(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quarta-feira, 31 de março de 2010

AFORISMOS, 26

Eduardo Aroso

108 – O culto do Espírito Santo, erguido no coração do Povo a partir de Alenquer pelo casal régio Dinis e Isabel, é porventura a primeira Constituição e decerto a mais verdadeira que, aceitando todavia o erro do trânsito humano e a consequente correcção, garante, na contraparte espiritual, a plenitude de todas as formas de segurança social e de sindicalismo na reivindicação do modo de manifestar a maior eficácia do Amor na Acção.
109 - Acontecimentos significativos da História de Portugal e bem assim a conduta dos portugueses nalgumas situações de um quotidiano imprevisto, têm explicações diferentes segundo a interpretação que lhes dermos a partir da Igreja de Pedro ou da Igreja de João. Numa, aos olhos do público, os acontecimentos têm uma clareza relativa; na outra são claríssimos para uma minoria, mas continuam incompreensíveis para as massas, ou até ignorados. É razoável pensar que, de um ponto de vista do Centro Espiritual, episódios revestidos de algum enigma são como que distribuídos segundo as necessidades do devir, ora por uma, ora por outra igreja. Dois exemplos: a “modulação” da Ordem do Templo na Ordem de Cristo, por D. Dinis, e o que quer que seja sob a designação de Aparições de Fátima na preparação de um futuro Milagre Português, paradoxal geminação desta terra com Trancoso.
110 – Se há capelinhas junto às nossas casas, não se lhes fechem as portas. Mas livremo-nos de as fazer tão fragmentadas no espírito, que quase parece que nalgumas delas se adoram deuses diferentes! Tomemos as nossas vestes apropriadas, as flores que mais nos encantam, no diverso que cria a beleza suprema, mas sem esquecer que o espírito tudo atravessa para viver além das formas, sem pedir autorizações oficiais e eclesiásticas. Assim, para fazermos jus à hora presente, conjuguemos a tríade oração-pensamento-acção, dando mais uns passos, indo à Catedral do Ser Portugal, no ponto onde muitos Anónimos se iluminam pelos Jerónimos…

terça-feira, 30 de março de 2010

OS POETAS LUSÍADAS, 33

A QUEM LER

Os versos que cantei importunado
Da mocidade cega a quem seguia
Queimei (como vergonha me pedia)
Chorando por haver tam mal cantado.

Se nestes não ficar tam desculpado
Quanto o mais alto estilo requeria,
Não me podem negar a melhoria
Da mudança que fiz de um no outro estado.

Que vai que sejam bem, ou mal aceitos?
Pois os não escrevi para louvores
Humanos, pelo menos perigosos,

Senão para plantar em frios peitos
Desejos de colher divinas flores
À força de suspiros saudosos.
Frei Agostinho da Cruz

segunda-feira, 29 de março de 2010

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 19


[Álvaro Ribeiro, a cultura e o Estado - 1]

“Quem reconhecer a existência da lei de Deus não se deixará derrotar pela estranheza de ela ter sido redigida em termos de mandamento, que lembram o mando e a mão, porque o que mais importa é intuir que na teoria do direito há sempre vestígios de relação, rara e remota, com a verdade da teologia. Se o mais alto fim do homem é prestar culto a Deus, – por pensamentos, palavras e obras, – lícito será reconhecer que o mais alto fim do Estado seja o de organizar a cultura, que não é apenas ensino. Só isto explica que a teoria do direito tenha sido, pelos melhores tratadistas, aproximada dos estudos filosóficos.
Infelizmente, neste domínio como em outros mais, certas palavras suscitam reacções temíveis e tremendas, pelo que o estudioso, perdida a serenidade, deixa de ver a precisão dos conceitos e a necessidade das teses. Por falta de coordenação entre os estudos de história da filosofia portuguesa e de história do direito português, o problema dos fins do Estado tem sido debatido por uma dialéctica extremista que não demonstra nem explica a reacção da nossa jurisprudência, sempre cauta e meticulosa perante as doutrinas provenientes da política estrangeira. Assim, de tudo quanto a paleografia possa mostrar de exterior e de acidental como em alguns trabalhos unilaterais de notáveis especialistas, não é possível inferir o pensamento filosófico que tem presidido ao desenvolvimento, ou seja, à evolução da nacionalidade.”
Álvaro Ribeiro
(excerto retirado de Apologia e Filosofia, Guimarães, 1953)

