(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quarta-feira, 28 de abril de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 57

Interior (Costureiras trabalhando), de Marques de Oliveira

As citações nunca estão sós
Cynthia Guimarães Taveira

Frase de Oscar Wilde, que não me canso de repetir: “O supérfluo é absolutamente essencial”. E outras citações, desta vez de um romance em jeito de autobiografia, ou vice-versa, que gostei de ler, nem sempre as obras-primas são necessárias aos pensamentos. Assim, nas “Casas Contadas” de Leonor Xavier, pequenos esboços da vida doméstica, deliciosos: “As cozinheiras como ela era sabiam de tudo, pensava eu, enquanto assistia aos seus preparos. Ela arrepiava um pescada com sal, pendurava-a pelo rabo por um cordel, preso na torneira sobre um alguidar, ou escamava uns salmonetes para o almoço. Temperava o cabrito para ir ao forno, ajeitava uma galinha em arroz para corar, embebedava o peru com um funil se estivesse em preparativos de Natal. Depenava um pato ou um frango. Cortava feijão verde ou arranjava nabiças para uma sopa. Sabia que o espinafre não leva água para cozer, e que o polvo é traiçoeiro na panela. Batia claras de ovos em castelo para os bolos, não se enganava no ponto do açúcar, ponto de pérola ou de espadana, a escorrer da colher de pau. E fazia doces de frutos em tachos de cobre, sempre a mexê-los, encarrapitada no fogão.” Mais à frente, tendo ainda a referência das criadas: “…continuava pelo trabalho de lavar, escamar, descascar, cortar, moer, picar os peixes e as carnes, as hortaliças, os acompanhamentos, cozinhando-os para o momento exacto das refeições, lavando à mão e arrumando a loiça com a ajuda da criada de fora. Eram horas de trabalho sem fim, para tratar de esfregar a roupa de corpo no tanque e pendurá-la na corda de arame, roupa que a criada de fora de lá tirava depois de seca, para borrifá-la e dobrá-la a preceito, arrumada num cesto de verga, para da parte da tarde, entre a hora do lanche e do jantar, passá-la a ferro.” E ainda: “Duas vezes por semana, vinha a lavadeira, com o seu rol de roupa confirmado peça por peça, os lençóis e as fronhas, as almofadas e os travesseiros, as toalhas de mesa e de banho, os guardanapos e os panos da loiça, de estopa ou linho ou algodão conforme se destinassem a tachos, copos, pratos ou talheres.”. Finalizando, desta vez referindo-se à costureira: “Nas suas mãos, um vestido passava a ser blusa, uma blusa era uma saia, um folho transformava-se em prega ou bolso”.
Há que dizê-lo, Leonor Xavier descreve aqui um intenso registo de manutenção. A manutenção de uma casa, a manutenção da própria vida, trabalho que, dizia um professor de Antropologia de Económico, não era remunerado, mas que, sem o qual, a sociedade ruiria. Hoje, só as realezas empresariais e as poucas verdadeiras que sobram na Europa possuem este tipo de criadagem, e mesmo assim, o trabalho não é o mesmo, menos manual (Agostinho da Silva diria mesmo menos escravizante). Mas se olharmos com atenção para esta descrição veremos que a fronteira entre a manutenção e a arte é difusa. Facilmente o essencial passa a supérfluo. O cabrito requer arte não a requerendo de todo, assim como os doces uma mão, uma alma que se põe na confecção, doces que essencialmente têm apenas de ser doces mas que acabam sendo mais: “o doce estava divinal”, pode dizer-se, alcançou o divino pela elaborada manutenção da vida, e o vestuário, apenas protecção, em princípio, passa a arte sem preço. Uma pequena anedota ilustra esta passagem: uma senhora num salão de chapéus parisiense prova, insatisfeita, todos os modelos disponíveis; por fim, chama o chapeleiro e diz-se desiludida por nada lhe ficar bem. O chapeleiro pega então num pedaço de tecido que sabiamente vai enrolando à volta da cabeça da senhora. Por fim, estende o espelho e a senhora diz, quase num grito: -- Perfeito, está perfeito. Quanto lhe devo?, pergunta. O chapeleiro pede-lhe um preço exorbitante, ao que a senhora, chocada, contrapõe: -- Mas isto é apenas um pedaço de tecido. Com um sorriso, o chapeleiro, responde: “-- Mas, minha senhora, o tecido é de graça”. O chapéu serve apenas para cobrir a cabeça, mas há sempre um “a mais” que se coloca, o pequeno “a mais” que torna os pequenos gestos em pequenas perfeições, próximas do divino.
O Jardim de Adão e Eva era para ser guardado, mantido por eles, mas um jardim é já a criação conduzida a uma outra criação. Não há jardins espontâneos, têm a marca da tesoura de podar, da orientação no espaço, do cuidado visual e, naturalmente, do canto elogioso dos pássaros. Têm um toque a mais do que a natureza selvagem. Cuidar é assim também criar.
Confesso que fico estupefacta com os sacrifícios humanos que ainda hoje se fazem em religiões monoteístas. Para além do acto tresloucado de fazer explodir bombas no seu próprio corpo em nome de um Deus e com o propósito de um paraíso machista de virgens submissas, há os outros, feitos na Páscoa, no qual cristãos se deixam espetar por pregos numa tentativa vã de serem símbolos vivos (mais parecendo mortos, mas enfim) e, ainda, outros que se arrastam de joelhos até que o sangue por eles escorra ou as bolhas nos pés cheirem mais a exigência do que propriamente a pedidos de socorro. Parece-me tão estranho isso como os jogadores irem pedir golos à Virgem como se esta fosse a décima segunda jogadora, marcando o golo da vitória. No fundo, são negócios, apenas negócios… mas negócios que implicam o corpo, ou seja, o jardim que nos está mais próximo, o mais íntimo, a manifestação que temos mais por perto. Esta destruição contraria a guarda do jardim e, em última análise, a própria criatividade. Com a destruição já não há manutenção, e sem esta deixa de haver a possibilidade artística que há no homem, tanto fora de si como dentro de si. Hoje assiste-se à destruição, não menos perigosa, da psique humana.
Tive acesso a um texto pouco propagandeado, talvez por poder ser pouco entendido, de Denis La Borré, mas que está em harmonia com a chamada Tradição Universal, no qual se pode ler a reformulação da frase “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança” para “E todos os homens são à imagem de Deus, mas, eventualmente, também à sua semelhança”, ou seja, temos a imagem mas ainda não revelamos a semelhança; somos, segundo este autor, seres cujo Arquétipo divino está dentro do homem, entranhado mesmo, uma vez que esta é a sua realidade mais profunda não se encontrando nas particularidades naturais ou físicas (materialistas), na alma, na personalidade. A realidade mais profunda encontra-se “na imagem de Deus no homem”, “Antes da queda, o homem envergava uma vestimenta tecida por Deus. (…) Esta vestimenta psicossomática era tecida de luz, e da glória de Deus. (…) Essas túnicas de pele não são o invólucro dentro do qual a alma terá estado aprisionada, como se aprisiona um ser humano dentro de uma camisa de forças ou de um escafandro. Essas túnicas de pele não são uma imagem de um “corpo físico” dentro do qual a alma estaria encerrada e donde ela se libertaria à hora da morte. É necessário, antes de mais, concebê-las como um ser (compreendido como corpo e alma) de luz densificada, congelada, endurecida. Aquilo que constitui o homem “à imagem” é o corpo com a alma; não a alma sem o corpo e, ainda menos, o corpo sem a alma, mas o composto, sem separação de uma alma e de um corpo. O “à imagem” entende-se como a totalidade psicossomática do ser humano. As túnicas de pele exprimem a mortalidade com a qual o homem se revestiu depois da queda, como uma segunda natureza, a situação nova na qual ele se encontra, quer dizer, uma vida dentro da morte. Esta mortalidade abrange todo o organismo psicossomático do homem e não se limita ao corpo. Isto deve-se ao facto de as funções psíquicas serem, também, “tornadas” corporais, formando com o corpo, o ‘véu do coração’. (..) Essas túnicas de pele, oferecem-lhe a possibilidade de sobreviver, por algum tempo, no seio da própria morte, até recuperar, e mesmo ultrapassar essas vestimenta inicial.»
Este é, claro, o tema da deificação do homem, cujas raízes são tão antigas como o próprio homem (bem mais velho do que o homem-macaco de Darwin). Não vale a pena esquecer isto porque mais tarde ou mais cedo lembramo-nos. É um assunto ao qual se volta sempre porque está dentro de nós, mesmo que não saibamos o “como” dessa deificação, e na verdade, poucos sabem, e muitos se deixam abater no deserto procurando nele a totalidade. A deificação do homem é a arte final. O último toque da criação (conhecida, claro está, outras provavelmente haverá, desconhecidas), a mais difícil. Mas tudo começa, na arte, pela manutenção, pela sábia manutenção que vai ascendendo a esferas superiores. Se, para a Tradição a verdade se situa para além do Bem e do Mal, a esfera artística situa-se para além da criação e da destruição. Verdade e Perfeição carecem de opostos na sua busca mas transcendem-nos no final.

