É verdade que até ao último terço do século XIX a própria historiografia e filosofia positivista – especialmente a académica – renunciava à reflexão em torno da religião, da arte e da poesia marranas. Tornou-se necessário não somente projectar para a primeira cena um novo personagem - o cripto-judeu - mas também demonstrar a intrínseca relação do marranismo com a cultura e o pensamento portugueses, e isto foi realizado por Sampaio Bruno. O desafio consistiu em circunscrever explicitamente (num determinado contexto espácio-temporal e ideológico “avant-garde” do “fin-du-siècle”) os diferentes aspectos sob os quais pode ser considerado sumariamente o problema complexo da fé – o núcleo da individuação religiosa marrana sephardi – relativamente à qual nos limitamos a referenciar paradoxalmente, diríamos, o traçado do chamado catolicismo (que acabou saindo vitorioso) e o mosaísmo (como uma tradição que é transmitida).
Recalcamento
Falámos de um sincretismo (presente no converso) por demais inegável (em uma complexidade contraditória) e também de um quadro psíquico de recalcamento, como mais adiante veremos, que, assim, subsistiu através de gerações (o retorno inelutável do reprimido). Reconhecendo a importância do engajamento marrano – a partir de diversos índices discursivos – poético-narrativos – não deixaremos, contudo, de considerar a dialéctica do infinito do sentido – a redenção pela linguagem. Aqui se torna evidente a urgente necessidade de procurarmos uma via de acesso adequada à determinação do marranismo - a pedra de toque dos comportamentos, das práticas e de um sistema de crenças bastante distintas – tomando em consideração a imagem de si – construída no e pelo discurso. É muito fácil de ver que a escrita e a criação literárias marranas – na sua dis(con)junção – lance de dados – traçou uma linha de demarcação da arte como criptografia metafísica. Seguramente. Trata-se de re(des)velar a (sub)cultura fazendo ecoar a letra e a voz que o anátema – a coerção inquisitorial – fez calar. Neste contexto, o importante é ter em conta que a liberdade se insere na dimensão do imperscrutável.
Alexandre Teixeira Mendes
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