domingo, 28 de março de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 54



Primavera
Eduardo Aroso

Rebentação da vida,
Corpo, transfiguração!
Sopro matinal e asas mil
Regressando na brisa
Do nascente eterno da Criação.
Que mistério me toca,
Para o sulco, a raiz,
Mudez, interrogação…
Abismo de pensar
Que nada diz.

Ó almas que andais sem norte!
Também o céu é verdejante,
Regaço florido além da morte.
E eu que posso fazer senão
Bem-dizer a minha sorte:
Comungar a seiva,
Afagar os talos,
Acender os troncos;
E ressuscitar nos caminhos
Para não morrer nos sonhos.

Quase Páscoa de 2010

quinta-feira, 25 de março de 2010

SÁBADO, EM SESIMBRA E EM SETÚBAL



15h00: Biblioteca Municipal de Sesimbra - ciclo Portugal Renascente
Colóquio sobre A Situação Cultural de Hoje e apresentação do n.º 5 da revista Nova Águia,
com a presença de António Carlos Carvalho, António Telmo, Pedro Martins e Renato Epifânio

18h00: Casa Bocage (Setúbal)
Apresentação do n.º 5 da revista Nova Águia e do livro A Verdadeira História de Aladino - Colecção NOVA ÁGUIA
com a presença de Renato Epifânio e Rodrigo Sobral Cunha

quarta-feira, 24 de março de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 53

Cartas da Alma ao Espírito
Cartas de Noé para Nayma / Carlos Aurélio. Lisboa: Zéfiro, 2010
Pedro Sinde

Este novo livro do pintor, do escritor, do fotógrafo, do escultor Carlos Aurélio vem relembrar a importância de restabelecer o diálogo entre a alma e o espírito ou entre a filosofia e a religião.
Numa época em que os homens se envergonham de se dizerem crentes e, mais ainda, de se dizerem praticantes de uma religião; numa época em que muitos abandonaram o Catolicismo, muitas vezes por causa das complicações em que se tem metido a própria Igreja (levando ao afastamento de grandes almas); neste tempo, pois, o autor assume-se logo de início como católico. Uma afirmação destas só se faz com coragem e implica naturalmente um compromisso e uma responsabilidade. Os crentes que estejam conscientes disto colocam-se, certamente, nas mãos da misericórdia divina. Mas aqueles que se afastam, também.
Estas cartas são notáveis a vários títulos e gostaria aqui de destacar apenas aqueles que me parecem os mais importantes. Antes de tudo o mais trata-se de um livro que se lê com muito prazer: escrito em forma de cartas íntimas, logo somos chamados para o quotidiano de alguém que procura, nesse dia-a-dia, relacionar estes três aspectos: o corpo, a alma e o espírito, vertidos e vestidos respectivamente no fecundo diálogo entre a vida quotidiana (o corpo), a filosofia (a alma) e a religião (o espírito). Assim, como se antevê já, este diálogo não fica numa abstracção, antes procura encarnar na vida, quer dizer, orientá-la e iluminá-la, torná-la encarnada ou vermelha isto é, dar-lhe sentido, levá-la ao rubro.
A religião esconde no seu seio, providencialmente, as ressonâncias e as chaves de que quase todos necessitamos para despertar o intelecto passivo. Estas ressonâncias são os símbolos; estas chaves são a oração. A filosofia pode e deve iluminar a demanda simbólica e a oração, que se transformará, assim, gradualmente em filosofal e metafísica, tornando-se viva e vibrante, depurando a emoção e purificando, assim, o corpo ou o quotidiano.
Carlos Aurélio coloca-se sob a protecção de Santa Catarina de Alexandria, como vemos nas duas datas nucleares que abraçam o livro; Santa Catarina é a protectora ou a inspiradora dos filósofos e a sua vida exprime justamente a relação equilibrada entre a filosofia e a religião: não poderia, por isso, haver melhor protectora para um livro que procura, ele mesmo, recordar esta relação.
Outro aspecto importante que ressalta destas cartas, sobretudo nos dias que hoje vivemos, é o da sacralização do tempo. Escrito ao longo de um ano litúrgico e tendo cada carta como base uma reflexão vivenciada da Liturgia da Palavra na missa, cada carta toma essa leitura como ponto de partida livre, o que significa que cada carta dá origem a uma meditação que resulta numa espécie de pensamento em voz alta. É esta vivência, de semana para semana, deixando que a Palavra do Espírito semeie na Alma do Corpo a vida poética, que permite, em parte, a sacralização do tempo, quer dizer, uma espécie de iluminação dos dias da semana, tendencialmente profanos, pela palavra sagrada do Domingo, como se a religião inspirasse o mote que a filosofia glosa. A religião tem particularmente este poder de conferir um aspecto qualitativo ao tempo profanado pelo homem; digo ‘tempo profanado’, porque a natureza do tempo é ela mesma sagrada e qualitativa, é o homem profano que a faz decair, decaindo assim ele mesmo.
Este belo livro, que se pode ler carta a carta, de modo sistemático ou até ao “acaso”, pode acompanhar todos quantos andam na demanda do espírito, pois aqui, neste livro, encontrarão um companheiro.