As citações nunca estão sós, porque alguém as cita. Verdade de La Palice. E os homens podem estar sós? Devem estar sós? Consegui-lo-ão? Mesmo em processos e caminhos angelicais, o corpo sendo um aglomerado de corpo e alma, indissociáveis, está condenado a estar em relação com os outros corpos. Mesmo não sendo seres humanos há sempre a companhia dos animas (insectos mesmo minúsculos, bactérias e ácaros), das rochas, das plantas: é inevitável, é o cenário que nos calhou em sorte. Ninguém marca uma reunião a sós com Deus, porque somos sempre nós e a nossa circunstância, para citar Ortega y Gasset.
Num tempo de excessos como este, é fácil pensar no silêncio auditivo, no silêncio visual, no silêncio dos pensamentos, na ausência estéril que se pensa fértil. Num mundo sujo sonha-se com a máxima limpeza, é natural. Mas há que distinguir espiritualidade de limpeza, são coisas diferentes e não obrigatoriamente concordantes: de velhos sujos e vagabundos da rua retiram-se lições. Quando estes desejos me parecem incontroláveis lembro-me sempre de um conto indiano no qual um peregrino da verdade, querendo ir sempre mais longe, até ao fim do universo, acaba por sair dele e, olhando para trás, vê que o universo é apenas um animal no qual tinha estado sempre encerrado, estendo-se o nada em frente a ele. O nada mesmo nada. O verdadeiro terror. O “queimar” desse fluxo ininterrupto de imagens (leia-se também sons, palavras, sensações, sentimentos, memórias, etc…) é apenas o início de um percurso. Em seguida, serão queimados resíduos persistentes de todas essas vivências (ou mortes porque ilusões) e essa aparente destruição desembocará em vida, em plenitude, num “cheio”, afinal, não no terror infernal do vazio, no nada, na morte.

Em suma, intui-se que o supérfluo é de facto essencial, porque é ele que nos conduz da simples manutenção à prática artística. O mesmo se passará connosco. O corpo é absolutamente essencial, matéria-prima do corpo de Glória. No oriente, os sábios -- um discípulo sem mestre não faz sentido e o inverso também não -- estão de alguma maneira ligados a uma arte, só assim conseguem a transparência que se espera num mestre: que o discípulo possa ver para além dele. Os processos artísticos em si são misteriosos, inquantificáveis, a solidão extrema, perigosa, isso nos mostram Cristo, Buda, afinal sempre próximos dos outros. Partilhando até o corpo…

terça-feira, 27 de abril de 2010

NO MÊS DE MAIO, EM SINTRA: EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA DE TIAGO SOBRAL CUNHA...


Inauguração. Estações - uma incerta memória do paraíso é o título da exposição de fotografia (clique na imagem para a ampliar) de Tiago Sobral Cunha, do círculo dos Cadernos, que será inaugurada no próximo dia 30 e estará patente ao público durante o mês de Maio na Vila Alda - Casa do Eléctrico de Sintra. A Serra de Sintra é o tema.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

AFORISMOS, 30

Eduardo Aroso

120 – Em verdade, o Filho do Homem não tinha «onde reclinar a cabeça». Pende também a alma portuguesa, sedenta no sufoco da incompreensão e sangrando na via-sacra da democracia que geneticamente se transmutou na horrenda plutocracia. Eis o sinistro: no cortejo não há oficiante; só o Povo, cabisbaixo, andando e gemendo, cumpre o servilismo de balbuciar a amarga oração de ter de dizer que é português.

A Sopa de Arroios, de Domingos António de Sequeira: clique na imagem para a ampliar

121 – Sair da noite mais longa, olhar claramente pela janela manuelina com olhos de horizonte, fitar o invisível de «todas as maneiras», como verdadeira Pessoa, atento ainda ao toque acariciado do vento, no místico contemplar do azul celeste, aura que nos envolve, e pelo marulhar nocturno escutar a ressonância de todos os tempos: o único salmo de redenção. Será este a dar sentido a toda a acção.

