Não há dúvida: como dizia o velho senhor, cada um de nós é ele próprio e a sua circunstância. Há 70 anos, neste mesmo dia, teve início aquela que ficou conhecida como Segunda Guerra Mundial. Oito anos depois, nascia eu, numa casa cheia de imagens e de palavras desse conflito: revistas, livros, folhetos, publicações diversas produzidas pela propaganda dos Aliados ou do Eixo. Foi vendo essas imagens que fiz a minha educação visual; foi lendo esses livros (descrições de batalhas e de outros episódios bélicos) que entrei num mundo que não era o meu mas que herdei numa espécie de fatalidade familiar. Mais tarde compreendi que essa fatalidade não era só minha, era a de todos nós, ainda hoje. Porque herdámos realmente um mundo que morreu, mesmo fisicamente, em 1939-1945. E, supostamente, renasceu a seguir. Na verdade, as coisas são muito mais complicadas. A guerra que teve início exactamente há 70 anos era, afinal, a segunda fase de um conflito que começou em 1914 e supostamente terminou em 1918 (11 de Novembro, feriado em todos os países europeus beligerantes, excepto em Portugal). A esse primeiro conflito chamaram «a última das últimas» guerras, a «Grande Guerra». Mas afinal, vinte e um anos depois (apenas isso), percebeu-se que não era a última nem «a grande» -- em 1 de Setembro de 1939 começou uma outra e maior do que a primeira. Maior em tudo: em número de vítimas, em países e regiões participantes, em cenários de conflito, em graus de destruição, em horrores cometidos. Hoje, há quem fale apenas de duas etapas da «guerra civil europeia» (1914-18 e 1939-45), fórmula que seria interessante se não se desse o caso de a guerra, iniciada na Europa, ter excedido largamente as fronteiras deste continente, envolvendo todos os outros, e de, vendo bem, todas as guerras serem realmente «civis», porque travadas entre irmãos – somos todos filhos de Deus, evidência que só os ateus contestam, e habitantes da mesma Terra. Por outro lado, esses 21 anos de paz entre os dois conflitos irmãos, não foram nada pacíficos: além de insurreições e banhos de sangue «menores», tivemos a chamada Guerra Civil de Espanha, que foi na verdade um campo de treino, um balão de ensaio para diversas forças que vieram a intervir na Segunda Guerra. Não me vou deter aqui nas causas deste conflito. Os historiadores, nas suas querelas, continuam ainda hoje a não ver um consenso possível. Interessa-me muito mais referir as consequências, porque são elas que pesam hoje nas nossas vidas precárias. Por exemplo, tanto a Primeira (16 milhões de mortos e 22 milhões de feridos, militares e civis) como a Segunda Guerra (cerca de 50 milhões de mortos, militares e civis, estes mais do que os outros) demonstraram, na frieza dos números e dos imensos cemitérios, que a vida humana era uma simples questão de números. Aliás, nos campos de extermínio os funcionários zelosos tinham o cuidado de tatuar um número em cada detido, para simplificar a contagem, a contabilidade, antes do mesmo ser gaseado e desfeito em fumo nas chaminés dos fornos crematórios.
A cidade de Colónia, devastada pelas bombas: clique na imagem para a aumentar
Hoje, suprema conquista da civilização tecnocrática, cada um de nós tem direito não a um mas a vários números que o enquadram devidamente no sistema totalitário para o qual caminhamos.
Em Auschwitz e noutros lugares infernais criados durante 1939-45, cada ser humano ali internado, além de possuir um número, era também um objecto, um utensílio, do qual era possível extrair quase tudo (pele, cabelos, gordura) – daí a pergunta essencial de Primo Levi, «Se isto é um homem».
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