segunda-feira, 22 de março de 2010

AFORISMOS, 25

Eduardo Aroso

105 – O sentido que tem sido atribuído à expressão «flor da idade» - muito servindo à publicidade feita com a juventude, de um modo particular com a figura da mulher – foi exaltado também pelo paradigma de produção e rentabilidade laboral de economias marxistas, seja o Marx do séc. XIX, ou o do XX. Se há anos da vida que são vistos como «flor da idade», os mais fascinantes, estimulantes e “produtivos”, não se pode deixar de pensar no melhor do ser humano: «o fruto da idade». Fruto também como derradeira obra; árvore antiga cuja sombra, copa ou aura na canícula nos infunde um outro respirar de vida; verde que, ao invés de gasto, tem a patine da madurez, porte de fantasma benigno que nos impressiona e quantas vezes faz rejuvenescer de espanto!
106 – Seja qual for o campo, a vida em Portugal tem-se tornado insuportável. Se quem muito ama muito suporta, em interior aceitação, há ainda verdadeiros portugueses que estoicamente vão fazendo do chão, não tanto a antecipação da sepultura, mas uma espécie de amargo roteiro, a sua dolorosa via-sacra. Com mais ou menos fatalismo podemos entender a situação. O que se estranha é que quem não ama Portugal ainda consiga aqui viver, sentindo-se feliz e realizado.
107 – O rei vai nu, ou a república vai nua?

sábado, 20 de março de 2010

UMA ALTERAÇÃO NO PROGRAMA DO COLÓQUIO DE SÁBADO, 27, EM SESIMBRA

Alteração. Contrariamente ao que estava previsto e fora anunciado, o escritor Miguel Real, impedido por motivos pessoais, não poderá participar no colóquio A Situação Cultural de Hoje, que ocorre no próximo sábado, 27, pelas 15 horas, na Biblioteca Municipal de Sesimbra. Em sua substituição, irão falar António Telmo e Pedro Martins, que assim se juntam a António Carlos Carvalho e Renato Epifânio, numa sessão em que será igualmente apresentado o quinto número da revista Nova Águia, sobre OS 100 ANOS D’ A ÁGUIA E A SITUAÇÃO CULTURAL DE HOJE.

quinta-feira, 18 de março de 2010

NO PRÓXIMO DIA 27, EM SESIMBRA



Colóquio. O ciclo Portugal Renascente, iniciativa conjunta dos Cadernos de Filosofia Extravagante e da revista Nova Águia, em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra, regressa já no próximo dia 27, sábado, pelas 15 horas, com a realização do colóquio A Situação Cultural de Hoje, em que serão oradores António Carlos Carvalho, Miguel Real e Renato Epifânio. Na ocasião, será ainda lançado o quinto número da revista Nova Águia, sobre OS 100 ANOS D’ A ÁGUIA E A SITUAÇÃO CULTURAL DE HOJE. Como habitualmente, a sessão terá lugar na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra.

