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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 89

Nos 100 anos da República como estão a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade?
Evocando o Sesimbrense Virgílio de Mesquita Lopes
Luís Paixão

A Cidade é a expressão física da Politica. Esta afirmação poder-nos-ia levar muito longe na identificação dos males e dos bens da vida em sociedade e da sua correspondência na fisionomia, nas feridas ou nas cicatrizes da urbe. Não é esta, contudo, a intenção do presente escrito. Quero apenas, e por agora, deter-me nalguma toponímia ligada à Republica, para vos dizer ao que venho:
A I República, não obstante todas as vicissitudes, está bem expressa em Lisboa, em Setúbal e noutras cidades – nas designações de ruas, praças, avenidas e edifícios. Sejam elas evocativas de datas: Rua 31 de Janeiro, Avenida 5 de Outubro, Rua 2 de Abril; ou de figuras notáveis: Almirante Reis ou Cândido dos Reis, Braamcamp, Elias Garcia, dos Combatentes ou, por ultimo, da própria República em Lisboa e em Sesimbra (antiga Rua Direita) e dos seus valores: as várias avenidas da Liberdade. Estas designações estão presentes nas conversas do dia-a-dia dos cidadãos, apenas por razões de orientação, porque poucos serão aqueles que sabem os acontecimentos que evocam, os feitos das figuras públicas ou o verdadeiro sentido dos valores ou instituições nomeados. Pelo que me diz respeito, sou mais favorável à designação dos valores ou ideias universais, como por exemplo as referências nas ruas medievais às virtudes teologais. Estes nomes, que existem no centro antigo da cidade, deixaram de fazer parte do léxico de muitos dos jovens que já nasceram nos bairros periféricos, com os seus centros comerciais, e circulares CREL ou CRIL, perdendo, infelizmente, a possibilidade de lhes ocorrer as perguntas iluminantes: O que aconteceu de importante nesta data? Quem eram e por que eram notáveis?
O que significam aquelas palavras, aqueles conceitos?
O movimento centrifugo que levou ao aumento da população nas periferias das cidades e à consequente desertificação do centro, e ao qual Lisboa, Setúbal e outras cidades não escaparam, conduziu àquilo que modernamente se designa por efeito “donut”, forma que é de certo modo o inverso da esfera e que evoca um preocupante vazio no centro. Ocorre-me a primeira frase de um poema de David Mourão-Ferreira a propósito de Lisboa: “Capital! Ó Capital! Capital decapitada”. Seja ela capital de um País ou de um distrito.
Entre a baixa do Marquês de Pombal com as suas ruas Augusta, da Prata e do Ouro de altíssimo valor simbólico, e a rotunda onde se entrincheirou e combateu Machado Santos nos dias 3 e 4, comemorando a vitória no 5 de Outubro de 1910 existe a avenida da Liberdade, valor que, com outros dois, faz parte dessa tríade luminosa da LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE tão do agrado dos republicanos. Já por várias vezes me interroguei onde estariam as duas outras avenidas que faltam: será que ficaram pelo caminho, será que existiram e lhe mudaram os nomes ou será que houve uma súbita e conveniente amnésia? Qualquer que tenha sido o caso, não deixa de ser relevante que a tríade haja sido amputada de dois termos, o que retira sentido ao que ficou, porque nenhum deles pode ser vivido e pensado sem os outros dois.
Por centelha patriótica à laia dos primeiros republicanos, não posso deixar de realçar que a criação desta tríade de carácter cristão foi atribuída pelo ilustre escritor francês Osvaldo Wirth ao português Pascoal Martins, obscuro judeu de modesta profissão (reparava carruagens), autor de um luminoso e difícil livro que se intitula Tratado de Reintegração dos Seres Viventes…, editado entre nós em 1979 com tradução e prefácio de Manuel J. Gandra nas Edições 70. Esta obra de carácter completamente espiritual parte da constatação de que homens e mulheres são anjos caídos e aspiram nas suas vidas, como o titulo indica, a esse estado idílico e inicial vivido no Paraíso.
O autor, nascido em 1715 (?) e falecido em 1779 em Port au Prince, já adulto saiu de Portugal com destino a França, provavelmente em busca de melhor vida. Passou uma má temporada em Toulouse, e fixou-se depois por um longo período em Bordéus, onde foi muito bem recebido e fez escola, vindo a exercer significativa influencia nos meios intelectuais e da maçonaria franceses atraindo discípulos e prosélitos, entre os quais estão nomes como Saint-Martin, o abade Fourier, Balzac, Joseph de Maistre e o muito ilustre maçon francês da cidade de Lyon, Jean Baptiste de Willermoz. Terá criado uma ordem designada por Les Elus Cohen, que virá a ter decisiva influência na criação da maçonaria cristã do Rito Escocês Rectificado, da qual terá feito parte o nosso ilustre mártir, o General Gomes Freire de Andrade.
Segundo estes dados biográficos, não estava seguramente no espírito do nosso Pascoal Martins a utilização das palavras da tríade para propósitos ou bandeiras de divulgação de estreito positivismo ou materialismo. Com efeito, quanto à liberdade, ficou em muitos casos limitada aos seus aspectos mais grosseiros: à autorização da acção, do apetite, ao movimento físico, à expressão. Pouco se pensou, se essa liberdade de expressão era porventura expressão dessa mesma liberdade. Esqueceu-se quão difícil é a liberdade emotiva, de coração limpo, sujeitos que estamos muitas vezes à antipatia, à inveja, ao ciúme, à tristeza e quão difícil é a liberdade de pensamento, presos que estamos no preconceito, na ignorância e na estupidez.
Quanto à igualdade, a realidade desmente a abstracção aritmética, porque nunca poderemos pôr entre dois indivíduos o sinal de igual. Poderão os regimes tentar tornar o estatuto do ter com menos diferenças, mas esta louvável redução das diferenças não deve ser extrapolada para o estatuto do saber ou do ser, porque, naturalmente, aqui lidamos com as diferenças e qualificações do que é inato, da sorte de cada indivíduo e também do que ele virá a obter da vida por mérito, talento ou génio. A igualdade só é possível de raciocinar perante alguém que nos é transcendente. A adopção exclusiva deste ideal retirado da tríade harmónica originou os regimes totalitários ditos de esquerda que têm vindo a soçobrar no Ocidente nas últimas décadas.
Quanto à fraternidade, que vive intimamente ligada com as duas outras, é a linha horizontal, o grande abraço entre os seres humanos, que cruza com a vertical da liberdade e da igualdade, sendo impossível meditar neste valor sem se pensar na irmandade, na família natural, porque é daqui que partem os conceitos, as vivências e, também, a certeza das dificuldades em torná-la possível e efectiva na humanidade. Caim, Abel e Seth estão presentes em cada momento. Se a humanidade deverá caminhar para uma grande irmandade, onde estão? Quem são? Os progenitores, os encarregados de educação dessa grande família?
A resposta a cada um.
(continua)

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