122 – Krísis -Tomando o sentido grego da palavra (distinção, escolha, decisão), entre nós não é só a crise da democracia, mas o epílogo de um ciclo iniciado com o Marquês de Pombal e que agora se esgotou. Ou continuamos a repetir os erros das 3 repúblicas que resolveram mal as crises dos finais da 4ª dinastia, ou nos emancipamos - decidindo de vez - e então começa a verdadeira República Portuguesa. A par do nascer do sol, comemoremos, pois, a liberdade em cada dia do ano, em cada gesto de ser português, o sentido de muitos dias do nosso existir, reclamando, culturalmente, a liberdade de não aceitar que se apague o que foi lentamente escrito no tempo, no nosso emaranhado mas fecundo tempo de ser Portugal. É que a escrita rápida, podendo ser útil, apresenta muitas desvantagens. E o que pensar da nossa geração quando canta aquela passagem do Hino Nacional «O esplendor de Portugal…»? É que podemos ficar com a nota encravada na garganta, a pensar que o esplendor não é o dos últimos tempos!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

NO PRÓXIMO SÁBADO, ÀS 15:00, NA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SESIMBRA


Lançamento. É já no próximo sábado, pelas 15 horas, que tem lugar o lançamento do livro Poemas da Montanha, uma recolha de poesias de Frei Agostinho da Cruz com prólogo de Dalila L. Pereira da Costa e a chancela da Serra d’Ossa. Integrado no ciclo Portugal Renascente (iniciativa conjunta dos Cadernos de Filosofia Extravagante e da Nova Águia, em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra), esta iniciativa irá decorrer na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra, estando a apresentação da obra a cargo de Luís Paixão, do círculo dos Cadernos.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

PARA VER

Registo. António Quadros evoca Fernando Pessoa, num documentário agora disponível na página consagrada à evocação do seu legado.

terça-feira, 20 de abril de 2010

AFORISMOS, 29

Eduardo Aroso


Ínclita Geração, escultura de Laureano Ribatua: foto tirada daqui

117 – O Estado e as universidades confundem-se: ambos tomam conta de tudo. O primeiro reconhece as pessoas essencialmente por pagamentos fiscais, possuindo também Serviços de Saúde Mental, abertos 24 horas por dia. No ensino, o que busca o conhecimento tem de justificar esse conhecimento, não através do próprio conhecimento, mas onde o foi buscar. Ambos são necessários; não desta maneira. Mas o Estado e as universidades que temos deveriam sentar-se frente a frente para decidir quando abrem falência de vez e não enganarem mais os trabalhadores da precária situação destas empresas.
118 – A Ínclita Geração foi traída pela corrupta geração; no país dos brandos costumes surgiram os viciosos costumes. Resta hoje a acção derradeira sobre o húmus do fim, oração última que seja a primeira que nos abra definitivamente o céu do espírito. Há vendilhões do templo, vendilhões da pátria, vendilhões de tudo. Porém, no deserto do mundo ninguém pode profanar a verbo fundador, a «intacta glória de Deus».
119 – Há guardadores de rebanhos, guardadores de pátrias e o Pastor de todas as nações.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

OS POETAS LUSÍADAS, 34


A NOSSA SENHORA DA ARRÁBIDA

Aqui, Senhora minha, onde soía
Cantar na minha leve mocidade
O muito que de Vossa saudade
Desejei de acender nesta alma fria;

Aqui torno outra vez, Virgem Maria,
Desenganado já, mais de verdade,
Pois me mostrou do mundo a falsidade,
Que a lágrimas comprei, quem me vendia.

Conselham-me tam claros desenganos
Que comece de novo nova vida
Nesta Serra deserta, alta e fragosa;

Mas são conselhos vãos, leves, humanos,
Que Vós nunca quisestes ser servida,
Se não por puro amor, Virgem fermosa.

Frei Agostinho da Cruz

quinta-feira, 15 de abril de 2010

AFORISMOS, 28

Eduardo Aroso

114 – Filhos que somos do Cosmos, chegaremos um dia ao ponto em que só poderemos nascer na Terra se o espírito se comprometer a amá-la?
115 – Estranho povo que ora se apressa a não querer ser actor de nenhuma colonização, para logo se deixar colonizar económica, social e culturalmente. Hoje os colonizadores elegem-se democraticamente.

116 - Se Portugal expulsou os judeus, acolheu muitos deles refugiados da 2ª Guerra Mundial; se teve inquisição, os republicanos de 1910 e outros, já antes, encarregaram-se de matar e saquear o que não pertencia ao Estado; nos últimos 36 anos de democracia, qualquer um que professe uma ideia contrária ao estado de coisas reinante (ou republicante) é, lentamente, queimado na indiferença institucional, no laicismo corporativista que elegeu o dinheiro como aperfeiçoamento das artes e ofícios. Não se enjeite, todavia, os actos, por certo contrários aos Actos dos Apóstolos, de D. Manuel I e D. João III. Do «Santo Ofício» passou-se ao actual Ideológico Suplício! Apesar de tudo, abolimos bem cedo a pena de morte, não dominamos militarmente o mundo nem lançamos bombas nucleares e também não fabricamos em laboratórios vírus para lançar epidemias. Por isso, devemos recusar o modelo de civilização forjado no dito “novo mundo”.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

DIA 24, EM SESIMBRA: POESIA DE FREI AGOSTINHO EM LIVRO DA SERRA D'OSSA

Lançamento. Integrado no ciclo Portugal Renascente (iniciativa conjunta dos Cadernos de Filosofia Extravagante e da Nova Águia, em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra), tem lugar no próximo dia 24 de Abril, sábado, pelas 15:00, na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra, o lançamento de Poemas da Montanha, recolha de poesias de Frei Agostinho da Cruz que conta com um prólogo de Dalila L. Pereira da Costa e tem a chancela da Serra d’Ossa. A apresentação da obra estará a cargo de Luís Paixão, do círculo dos Cadernos.

terça-feira, 13 de abril de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 56


Mondego
Eduardo Aroso

Ao João Tavares

Incerto caudal
Descendo o meu país.
Desliza em contra-cantos
Alheio à voz da raiz.
Águas livres no correr
Presas em tantas mágoas,
As que Camões bem sabia
Que viriam a nascer…
Da serra mais alta
Vem até à cidade
Que lhe canta sempre
Sob a lua pasmada.
A guitarra soa
Ainda sonhada.
A única saudade
Que leva até ao mar
É a da lição adiada
Das rosas por estudar…