segunda-feira, 15 de março de 2010

AFORISMOS, 24

Eduardo Aroso

102 – A absurda concretização do acordo ortográfico dos países de Língua Portuguesa parece ser igualmente a absurda rendição do estado de espírito de quem se sente inferiorizado por ter sido agente de colonização (e má descolonização) e também por uma espécie de complexo de culpa de pioneirismo por ter cultivado e expandido o idioma de Camões, que já antes D. Dinis tão bem havia cantado, por saber que teria futuro. Mas quanto a esta patologia institucional de políticos, alguns linguistas e certos negociantes, psicólogos e psicanalistas pouco podem fazer. A tendência para a uniformização navega contrária aos ventos naturais, ao fim e ao cabo em oposição insolúvel à concepção do sentido de independência dos povos que criando a sua autonomia e consequentes especificidades formam e incorporam o léxico próprio bem como todas as evoluções linguísticas ditadas de acordo (este sim um verdadeiro acordo!) com a sua alma colectiva. Os urdidores de acordos – ansiados contratos comerciais – não encaram o facto da evolução da língua ser o que é, como, por exemplo, o crescimento dos pinheiros e castanheiros que, embora já no tempo da genética vegetal, ainda devem crescer ao seu ritmo. [na imagem: Dom Dinis - clique para a ampliar]

103 – A República de 1910 entrou com um misto de rompante e paradoxal subtileza (!). Os revoltosos mataram o penúltimo rei e deixaram ir em paz o último.

104 – A noite e o dia, o invisível e o visível, o passado e o futuro… Em Portugal, existindo Povo (1), há Aristocracia, seja qual for a sua forma de ser. Ainda que possa haver desproporção, uma existência implica a outra. A um, corresponde o inconsciente; a outra, à lucidez. Ambos na mesma verdade presentes. Em épocas de crise, no Povo o passado - provavelmente com nevoeiros à mistura - aflui como voz então menos inconsciente, mas trazendo a maior força, que se projecta no futuro; na Aristocracia do Espírito (expressão cabal, muito utilizada por António Telmo) é a visão do futuro que, também melhor interpretando o passado, ao mesmo tempo nele projecta e incorpora o seu melhor. Os dois podem actuar ciclicamente como a Mão de um Destino Maior: a Hora.
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(1) Grafia com maiúscula, para distinguir do povo apenas votante.

domingo, 14 de março de 2010

OS POETAS LUSÍADAS, 32



[da série Lugares]

LOA AO PORTO

Para o meu sobrinho David Manuel

Que impulso de dizer-te pátria, Porto:
O corpo amuralhado de granito,
Cabelo d’água, à névoa, ao vento, exposto,
Face esculpida em grito.

Braços de ferro, arqueados, desmedidos,
Sobre o fluir dos barcos e do barro.
E um rumor antigo
Na voz das tuas ruas e mercados.

Vestes de escuro e enfeitas-te de luzes
Antes do Sol perder seu oiro pálido.
E das torres com sinos e com cruzes
Acenas ao mar largo.

Bulícios de cafés (há mais de mil)
Entornam-te nas veias graça e fogo.
E o lírico torpor dos teus jardins
Suspiros e repouso.

Que impulso de dizer-te pátria, Porto:
Coração, não de Pedro, mas de pedra
Com sangue fértil, vinho generoso
A gerar alma e terra.
- 3 de Outubro de 1981 -

