por Cynthia Guimarães Taveira
Detida e retida no primeiro livro da autora que teve nas mãos, A Nau e o Graal. Detida pelos seus imaturos dezassete anos. Retida por essa estranha forma de escrever e pela complexidade da disposição de palavras. Em suspensão esteve nessas primeiras duas páginas, não sabendo se iria progredir nessa viagem, não sabendo como ler. “Como ler isto?”, perguntava-se. Como ler Dalila? E, suspirando, avançou nas páginas, como se avança no mar, sem querer saber de monstros marinhos, sem querer saber se entendia ou não o que ali estava. Avançava simplesmente. E nesse texto descobriu a fórmula da leitura. Primeiro sentir esse compasso das ondas, nos ritmos, nas cadências, nos silêncios. Tantos silêncios. Depois, ver nascer a pouco e pouco a oração. Dádiva dessas letras ao céu, devolução a Deus dessa serenidade. E eis que o texto agora se projectava para cima, em voz alta, em gratidão. Lia páginas da Dalila para os anjos ouvirem. Como uma sinfonia desmultiplicada em sentidos, agudos pela intensidade, e por vezes graves e firmes como as rochas do Porto. E eis que essa oração sem pedidos, exigências, por nada disso constar no texto, apenas louvor, se transmutava em evocação. Evocações infinitas do Belo, do Bom, da Bem-aventurança. Cada autor tem uma forma de ser lido, um tom interior ajustado ao tom das palavras, das cadências, da música. Em Dalila descobria a revelação a cada passo e um novo mundo surgia, nascido do velho e do gasto. O próprio mundo mas desocultado. O misticismo já não fazia sentido como corrente, como devaneio. Era enfim vivido, despoletado pela força da palavra-oração. E não era solitário: de um lado a terra inteira, espreitando no mais simples pássaro; do outro, Deus, num aceno de um simples anjo. A evocação foi o resultado da sua leitura, o desapego intelectual a sua condição. Palavras-anjos que nos conduzem:
“Mas para que cada homem, num certo espaço e tempo da terra, e neste, como pátria, possa colaborar nessa nova redenção, como assunção, transfiguração sua e do mundo, necessário se torna que, por uma gnose amante, todos os estados sucessivos, e sucessivamente vividos, ultrapassados, sejam conhecidos e esgotados, em todas as suas virtualidades. O corpo e a alma terão de ser, no amor, totalmente assumidos e iluminados pelo espírito (ou o inferno e a terra pelo céu). Até ao seu mais recôndito interior e seus extremos.
Então também por essa ignição derradeira (por ele operada) todas as escórias cairão e corpo e alma (ou inferno e terra) delas libertadas, puras, possuirão a sua vera natureza, primeira, gloriosa.
Assim se assumirá, ultrapassando-as pela união da complementaridade, para além da oposição (aparente): noite e dia, corpo e alma, vigília e sonho, terra e céu, mundo visível e invisível, morte e vida.
Assumindo aí o homem a sua vera posição teológica, no cosmos - como o seu ponto de Manifestação.
E então também, para transcender-se e servir, ele fará transcender todas as suas possibilidades latentes, todas as suas forças inclusas, escondidas e não usadas em si (depois da sua idade primeva, paradisíaca). E de si um novo homem (de novo o primevo), de si desconhecido e não suspeitado até agora, depois dessa idade surgirá.
Do seu interior mais fundo, que agora ele verá que se une e identifica ao exterior mais remoto, como o Real, ele fará erguer-se as forças de seu conhecimento amor: e então de uma forma nova usará a poesia, a mística e a filosofia: enlaçada, multiplicada, global e vertiginosamente.”
in A Nau e o Graal, Dalila L. Pereira da Costa, Lello & Irmãos Editores, 1978 (pág. 18/19).
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