Janeiro de 2010

segunda-feira, 12 de abril de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 55

O Plutocrata – uma fábula dramática*
Joaquim Domingues

Um esferóide cabisbaixo, desenhado por Nuno Cavaco, enquadrado pelo fundo negro, ilustra o título O Plutocrata, de Ernesto Palma, reeditado pela Serra d’Ossa nos finais de 2009. O cariz ficcional do livro insinua-se desde a Dedicatória: «Ao Orlando Vitorino, quem me obrigou a escrever o que neste livro se diz». Com efeito, uma Nota editorial esclarece não ter sido Ernesto Palma quem escreveu o texto ora publicado, resultante dos apontamentos elaborados pelos amigos que o acompanhavam na sua tertúlia.
A transposição de planos marca aliás toda a trama do volume que, em lugar dos plutocratas, tem antes por objecto a plutocracia, visto aqueles, segundo alega, terem o condão de se manterem incógnitos. Bem conhecidos são os argentários, detentores de muito dinheiro e cujo único fito consiste em arrecadar mais; enquanto os plutocratas, esses, apenas manipulam o capital disponível no mercado, sem fins crematísticos. Deles, porém, só um nome logrou ficar na história: o de Mendizabel ou Mendizábal, o protagonista de uma das célebres novelas de Benito Pérez Galdós!
A arte de Ernesto Palma, como a de Talma, consiste em efabular, ou seja, configurar em narrativa de feição exemplar um lema ou problema que, de abstracto, assume o relevo e o dramatismo duma realidade vivida. Assim nos faz aparecer o plutocrata, como o motor oculto duma situação política, económica e cultural em que o poder se esforça por bloquear a normal dinâmica da sociedade humana. Deixando à nossa perspicácia a questão de saber quais as verdadeiras razões de tal procedimento, cujo efeito mais notório seria o de salvaguardar o ascendente de certas famílias.
Os exemplos referidos ao longo da exposição parecem abonar a tese da natureza ilusória, da vacuidade e insubsistência das vicissitudes por que passou o País nos últimos decénios. Do alegado combate ao capitalismo, que campearia até 1974, veio a resultar, afinal, o reforço dele, patenteado na estreita aliança entre os detentores do dinheiro e os que, em nome dos trabalhadores, dos explorados, ou seja, do socialismo, capturaram os postos cimeiros da estrutura política adrede montada. Contudo, o acumular dos exemplos, por mais convincente que pareça, não garante o rigor da indução, como sabe quem estudou a lógica elementar.
O paradoxo esclarece-se quando atentamos na tese platónica de que «só a ideia é real, só o pensamento a concebe» (p. 44). Assim se compreende que, tal como sucedera em 1910, o que aconteceu em 1974 fosse a necessária consequência da doutrinação difundida pelos meios intelectuais, mormente universitários, atribuindo às condições materiais, sobretudo de carácter económico, a razão determinante da organização social e dos movimentos históricos. Com efeito, o pensamento comum aos que prepararam o golpe militar, aos que desmantelaram as instituições públicas e aos que, ocupando agora as que lhes sucederam, pretendem decidir do nosso destino, resume-se no lema: o dinheiro é a mola real das sociedades humanas!
Aceite o pressuposto de que a realidade está nas ideias, sejam elas materialistas, como acontece nas presentes circunstâncias, Ernesto Palma pode despedir o protagonista, que sai de cena para que o drama prossiga noutro nível. No segundo acto ou momento do discurso, em vez de se voltar para o passado, a reflexão assume carácter prospectivo, a fim de sondar as presumíveis características do futuro próximo. Como resulta do antecedente, elas hão-de ser necessariamente as resultantes das ideias dominantes na sequência do materialismo dialéctico.
Com notável argúcia, o mestre conduz a dedução cronológica dos sistemas filosóficos até à conclusão vitoriosa de que, quando acabar por impor-se a mais pasmosa indiferença, chegará o momento que «põe fim à época em que só é real o espectáculo e anuncia a época em que só o vazio é real» (p. 66). No contexto de tão radical niilismo até a morte deixará de ser pensada, eliminando-se a derradeira oportunidade da redenção pessoal, para quem enfrenta essa situação-limite. Suspenso o drama neste ponto, é digno de nota que a ele nos reconduza o Preâmbulo de Elísio Gala, o qual se há-de justamente valorizar como a reflexão actual de um discípulo de Ernesto Palma acerca da lição magistral.
O especial contributo desse prelúdio reside na abertura para um terceiro acto, esse de carácter vincadamente religioso, conducente a que possam esperar enfim a libertação quantos professam as virtudes teologais. Digamos que, após o primeiro momento, histórico ou positivo, e o segundo, especulativo ou metafísico, se ascende ao momento religioso ou teológico; denunciado o absurdo da regressão positivista, que conduzira a alma até à beira do abismo, aponta-se-lhe o efeito libertador da abertura à transcendência. A deixa para essa mudança do cenário achou-a Elísio Gala na conhecida asserção de Ernesto Palma de que «o cristianismo é a única religião verdadeira» (p. 43).
A singularidade da passagem advém, a meu juízo, do privilégio atribuído ao platonismo, cuja doutrina, segundo o pensador dramático, o cristianismo «confirma e consagra»! O que conflitua o seu tanto com a afirmação de ser o cristianismo «a única religião em que, com a encarnação, a divindade é plenamente real». Na verdade, se «a encarnação da divindade religa o sensível e o inteligível», a inferência a retirar haveria de ser quiçá a inversa – a de que o cristianismo salva a realidade do mundo, pela presença viva do Redentor.
A pendência não pode, contudo, resolver-se em termos meramente racionais, nos limites da lógica formal, pelo que o drama aguarda o desenlace noutro palco. Aliás, com ascender ao plano religioso, ele deixa de ser representável, pois se apresenta como drama ritual, vivido, como acto de redenção. A possibilidade do Reino de Deus, que a encarnação de Cristo tornou real e mesmo efectiva (visto ele estar já no meio de nós, invisível embora), aboliria até o domínio profano se, por um mistério indecifrável, o Calvário não estivesse por consumar ainda. Porque nos coloca diante de tão transcendentes questões, a reedição de O Plutocrata merece ser saudada como sinal esperançoso duma tradição que se renova.
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* Publicado originalmente no suplemento "Cultura" da edição de 10 de Março de 2010 do Diário do Minho.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