António Manuel Couto Viana

quinta-feira, 11 de março de 2010

APONTAMENTOS E REFLEXÕES SOBRE O KYUDO EM PORTUGAL, 3*

Luís Paixão**

Se é condição para a manutenção da prática do Kyudo a identificação dos aspectos acima referidos, porque de outro modo reduz-se a uma técnica vazia de sentido, também não deixa de ser indispensável a atenção permanente aos aspectos relacionados com o grupo. O caminho do Kyudo é individual, mas ele só é possível no interior de uma gregora: a amizade, o sentido de grupo, a lealdade, a cordialidade, o respeito mútuo são valores que entram na composição da argamassa que liga as pedras do edifício do Kyudo. Qualquer atentado a estas regras é grave e revela, para além de outros aspectos, falta de inteligência. O legado do mestre Yokokoji, independentemente do seu estatuto de graduação, foi antes de mais o exemplo das virtudes referidas e nunca será demais apontar a sua disponibilidade e entusiasmo para todas as tarefas relacionadas com as actividades do grupo - não apenas com a prática - e a sua tristeza quando alguém as negligenciava.

Seminário da Associação Portuguesa de Kyudo, na Quintinha, em Junho de 2004
Um outro acontecimento muito importante que valerá a pena referir foi a vinda a Portugal do Sr. Kudo, mestre do Sr. Yokokoji, a convite deste no ano de 1995. Era na altura considerado o praticante cuja técnica era a mais perfeita no Japão. A prova desse facto foi ter sido solicitado pelo reconhecido mestre do cinema mundial, Akira Kurosawa, para ensinar os actores do filme Os Senhores da Guerra na difícil arte de Yabusame (Tiro com arco a cavalo), a fim de representarem as cenas iniciais de caça ao javali. Mais baixo que Yokokoji e de idade avançada, manifestava contudo uma enorme vitalidade. Ficou alojado na Cotovia, onde acompanhou o primeiro seminário da associação. Executou muitos tiros em tronco nu, para que nós nos apercebêssemos dos músculos que estavam a ser utilizados em cada momento do tiro. O seu corpo era deste modo um livro aberto, tal era a nitidez dos músculos e dos ossos, não sendo visível nada que estivesse a mais. Tinha um emprego modesto no Japão como transportador de mercadorias no porto da cidade onde vivia, utilizando um pequeno veículo entre as 5 e as 10 horas da manhã, e dedicava o restante do dia ao Kyudo. Foi convidado na altura por várias pessoas para ensinar noutros dojos, tendo declinado sempre os convites e pedindo às pessoas que se deslocassem ao dojo da Quintinha.

Treino no novo Dojo de Sesimbra
Na despedida, o Roque teve a feliz ideia de lhe oferecermos um arreio de cavalo à portuguesa, que foi de facto a melhor coisa que lhe poderíamos ter oferecido, tal a alegria que manifestou quando o recebeu. Mais tarde chegou-nos a mensagem pelo mestre Yokokoji que o Sr. Kudo lhe teria dito que as melhores coisas que lhe teriam acontecido na vida havia sido o kyudo e ter vindo ao nosso país. O apoio à actividade em Portugal tem vindo a ser assegurado anualmente pela Srª Maky Kudo, sua esposa, 7º Dan Kyoshi no Japão, sendo particularmente reconhecida no seu país pela qualidade das suas alunas e alunos, e por ser uma especialista em fisioterapia na tradição japonesa.
Já dezassete anos decorreram desde o inicio da prática, muitos foram os seminários e as demonstrações nacionais e internacionais em que a Associação esteve presente e envolvida. Das iniciativas tomadas realçamos a presença em todas as demonstrações de artes marciais organizadas pela Associação de Amizade Portugal-Japão e, mais recentemente, a bem da actividade, pela entrega e empenho dos associados, são de realçar a manutenção do núcleo do Instituto Superior Técnico em Lisboa e o inicio da construção do novo Dojo em Sesimbra.


Antecedentes: 1.ª parte; 2.ª parte
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* Artigo originalmente publicado na revista Biosofia.
** Fundador da Associação Portuguesa de Kyudo.

quarta-feira, 10 de março de 2010

APONTAMENTOS E REFLEXÕES SOBRE O KYUDO EM PORTUGAL, 2

Luís Paixão

Hassetsu - oito movimentos para um tiro
Para quem lê estas linhas e nunca teve o ensejo de estar em contacto com a prática de Kyudo, é importante esclarecer que qualquer tiro exige o cumprimento de oito movimentos que vão desde o levantar do arco e de duas flechas, encostando as mãos aos quadris, olhando lentamente para o alvo (monomi) até ao momento do tiro (Hanare), numa sequência que demora vários minutos, dependendo da formalidade. O seu desenvolvimento é de um modo extremamente lento e apoiado na respiração. Os nossos primeiros treinos foram portanto sem arco nem flecha, só executando os movimentos. Mais tarde Yokokoji fabricou uma espécie de fisga, para que com a sua utilização nós começássemos a sentir a pressão do arco. A prática com arco só foi permitida ao fim de seis meses.

