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sexta-feira, 25 de março de 2011

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 52


António Carlos Carvalho

O Japão vive comigo desde que me lembro. Graças a um senhor respeitável e venerável chamado Wenceslau de Moraes. Na biblioteca do meu avô havia alguns livros dele, que folheei e li com imensa curiosidade. Foi então que o Japão entrou em mim e ficou até hoje. Li aquelas páginas cheias de admiração, de devoção por um país amado e entendi perfeitamente as razões para aquele exílio voluntário de um homem que amava a beleza.

Mais tarde, fui coleccionando livros escritos por japoneses ou por outros apaixonados pelo Japão. Narrativas de viagens, romances (Kawabata, Mishima), poemas (a arte do Haiku cativou-me), ensaios como «Elogio da Sombra» de Junichiro Tanizaki, mas também as imagens sublimes de Hokusai ou de Utamaro. E os filmes de Akira Kurosawa, evidentemente.

Claro que percebi rapidamente que o «meu Japão» (e o deles) já não existia, a não ser como memória e saudade. O vento de loucura que soprou na Segunda Guerra Mundial e a consequente «americanização» que se lhe seguiu (se não podes vencê-los, junta-te a eles…) fizeram desaparecer a alma do Japão antigo -- aquele que nós, portugueses, descobrimos e demos a conhecer ao mundo (através de Fernão Mendes Pinto, Luís Frois, João Rodrigues, entre outros -- Armando Martins Janeira explicou isso muito bem). O mesmo Japão a quem também revelámos o sortilégio das armas de fogo, infelizmente… E que a esquadra do comodoro Perry abriu à força ao mundo ocidental e moderno em 1854 (o verdadeiro princípio do fim).

Ou seja, exceptuando algumas almas boas e antigas que ainda lá existam, na clandestinidade, o Japão de hoje é somente uma tresloucada sombra (a que não é possível fazer qualquer elogio…) de si próprio. Como se viu agora, como ainda estamos a ver, com aquela tragédia em vários actos: primeiro o sismo violentíssimo, depois o tsunami diluviano, finalmente a insanidade das centrais nucleares descontroladas que ameaçam tornar irrespirável o próprio ar que se respira, envenenar a água que se bebe ou os alimentos que a terra dá.

Como é possível que um país de tanta sabedoria antiga, que sofreu o horror de duas bombas atómicas, tenha sequer alguma coisa a ver com o «nuclear»? Essa é a nossa perplexidade.

Que talvez se explique apenas pela perda da alma.

E como existe uma relação estranha, misteriosa, entre o Japão e Portugal, esses dois extremos, Extremo Oriente e Extremo Ocidente (relação que os japoneses sentem ainda muito bem, mas nós nem sequer, em crescente perda de memória), eis que também por cá se vivem as consequências tremendas da perda da alma -- do sentido da nossa razão de ser neste mundo.

No Japão, como se fossem sinais divinos, os quatro elementos revoltaram-se e fizeram-se sentir da pior maneira, à maneira de avisos tremendos: acordem!

Em Portugal, também terra de sismos, também terra antiga e de saber antigo, mas igualmente de alma perdida no meio dos «ventos da História», vivemos outras espécies de sismos e tsunamis, pelo menos por enquanto, como se também eles fossem avisos sinais para acordarmos e vermos e ouvirmos -- e entendermos, por fim, o que nos espera se não mudarmos de vida, de rumo.

Está na hora de nos perguntarmos, japoneses e portugueses, o que andamos a fazer neste mundo. Foi para «isto» que nos construímos e constituímos enquanto nação?

Se não respondermos a esta pergunta terrível, corremos o risco de que um outro «kamikaze» («vento divino») nos varra definitivamente deste mundo.

Entretanto, vêm-me à memória os versos de Issa Kobayashi (1763-1827):

«Neste mundo
Por cima do inferno
Contemplo as flores»

«Uma gota de orvalho
A vida Uma gota de orvalho
E contudo…»

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