
António Carlos Carvalho
João Villaret subiu ao céu dos actores há 50 anos, no dia 21 de Janeiro de 1961. Meia hora antes de morrer dizia a Vasco Morgado: «Ainda havemos de montar grandes espectáculos». No seu último teatro, o Monumental (também ele desaparecido, para nossa vergonha), nessa noite já não se representou o último quadro de «Boa Noite Betina»: Paulo Renato anunciou a morte de João Villaret e pediu que se substituíssem os aplausos no final por um minuto de silêncio em memória do «maior actor do teatro português».
O corpo do artista foi para a Basílica da Estrela, onde os muitos que lá foram prestar a última homenagem se admiravam por ver o actor de cabelos brancos -- tinha-os pintado dessa cor para criar a personagem principal de «A Raça», o filme de Augusto Fraga que já não teve tempo de fazer… O funeral saiu dali para o talhão dos artistas do Cemitério dos Prazeres, acompanhado por uma multidão de vinte mil pessoas. «No enterro, não se ouvia uma mosca, tal era o respeito que lhe tinham», segundo o testemunho de Rui de Carvalho. Nessa época ainda não havia esse bárbaro costume dos nossos dias, de se bater palmas nos enterros, certamente aplaudindo o eficiente trabalho do Anjo da Morte…
Palmas, e muitas, recebeu-as João Villaret em vida, como lhe era devido, nos palcos dos teatros D. Maria II, Trindade, São Luís, Avenida, Variedades, Tivoli, Monumental, em Lisboa, mas também nos teatros do Porto e de muitos outros lugares do país, incluindo Madeira e Açores, e também Angola, Moçambique e S. Tomé, e ainda no Brasil e na Argentina. A todos esses lugares levou a presença da língua portuguesa sob as formas do teatro e da poesia -- a poesia que ele dizia como mais ninguém, antes ou depois dele. (José Régio confessou uma vez, depois de o ouvir no teatro Sá da Bandeira, no Porto: «Eu não sabia que era assim a minha “Toada de Portalegre”…»)
Ao longo de trinta anos, disse cerca de trezentos poemas, de cento e quarenta autores, sobretudo portugueses, mas também brasileiros e alguns franceses. A sua preferência ia para Fernando Pessoa , António Botto (que lhe apresentou o próprio Pessoa), José Régio, Mário de Sá Carneiro, Camões, Florbela Espanca, Camilo Pessanha, Carlos Queirós, Miguel Torga.
E para aqueles que não o ouviram, ao vivo, nos seus muitos recitais de poesia por todo o País (incluindo a Penitenciária de Lisboa, para os presos, numa noite de Natal), Villaret ofereceu-lhes depois poesia dita em directo na televisão, a partir do final de 1957 e até 1960. Para muitos de nós (eu era então um miúdo mas jamais me esquecerei desses momentos de espanto), era a revelação da força da palavra poética (mas também da arte de contar histórias) trazida para dentro das nossas casas, interpelando-nos directamente, pessoalmente.
Um homem diante de uma câmara, sentado ao lado de uma mesa com papéis, livros e um telefone, como se estivesse no escritório de sua casa. «Boa noite, senhores telespectadores», dizia Villaret, de óculos na mão, que usava para ler um ou outro texto maior, e que pousava para dizer um poema ou para nos contar uma história carregada de ironia ou de ternura. A maior simplicidade, que hoje nos parece impossível, para verdadeiros momentos de magia em televisão (bem longe da actual noção de «entretenimento»). Quando dizia (interpretava) um poema, a câmara focava-o de perto, com um halo luminoso a iluminá-lo por cima, o seu rosto enchia o ecrã -- e nós ficávamos ali, presos ao encantamento das suas palavras, ou das palavras de outros que tornava suas e nossas… desejando que nunca acabassem.
Retomando tradições muito antigas, Villaret lembrava-nos, de uma maneira exemplar, que a poesia existe para ser dita ou cantada, não apenas para se ler em livros…
Poesia viva, interpretada intensamente, apaixonadamente, arrebatadamente -- arrebatando-nos com ela.
Hoje, ao fim da tarde, no programa «Portugal em Directo», a RTP1 presta-lhe a merecida homenagem. Seria bom que também retirasse daí a lição óbvia: a de que é possível fazer outro tipo de televisão num país de invejosos que ainda não aprendeu o que significa genuína admiração -- uma árvore delicada que precisa de ser plantada e bem tratada. Por todos.
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