O que mais me impressionou nestes primeiros tempos de prática foi a exigência destes oito movimentos sem arco, o seu lento encadeamento completamente - dir-se-ia ao “retardador” - contrário ao ritmo rápido do nosso dia-a-dia. Poderíamos pensar que era por sermos principiantes, mas não era este o caso, visto que quando o mestre executava o tiro para exemplificar, a sua lentidão era ainda maior que a nossa. Várias vezes me ocorreu que, se era uma arte marcial cujo propósito era a guerra, seria por essa razão com certeza uma guerra perdida. A não ser que se tratasse de uma outra guerra, de uma outra cavalaria, de um outro inimigo que talvez só existisse em nós próprios. Por outro lado, os sucessivos movimentos de cumprimento “Rei” e “Yu” à entrada do espaço ao Tokonoma, ao mestre, ao alvo, indicavam que deveria haver naquele local durante aqueles minutos e aquelas horas um espaço e um tempo ultra qualificados. Dir-se-á com razão como o nosso mestre várias vezes afirmou que o Kyudo não é uma Religião, mas contém elementos: posturas, gestos, movimentos, que por serem altamente ritualizados deixam transparecer uma origem religiosa. Trata-se, no meu entender, da própria gnose japonesa se assim se pode chamar, tanto do lado do esoterismo budista como do esoterismo xintoísta. Pretendo utilizar aqui a palavra esoterismo no seu verdadeiro sentido de eso = interior, e deve-se ao facto de não conhecer outra melhor para o que desejo exprimir. Esta chamada de atenção é por haver muito esoterismo que subtilmente passou a ser completamente exterior, sem que as pessoas se tenham apercebido desse facto, mergulhando-as num mar de fantasias. O pensador António Telmo dirá a propósito e com uma subtil ironia que não é esoterismo, é “esoturismo”.
Sabemos que em todas as tradições o arco e a flecha se revestem de um carácter profundamente simbólico e operativo. A ligação do arco e da flecha ao amor e ao cupido, e da flecha ao relâmpago ou raio iluminante são disso exemplo. No Japão é ainda utilizado com esta finalidade em muitas cerimónias solenes como acto de abertura de um evento e designa-se por Hikime.
Este tiro tem três intervenientes, dois ajudantes e um atirador vestidos a rigor com belíssimas roupas de seda bordadas, a cabeça coberta por um chapéu que faz lembrar um barrete frígio. A flecha utilizada nestas ocasiões apresenta, em vez de uma ponta aguçada, uma pequena cabaça com um orifício que emite um som e que é audível durante o voo. A flecha vai colidir suavemente sobre um pano azul que se encontra a cerca de 28 metros e na frente do atirador. Tivemos a honra e a oportunidade de organizar e participar numa cerimónia liderada pela nossa actual mestra Sr. Maky Kudo, que se realizou no Convento da Arrábida no dia 21 de Junho de 2008, por ocasião do 6º Seminário da Associação Portuguesa de Kyudo, e com a colaboração da Fundação Oriente. Esta cerimónia é altamente ritualizada e o objectivo do tiro é o de libertar a atmosfera dos maus espíritos.