FREI AGOSTINHO E A ARRÁBIDA, 3*



Mas que em Fr. Agostinho, ainda para além do seu franciscanismo estrutural, no cerne de sua teologia e mística, se possa ver uma longínqua influência do neoplatonismo, comum a toda a origem da mística ocidental, uma recorrência ou convergência, duma mesma tipologia, será possibilitada pelo paralelismo entre os três aspectos de Deus, como Incondicionado Absoluto, Logos e Alma do Mundo, própria dessa filosofia; e a que estará no fundo de sua poesia mística. A Alma do Mundo, que é também Absoluto, é aqui representada no seu catolicismo, ortodoxamente pela Nossa Senhora, num esquema teológico onde actua com o Pai, Filho e Espírito Santo. Ligando-se o infinito ao finito através da figura sagrada da Virgem, aqui particularmente exaltada, e não através de diversos graus de emanação; se ousará dizer que o neoplatonismo, e mesmo o gnosticismo, foi substituído pelo catolicismo de feição franciscana, o pensamento português tendo eleito este, que vê na criatura semelhança ou imagem de Deus: e a Deus conduzindo; e na Virgem, a mediadora entre Deus e os homens, entre Deus e a Natureza. Pois será pela Virgem que esta união derradeira do transcendente e do imanente, característica da espiritualidade portuguesa, se estabelece em termos teológicos, e ainda místicos. A Natureza natural passando a Natureza divinizada, por graça: assim como o próprio poeta místico, pela purgação e iluminação através da terra portuguesa, topograficamente marcada, indo do norte a sul, passou pela graça, de homem natural a homem espiritual. Se aqui, o cargo desta sublimação duma natureza natural, seria incumbido eleitamente à Nossa Senhora da Assunção, na Arrábida, mais tarde, quatro séculos depois, no Porto, a redenção dessa natureza seria dada completar-se pelo homem, tal como o anunciou, fora, ou contra esses tempos de agnosticismo e positivismo, um filósofo, Bruno: como atingimento da perfeita harmonia perdida, na total abolição do Mal, ou atingimento do homogéneo. Esse sistema antropocósmico, seria ainda como a representação moderna, do cerne de toda a problemática espiritual portuguesa de todos os tempos; e aqui, tanto no franciscano eremita da Arrábida, como no filósofo portuense do Bonjardim, um mesmo carácter místico e teológico haverá no fundo de suas obras: como relação de semelhança entre o macrocosmos e o microcosmos, o divino e o humano, possibilitando a redenção: dois opostos que assim se influenciam mutuamente, em interacção possível.
Depois desta peregrinação penitencial, nesta serra, como lugar-limite, se realizará essa regeneração do homem e da natureza, assumida por um franciscano português, como reapossessão do ser e estar paradisíaco. Longo processo, desde a via purgativa, através da contemplativa, até às portas da unitiva, como pureza primordial e final.
Mas a força, ou matriz donde tudo nasce, primeiro e último passo da salvação, como amor e liberdade total, virá sempre da saudade. «Nasci para lavrar na terra alheia / Terra de maldição, de Deus maldita / De cardos, e de espinhos sempre cheia (…) Mas pois a verdadeira liberdade / Depende de trazer o pensamento / Aceso na divina saudade; / De tudo o que me for impedimento / Para poder lograr bem tamanho / Determino fazer apartamento» (Écloga VI).
Que o eremita se sentiu aqui perante Deus, responsável da salvação dos homens e da natureza, assumindo um serviço no seu mais alto sentido, o dirão estes versos. Serviço humano, sacrificial, de redenção cósmica, em que o eremita será só um puro instrumento terrestre nas mãos de Deus e seus desígnios: agindo sem agir, querendo sem querer, pela acção a mais perfeita, que é o mais perfeito abandono da vontade, como obediência, porque seu ser já então consumado, está coincidente com o ser divino: e é este, só este, que nele age e quer: «Ele lavra, ele rega, ele semeia / Eu colho quando quero a sementeira.» Influxo, acção e aceitação da graça, por graça, no homem: ao que também se poderá aqui chamar a confissão de Fr. Agostinho da Cruz do seu antipelagianismo, como uma das recorrentes, e sempre actuantes, recusas da terra lusitana.

Arrábida, serra alta e última da Europa e Ásia, sobre o Mar Atlântico debruçada: lugar eleito para a ascese de transmutação terrestre e humana, levando-os desde a esterilidade dos cardos e espinhos, até às alvas flores da glória. E ascese que será feita aqui nesta serra, como em reflexo das imagens paradigmáticas que no seu convento estão colocadas às entradas de seus sucessivos pátios e na sua porta principal: eram elas que outrora acolhiam os frades capuchinhos e agiam sobre sua alma; e que agora ainda estão perante nossos olhos desatentos: S. Pedro de Alcântara, Santa Maria Madalena e S. Francisco, ou o monge de S. Francisco.
Sucessivos pátios e uma porta que por si, um a um, marcariam nesse convento, como outros tantos ritos de passagem ou metamorfose, cada qual com sua imagem condutora. Porque, todo o convento é construído sob o esquema do labirinto, para uma iniciação ou santidade: ambos caminhos visando a um mesmo fim. Contínuo e descontínuo, cortado por passagens abruptas, ele se irá suavemente abrindo e recusando à penetração de nossos passos: lenta e sincopadamente, sua estrutura ou espaço será, não homogéneo, mas heterogéneo, cortado por várias suspensões, tal a realidade do mundo e da alma: passagens abruptas, marcando como as necessárias e sucessivas iluminações, ou tentações, porque tem de passar a alma do iniciado ou santo, como suas provas, para atingir a suprema sabedoria, a do amor.
E neste percurso, sucessivos espaços, trechos, serão construídos, ora às claras, a céu aberto, ora na sombra, em subterrâneos. Num deles, estará um azulejo com a imagem de Fr. Agostinho da Cruz, no seu capucho agudo em bico de pássaro e seu semblante de sorriso fagueiro, tal o que possuiu na sua vida terrestre neste convento.
Porque todo o convento é construído unidamente, em abraço com a terra. Em comunhão de amor, a serra penetrará todo o convento, estará aí presente entre suas paredes, em rochas vivas, das suas vertentes intocadas, suas plantas diversas surgindo espontâneas em recantos floridos; intrincadamente com sua água, que brota secreta e casta em pequenas fontes e taças ornadas de seixos e conchinhas do mar. Porque aqui ainda, lusiadamente, este labirinto será, não fechado sobre si, mas aberto, porque construído sob o signo da espiral; não fechado, acabado em si, irredutível, mas sobre si, uma e outra vez retornando, sempre novo: dinamicamente de si e por si, inexaurível criando sempre novos ciclos, ou planos superiores de manifestação, como revelações do divino no humano e terrestre. Erguendo-se sobre o abismo do mar, sustentado na vertente da serra, como regaço maternal, sob o céu, face a ele, todo o convento em si concentrará a força da terra e do céu: e será esse nó de energia, fortíssimo, terrível, mas todo em doçura revelado, de que os frades capuchinhos habitando outrora nesse convento teriam partilhado: a que seriam chamados a partilhar, como em apelo de acção e contemplação, presente e actual.
Este convento se mostrando todo como uma concentração da energia espiritual na terra portuguesa, das mais altas. Tal como Alcobaça, Tomar, Sintra, Sagres, Guimarães, Lisboa, Fátima. Um ponto marcado e eleito no seu espaço corpóreo, para uma acção do espírito. E será como concentração dessa energia, aí aceite e usada pelos homens, baixada e doada do céu, que o convento ainda hoje nos surge: e deverá surgir a nossos olhos e corações. E Fr. Agostinho da Cruz, como um dos seus eremitas eleitos para aceitar em si e em si usar e levar até aos limites possíveis do humano, essa energia do divino.

