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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 49



António Carlos Carvalho

João Villaret subiu ao céu dos actores há 50 anos, no dia 21 de Janeiro de 1961. Meia hora antes de morrer dizia a Vasco Morgado: «Ainda havemos de montar grandes espectáculos». No seu último teatro, o Monumental (também ele desaparecido, para nossa vergonha), nessa noite já não se representou o último quadro de «Boa Noite Betina»: Paulo Renato anunciou a morte de João Villaret e pediu que se substituíssem os aplausos no final por um minuto de silêncio em memória do «maior actor do teatro português».

O corpo do artista foi para a Basílica da Estrela, onde os muitos que lá foram prestar a última homenagem se admiravam por ver o actor de cabelos brancos -- tinha-os pintado dessa cor para criar a personagem principal de «A Raça», o filme de Augusto Fraga que já não teve tempo de fazer… O funeral saiu dali para o talhão dos artistas do Cemitério dos Prazeres, acompanhado por uma multidão de vinte mil pessoas. «No enterro, não se ouvia uma mosca, tal era o respeito que lhe tinham», segundo o testemunho de Rui de Carvalho. Nessa época ainda não havia esse bárbaro costume dos nossos dias, de se bater palmas nos enterros, certamente aplaudindo o eficiente trabalho do Anjo da Morte…

Palmas, e muitas, recebeu-as João Villaret em vida, como lhe era devido, nos palcos dos teatros D. Maria II, Trindade, São Luís, Avenida, Variedades, Tivoli, Monumental, em Lisboa, mas também nos teatros do Porto e de muitos outros lugares do país, incluindo Madeira e Açores, e também Angola, Moçambique e S. Tomé, e ainda no Brasil e na Argentina. A todos esses lugares levou a presença da língua portuguesa sob as formas do teatro e da poesia -- a poesia que ele dizia como mais ninguém, antes ou depois dele. (José Régio confessou uma vez, depois de o ouvir no teatro Sá da Bandeira, no Porto: «Eu não sabia que era assim a minha “Toada de Portalegre”…»)

Ao longo de trinta anos, disse cerca de trezentos poemas, de cento e quarenta autores, sobretudo portugueses, mas também brasileiros e alguns franceses. A sua preferência ia para Fernando Pessoa , António Botto (que lhe apresentou o próprio Pessoa), José Régio, Mário de Sá Carneiro, Camões, Florbela Espanca, Camilo Pessanha, Carlos Queirós, Miguel Torga.

E para aqueles que não o ouviram, ao vivo, nos seus muitos recitais de poesia por todo o País (incluindo a Penitenciária de Lisboa, para os presos, numa noite de Natal), Villaret ofereceu-lhes depois poesia dita em directo na televisão, a partir do final de 1957 e até 1960. Para muitos de nós (eu era então um miúdo mas jamais me esquecerei desses momentos de espanto), era a revelação da força da palavra poética (mas também da arte de contar histórias) trazida para dentro das nossas casas, interpelando-nos directamente, pessoalmente.

Um homem diante de uma câmara, sentado ao lado de uma mesa com papéis, livros e um telefone, como se estivesse no escritório de sua casa. «Boa noite, senhores telespectadores», dizia Villaret, de óculos na mão, que usava para ler um ou outro texto maior, e que pousava para dizer um poema ou para nos contar uma história carregada de ironia ou de ternura. A maior simplicidade, que hoje nos parece impossível, para verdadeiros momentos de magia em televisão (bem longe da actual noção de «entretenimento»). Quando dizia (interpretava) um poema, a câmara focava-o de perto, com um halo luminoso a iluminá-lo por cima, o seu rosto enchia o ecrã -- e nós ficávamos ali, presos ao encantamento das suas palavras, ou das palavras de outros que tornava suas e nossas… desejando que nunca acabassem.

Retomando tradições muito antigas, Villaret lembrava-nos, de uma maneira exemplar, que a poesia existe para ser dita ou cantada, não apenas para se ler em livros…
Poesia viva, interpretada intensamente, apaixonadamente, arrebatadamente -- arrebatando-nos com ela.

Hoje, ao fim da tarde, no programa «Portugal em Directo», a RTP1 presta-lhe a merecida homenagem. Seria bom que também retirasse daí a lição óbvia: a de que é possível fazer outro tipo de televisão num país de invejosos que ainda não aprendeu o que significa genuína admiração -- uma árvore delicada que precisa de ser plantada e bem tratada. Por todos.

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