a ser exposta em meios hostis, sendo ridicularizada simbolicamente, fustigada pela dor física do próprio Cristo. Perante os nossos olhos, está a criar-se o arquétipo cristão da injustiça humana, expressa pela ferocidade extrema, podendo conduzir à morte dos que a defendem. Arquétipo, sem sombra de dúvida, Universal.

A postura do Ecce Homo do MNAA, parece afastada do centro de toda esta tensão. Cristo está só, como que em apresentação autónoma. O fundo completamente negro do quadro, remete-nos para uma espécie de interpretação latina dos fundos dourados dos ícones bizantinos. Queriam estes remeter o espectador para um tempo sagrado, fora do tempo comum. Este Cristo, também ele, parece projectar-se para um tempo, longe daquele proposto como histórico, afirmando-se mais como uma impressão do sagrado, do que propriamente como uma representação mais ou menos realista formada a partir da noção de janela ilusória proposta pelo Renascimento. Parte do seu rosto está oculto pelo manto, não revelando o fundamental olhar.

Se atentarmos na presença física de Cristo, reparamos na sua postura perfeitamente erecta, nas mãos cruzadas pela altura dos pulsos, estando o braço direito sobre o esquerdo, no inchaço na maçã do rosto, tornando-o irregular, na ocultação dos polegares, resultando isso na representação de quatro dedos apenas em cada mão. Adicionando o manto branco, que cobre quase todo o corpo, poderemos ter uma boa hipótese em relação à origem de tal imagem. Essa boa hipótese é o sudário, chamado, de Turim, onde a contestada figura de Cristo aparece com os mesmos atributos. O pano de linho esbranquiçado, exibe a imagem de um Cristo morto, de corpo perfeitamente vertical, mãos cruzadas pela altura dos pulsos, braço direito sobre o esquerdo, inchaço na maçã do rosto, tornando-o irregular, ocultação dos polegares. Dizem os patologistas estudiosos do sudário ser esta ocultação própria da crucificação, uma vez que, com o rompimento do nervo médio da mão, dá-se um voltear destes dedos para dentro, dando a ideia de que não estão presentes.

Terá sido esta imagem impressa no sudário, o modelo de algumas representações de Cristo, desde o Manuscrito Húngaro de Preces (1192) à imagem de Cristo ressuscitado no seu túmulo, no Très Riches Heures de Jean de France, em parte encomendado a Jean de Colombe por Carlos I de Sabóia, representante da casa nobre detentora do sudário até ao final do Século XX, altura em que a doou ao Vaticano. Segundo julgo, foi esta mesma imagem que serviu de modelo para a construção do Ecce Homo do Museu Nacional de Arte Antiga.

Poderemos, então, não estar perante um Cristo morto, mas um Cristo Vivo, ressurgido. Um outro pequeno enigma dentro do quadro, remete-nos para esta solução. Dezassete espinhos, atravessam o pano, ficando visíveis. Este número é referido no Evangelho de João, quando Cristo, depois da sua morte, aparece aos discípulos junto ao Lago de Tiberíades, na sua terceira aparição pós Ressurreição. Estes não tinham pescado nada na véspera. Ao aparecer-lhes, mais uma vez sem que o reconhecessem, Cristo pergunta-lhes se há alguma coisa para comer. A reposta é negativa ao que lhes é sugerido que lancem a rede para a direita. Lançam-na, ficando esta cheia de peixes. João reconhece, então, Cristo. O resultado da pescaria é contado: “cento e cinquenta e três” grandes peixes. 17 e 153, ocultam-se mutuamente. Manuel J. Gandra relembra-nos as contas precisas em Da Face Oculta do Rosto da Europa. Se somarmos todas as unidades entre 1 e 17, chegamos à soma de 153. Este número, então, é identificável com a terceira aparição de Cristo, numa das suas associações possíveis. Manifestação que termina a sua primeira passagem pelo tempo histórico, número transformado em medida perfeita de tempo divino. Perfeita deve ser, igualmente, entendida a sua actuação no espaço. Este Cristo exibe uma corda, unindo cabeça e mãos. Poderá querer referir-se à união entre o pensamento e a acção, ou entre a profecia e os factos acontecidos.

Aqui chegados, poderemos então perguntarmo-nos pelas marcas dos cravos nas mãos. Se nos é apresentado um Cristo ressurgido, assistindo nós a um dos maiores Mistérios do cristianismo, momento solene, perfeito, ocultado em parte por não nos ser permitido ver tudo, porque não a inclusão das suas feridas? Penso que, mais uma vez, a leitura dos Evangelhos Canónicos pode dar essa resposta. A imagem de Cristo não é facilmente reconhecida por todos aqueles que com ele conviveram. Tirando um ou outro episódio em que as feridas são mostradas como prova, sendo a de Tomé exemplar, não é essa a forma usual de o reconhecer. A forma é, quase sempre, qualquer coisa como uma intuição súbita. Talvez seja essa intuição aquela que, em primeiro e último lugar, nos é requerida ao observar esta imagem.