Dalila Pereira da Costa
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* Título da responsabilidade do editor. O presente texto reproduz um excerto (pp. 246-257) de Místicos Portugueses do Século XVI, livro publicado pela autora em 1986, com a chancela da Livraria Chardron de Lello & Irmão – Editores, Porto.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

AFORISMOS, 27

Eduardo Aroso

111 – «Onde a terra se acaba e o mar começa». Lido num sentido que não seja apenas o da geografia, poderá ser o lugar feito outro tempo. Se aqui é finisterra da Europa, o seu «quase cume da cabeça» e sendo Portugal a coroa do velho continente, no desenho do alemão Heinrich Bünting (séc. XVI), o que está acima (além) da coroa já não é corpo, mas espaço-espírito ou as Indias Espirituais. Além da terra, ou «onde a terra se acaba» é o mesmo que dizer além da carne.

mapa de Heinrich Bünting: clique na imagem para a ampliar

112 – A força do invisível sobre o visível, o templo de Apolo na Grécia Antiga e os partidos políticos e outras agremiações de agora: num, ombreava o pórtico a vetusta e alentadora frase Conhece-te a ti mesmo; nos outros parece haver uma invisível e silenciosa advertência - Aqui deixas de pensar por ti, e assim nunca a ti nem a outros conhecerás!

113 – Se Pascoaes nos diz de onde viemos, Pessoa indica-nos para onde vamos. Apesar da aparente direcção contrária, os dois participam no único movimento, aglutinando passado e futuro, convergindo para a mesma realização. Pascoaes, poeta das Sombras, nunca poderia sê-lo antes de D. Sebastião, quando mergulhámos numa obscuridade subjectiva. Pessoa só poderia existir depois da decadência da última dinastia, a dos vários monarcas que já nem sabiam andar a cavalo, e de uma república que violenta e rapidamente expurgou o melhor do espírito português.

Quando um objecto se interpõe no caminho da luz, projecta uma sombra directamente proporcional à intensidade da fonte luminosa. Se o poeta de Amarante é o bardo da saudosa mas prometedora ausência, o vate do «mar salgado» é o profeta de um futuro que realizará o inconcluso passado.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

FREI AGOSTINHO E A ARRÁBIDA, 2*

Neste longo percurso, três rios da terra portuguesa foram abandonados e no fim, eleita uma sua serra, para o atingimento último: ver a Deus. Mas vê-se franciscanamente, através da criatura, da natureza: «Agora que de todo despedido / Nesta serra da Arrábida me vejo / De tudo, quanto mal tinha entendido, / Com mais quietação, livre desejo / Nela quero cavar a sepultura, / Que não junto do Lima nem do Tejo. / Aqui com mais suave compostura / Menos contradição, mais clara vista / Verei o Criador na criatura.» (Elegia VI, Estando na Arrábida). É como se ouvíssemos S. Boaventura, o santo franciscano, «As criaturas podem ser consideradas ou como coisas ou como sinais»; como sinais que nos levam a Deus, as considerou o Santo, e o poeta místico da Arrábida:

Quanto mais formosa for
A coisa que podes ver,
Verás que não pode ser
Sem ser mais o Criador:
Se vires lírios, e rosas,
O Sol, a Lua, as estrelas
Busca no Criador delas
Outras muito mais formosas
Cântico de amor, elevado por um filho de S. Francisco à natureza, ela imagem e caminho de Deus.
E sempre, o poeta místico rememorará o que foi essa longa peregrinação através do corpo da terra pátria, realizada conjuntamente com seu próprio ser, como caminho de ascese e assunção, passagem do profano ao sagrado. «Que campos, que montanhas / Passei, subi com vossa ajuda / Por terras naturais, e por estranhas / Oh! como se converte, rende e muda / Aquela alma ditosa que trespassa / De amor celestial a seta aguda! / Quão leve, quão ligeira, voa e passa / Pelos laços sutis da vida humana; / E como na divina se compassa! / Na doce perenal fonte que nos largos campos se passeia / Subindo nesta Serra se caminha / Atalhando o que nele se rodeia.» Centro final, como ponto de união entre mundos. Assim se diz nas Endechas:

Vamos ver da Serra,
Do monte deserto
O Céu mais de perto
De mais longe a terra.
Até à proximidade das estrelas:
Oh, Serra das estrelas tão vizinha,
Quem nunca de ti, Serra, se apartara?
Oh, quando se partira esta alma minha
Da terra, nesta tua se enterrara?
E, tal como noutro percurso de iniciação ou transfiguração, o da Divina Comédia, a transcensão de cada mundo sucessivo, será cantada como uma progressiva aproximação das estrelas: de ver, subir até elas.
Esta serra, como estado-limite na geografia interior do homem, assim como na geografia exterior duma Nação e dum Continente, o Eurásico, anímica e simbolicamente, física e concretamente, em união, Fr. Agostinho da Cruz a intuiu e utilizou, dela se apossou para sua obra de redenção.
As grandes peregrinações medievais do Ocidente, como procura pelo homem dum Centro, para transmutar seu ser humano no sagrado, terão tido nesta obra, como vida e poesia do eremita da Arrábida, nos séculos XVI-XVII, uma das suas derradeiras formas de expressão e realização, através do espaço terrestre: e que será específica e concretamente situada numa serra portuguesa, como finisterra dum Continente, debruçada sobre as águas do Atlântico, em marca e limite inultrapassável duma demanda. Assim diz na Écloga Piscatória XI:
Eu dali me parti naquele instante,
De vale em vale, vim de monte em monte,
Até não poder mais passar avante:
Que as águas Oceanas não têm ponte.

E neste limite da terra, se perguntará a si o eremita: «Aquela saudade que me manda / Lágrimas derramar em toda a parte, / Que fará nesta saudosa e branda?» Como serra da saudade, ela se revelará, a um tempo como manifestação suprema dos opostos cósmicos e seu ponto de reunião. «Daqui saudoso o sol se parte; / Daqui muito mais claro, mais dourado / Pelos montes, nascendo, se reparte.» Desde o alto céu, até às profundezas ctónicas, desde o princípio mundial masculino activo, criador, Sol, até ao princípio feminino, passivo, Gaia, ou útero primordial, tudo se unirá e fecundará entre si e se revelará: «Mas ouço queixar dentro a Lapa escura / Roídas as entranhas aparecem / Daquela rouca voz que lá murmura.» Foi esta voz, a mais tenebrosa e abissal do telúrico primeiro, não-manifestado, aquela a que Fr. Agostinho da Cruz, pelo verbo, deu forma manifestada; ele aqui seria como uma das suas mais altas e raras expressões, a voz da Terra-mãe. Que desde as profundezas primitivas dessa gruta, se eleva, redimida em Assunção, na Nossa Senhora da Arrábida.
E ainda como nunca, seria expressada na nossa espiritualidade, na língua religiosa cósmica, mais funda e nitidamente, a sua raiz mítica de complementaridade: como díade. Será esse o sentido mais alto da Elegia II, Da Arrábida. Foi esta serra, como lugar de ligação entre terra e céu, a que no solo português estava predestinada à manifestação da Montanha Sagrada; e Fr. Agostinho da Cruz, como poeta franciscano, predestinado a ser o instrumento necessário a esta manifestação religiosa cósmica, na sua primeira e verdadeira forma: a poesia mítica.
(continua)
Dalila Pereira da Costa
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* excerto retirado de Místicos Portugueses do Século XVI, livro publicado pela autora em 1986, com a chancela da Livraria Chardron de Lello & Irmão – Editores, Porto.

terça-feira, 6 de abril de 2010

PENSANDO À BOLINA, 28

Pedro Sinde


para L.

Orar
Orar é como trilhar um caminho que vai de nossa casa ao palácio do Rei.
Quando começamos a caminhar custa-nos um pouco e podemos até desistir a meio, fatigados e sem o palácio à vista, julgando mesmo que nem há palácio nem Rei.
A dificuldade é dupla: por um lado, nós mesmos, por falta de hábito de caminhar, ficamos cansados e tendemos a parar ou a regressar ao nosso lugar anterior; por outro lado, o próprio caminho, por não ser trilhado, está cheio de silvas e ervas daninhas que nos dificultam a passagem.
Um e outro problemas resolvem-se do mesmo modo: pondo-nos a caminho do palácio do Rei e recomeçando sempre com o mesmo entusiasmo. Gradualmente, será mais fácil; passará a ser-nos familiar o trilho e não mais estranho: por um lado, conhecendo o caminho já não nos distrairemos com a paisagem, por outro, ainda, conhecendo o caminho, sabendo como lá chegar, podemos atentar melhor ao que nos rodeia sem que isso nos faça perder. Mas o palácio é tão magnífico e a presença do rei é tão majestosa que rapidamente deixaremos de poder prescindir dela. Isso nos fará passar a procurá-la no Seu Reino, enquanto Ele não nos receber no Seu palácio com a frequência com que nós desejaríamos. É que só há Reino porque há Rei: um Reino sem Rei, não é um Reino, é apenas uma terra e, por isso, se soubermos andar, encontraremos por todo o lado os Seus Sinais.

Mas Deus sabe mais!

segunda-feira, 5 de abril de 2010

FREI AGOSTINHO E A ARRÁBIDA, 1*

Aqui, «nesta final praia oceana» – em caminho de penitência, através de três rios e duas serras portuguesas, se realizará por Fr. Agostinho da Cruz (1540-14-III-1619), a regeneração de seu corpo mortal. Esse começo dum percurso numa terra-mãe e suas etapas, o dirá na sua poesia: «Na ribeira do Lima fui nascido / Na do Mondego e Tejo fui criado / E na serra em que vivo envelhecido, / Onde esperando estou o desejado fim de meus longos anos.» Até esse dia, em que «os correios da morte são chegados / Por caminhos antigos, impedidos».
Homem e terra saudosos do céu, ambos através do eremita franciscano, em seu corpo e alma, realizarão um lento despojamento e uma assunção, como processo que se faz no interior da alma, fora do tempo e espaço, mas que, simultaneamente, se faz no corpo dum homem e duma terra, a portuguesa: deste despojamento de ambos, serão as marcas deixadas na sua poesia. «Alheio do passado e do presente / Sem lhe dar do que vai, nem do que vem / Quieto, vive só, livre e contente, / Com plantas e com feras conversando, / Não conversando amigo, nem parente.» Despojamento do mundo e dos homens; e nestes, para além da grande e fiel amizade dos Duques de Aveiro; amizade que o acompanharia através de toda a vida sobre a terra, até ao seu último momento, em Setúbal, mas que em presença, teria de ser abandonada, para a procura suprema doutra suprema presença, a de Deus. «Nestes campos do Tejo onde cheguei / Achei graça, bom rosto e gasalhado» (Carta À Duquesa de Aveiro).
Deixando o efémero pelo eterno, «Largos campos do Tejo, / A cuja vista crescem / Tristes queixumes de cruéis lembranças; / As flores que em vós vejo, / Alegres me entristecem / Por ver que são sujeitas a mudanças» (Ode I. As mudanças do tempo): será a verdade só, para além da aparência dos fenómenos, aquela que o poeta procurará neste percurso através dos rios e das serras, até ao limite duma terra pátria e dum eu exterior, como serra a pique sobre o Atlântico e fundo de sua alma.
As terras de sua infância e mocidade, como as zonas desse eu exterior, serão abandonadas. «As ribeiras não são para pastores / Cujas palavras mostram as entranhas / Cujos olhos não vêem fingidas cores» (Écloga IV). Um ser especial da terra com seu reflexo no homem, ser feito de carnalidade, doce plétora, como etapa ou camada duma phisys, urge ultrapassar no exterior, quando em si o homem já a ultrapassou no interior: «Pelo menos sequer, não me faltará / Saber que da ribeira me convinha / Fugir, pois para mim já se secara.»
E nessa subida, deixa as ribeiras húmidas, antes de atingir a serra alta, solitária e fragosa suprema, a da Arrábida: «Deixei (que mais não pude) / A branda Serra / Que para brandos peitos se criou / Quem com duros a dana, inda mais erra»; assim o poeta confirma essa fugida de Sintra e essa procura da Arrábida, na Carta que o Autor escreveu à Duquesa de Aveiro antes de se ir para o Ermo.
A natureza essencialmente feminina dessa serra primeira, lunar, líquida, enleante, não possuiria em si a possibilidade de transcensão do terrestre e do humano; ou de sua junção com o celeste e o divino solar, ígneo, activo e masculino, que só a segunda serra deste percurso de santidade, em si possuiria e concederia ao eremita de S. Francisco. Por isso, será para ela que a saudade o conduzirá. Depois de curta estadia, com o cargo de guardiania, no Convento de S. José de Ribamar, parte aos 65, em 1605, para o ermo da Arrábida, com licença de seu Provincial: «Que posto que de mim absente estejas / Daqui te levarei por esta Serra / Por parte donde o céu mais perto vejas.» E desde então, tudo será vivido como um regresso ao centro, primeiro e último: regresso ao Paraíso. Assim o canta A Nossa Senhora da Arrábida:
«Aqui, Senhora minha, onde soía / Cantar na minha leve mocidade / O muito que de vossa saudade / Desejei d’acender nesta alma fria: / Aqui torno outra vez, Virgem Maria (…) Conselham-me tão claros desenganos / Que comece de novo nova vida / Neste Serra deserta, alta e fragosa.» E toda a subida e chegada às portas do céu, se fará por essa força da saudade, como força de união de opostos: opostos só aparentes, pois em si complementares verdadeiros: «A saudade d’alma a vós devida / De vós, Senhora minha, se sustenta (…) Servir-vos é viver suave vida / Doce, quieta, branda, livre, isenta.» Este é o louvor cantado À Senhora da Memória, aquele que realiza o regresso a Deus, ou centro, onde todos esses opostos se anulam, ou unem na identidade primordial:

No meio desta Serra onde se cria
Aquela saudade d’alma pura,
Que no duro penedo acha brandura
Ardente fogo dentro n’água fria.

(Na Serra da Arrábida)

Atingido o centro, ou o Ser, tudo o mais que se poderia prender, agarrar ao ser do eremita, impedindo-o nesta subida suprema, será largado, abandonado: «Nem ter, nem valer, mais me faz cobiça / Tanto me dá que vá, com o que venha / Por mais que este me assopre, estoutro atiça» (Écloga VII). Apatia última, estado de libertação, impassibilidade, neste despojamento e domínio supremo de si mesmo.
Falando de sobriedade, Philoteu o Sinaita, monge do mosteiro de Batos, no seu texto inserto na Filocalia, dirá: «pois que ela trabalha e lustra os traços de nosso espírito e o faz passar da condição apaixonada à impassibilidade.» Onde mesmo, para além dos bens materiais, os espirituais não serão também desejados, assim como representações, iluminações. E o capuchinho da Arrábida: «O que dos vícios d’alma anda cingido / Como néscio responde, que também / S’há-de salvar calçado, e mais vestido / Bem pode ser que seja; mas porém / O que mais leve vai, melhor caminha / E mais pode inda mais passar além.» Livre, supremamente livre de todos e de tudo o mais, humano e mundano, tão leve que só o silêncio final perdurará. O dirá na Écloga Piscatória XI:
O pescador debaixo do seu leito
Depois que deita ferro no remanso,
Manso discurso faz no manso peito.
O silêncio lhe dobra seu descanso;
O pouco que deseja não lhe faz
Cobiçar melhor sorte em melhor lanço.
Os seus dois remos rema em sua paz,
Que não deixa nas mãos do companheiro,
Que deles mais que dela foi capaz.
Recolhe-se em qualquer pequeno esteiro;
Que pouca água demanda o barco leve
Que levemente leva um só remeiro.
Nessa paz e silêncio já celestes, da vida solitária e ascética, liberdade divina, como vitória atingida e concedida, em graça, tudo será uma redenção do homem, solidária com a redenção da natureza: o eremita atingindo a paz e a serra atingindo a brancura, como estado ou cor primeira e última, de iniciação; ou escatologicamente, como marca da Idade de Ouro; paz e brancura, vivida e revestida pelos santos e mistos. «Dos males, que passei no povoado, / Fugi para esta serra erma e deserta, (…) Passou a furiosa tempestade, / Ouve-se a voz da rola em nossa terra, / Soando com mais suavidade / Cobriu-se d’alvas flores toda a Serra / A minha alma de doce saudade, / Em paz me fez amor divina guerra» (Ao Mesmo – Da quietação).
(continua)
Dalila Pereira da Costa
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* excerto retirado de Místicos Portugueses do Século XVI, livro publicado pela autora em 1986, com a chancela da Livraria Chardron de Lello & Irmão – Editores, Porto.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 20


[Álvaro Ribeiro, a cultura e o Estado - 2]

“Está no evolucionismo a legitimação filosófica não só da pedagogia – etimologicamente, do poder que o adulto exerce sobre o adolescente, quando o leva a frequentar a escola –, mas ainda de todo o ensino público, exercido pelo Estado para defender, conservar e propagar a tradição nacional. A licença concedida à iniciativa particular de promover a educação, licença tão limitada como legítima, não satisfaz plenamente os fins superiores da sociedade humana. A iniciativa particular resvala quase sempre para o plano do utilitarismo, do egoísmo e da avareza, conforme verificam os doutrinadores que preconizam a exemplaridade normativa do Estado, sem a qual a sociedade desistiria de realizar os valores supremos que são a Bondade, a Beleza e a Verdade.
Ao assumir de qualquer modo a responsabilidade docente, o Estado torna-se também responsável pelo destino da cultura, pela realização de fins espirituais. Cumpre-lhe, pois, assegurar a protecção devida aos artistas, aos escritores e aos pensadores, que são os verdadeiros criadores da cultura, evitar que eles desistam de exercer as actividades a que haviam sido chamados por vocação, assegurar a continuidade na produção de valores nacionais. A História julga o Estado, não só pela boa ou má administração das escolas, mas também pela situação social em cada época atribuída à ciência, à literatura e à filosofia.”
Álvaro Ribeiro
(excerto retirado de A Razão Animada, INCM, 2009)