Hikime: Maky Kudo no Convento da Arrábida
Quando os portugueses chegaram ao Japão no séc XVI e usaram as espingardas, que eram uma novidade para os japoneses, o arco foi posto de parte, perdendo utilidade marcial, passando a ser utilizado apenas ou sobretudo em actos solenes, incorporando por esse facto aspectos das duas religiões e da aristocracia em presença.
É sabido que toda a tradição genuína é “contra corrente”, ou seja, é um movimento contrário à voragem do impiedoso Cronos. Qualquer acto de meditação do “conhece-te a ti próprio” é tradicional deste ponto de vista. O Kyudo é, por esta razão, completamente tradicional. A observação de si próprio, começando pelo corpo, nos músculos, nos ossos, em qualquer ponto dos pés à cabeça, que exige uma continuidade da atenção desde o início até ao momento após o tiro, centrada no Hara, esse ponto que fica entre o umbigo e a púbis, que é objectivamente o centro do corpo já esquecido pelos ocidentais, e que é obvio para qualquer japonês. Quem está atento sabe que esta observação é completamente ausente no nosso dia-a-dia, mas é ainda mais ausente quando passamos para a observação das emoções, seja de júbilo por se ter acertado, seja de desalento por se ter errado, seja de inveja do companheiro que acertou, seja a falta de determinação e energia na execução dos movimentos, para só falar de algumas. Esta dualidade no ser humano entre o que observa, sem juízo moral, e o que age e sente é claramente iniciática. Todos os comentários que se fazem a propósito, sobre as supostas “energias” envolvidas nestas acções tentam reduzir os planos superiores do ser à chã materialidade da Física da equação matemática e reconduzem o ser humano novamente ao seu estado de adormecimento.
Antecedentes: 1.ª parte
(continua)

terça-feira, 9 de março de 2010

APONTAMENTOS E REFLEXÕES SOBRE O KYUDO EM PORTUGAL, 1

Luís Paixão

Escrever sobre o Kyudo em Portugal não dispensa referir as circunstâncias excepcionais em que se deu o inicio da sua prática no país e, de certo modo, exprimir o que se passou connosco, comigo e com o Roque Brás de Oliveira (4º Dan graduado no Japão e actual Presidente da Associação Portuguesa de Kyudo), enquanto intervenientes nesses acontecimentos. Não que exista qualquer vislumbre de vaidade da nossa parte, mas porque de certo modo ficamos marcados por vínculos indeléveis que ambos consideramos de uma outra ordem.
No final de 1992 nós fazíamos parte de um circulo de tertúlia no qual os temas presentes eram e são de um modo geral espirituais e filosóficos, mas permeáveis à influência de outros espiritualismos vivos não exclusivamente ocidentais, muito à maneira de um René Guenon, quando enuncia esse propósito como a “busca de uma tradição primordial”. No que tocava aos orientalismos não éramos alheios às obras de Alan Watts e de Karlfield Von Durkheim, em especial o seu livro Hara, e às belíssimas traduções e comentários de Richard Wilhelm no livro de profundo esoterismo que é O Segredo da Flor Dourada e nesse outro, de carácter também operativo, ao qual recorro em momentos difíceis da minha vida para sábio e gratuito aconselhamento: o I Ching.
Entre estas obras e outras sobressaía O Zen na Arte Cavaleiresca do Tiro Com Arco Japonês de Herrigel, relato da aprendizagem de um ocidental na difícil arte do Kyudo. É uma bela narrativa muito bem escrita, com uma elevada intenção poética, mas que nos deixava com o amargo sabor de só ser possível viver aquelas coisas desde que vivêssemos no Japão. Nessa impossibilidade pensámos no tiro com arco ocidental, tendo na altura, e com essa finalidade, procurado um espaço para o praticarmos.
Por um acaso ou coincidência extraordinário, a Leonor, minha mulher, chamou-nos a atenção para uma artigo da revista do jornal Diário de Noticias, no qual se dizia que havia um senhor japonês praticante de Kyudo, de nome Yokokoji, que estava a viver em Sesimbra muito perto da casa do Roque, na Cotovia, e cuja grande ambição era encontrar um local para a prática do kyudo, enquanto gozava o período da reforma em Portugal. O País não é muito grande, mas mesmo assim tem uns largos milhares de quilómetros quadrados e logo havia de ser ali, tão próximo de nós, que o Sr. Yokokoji havia de estar a viver. Depois de serenado o entusiasmo, houve naturalmente o desejo de o conhecer pessoalmente, averiguando a possibilidade de marcarmos um encontro, conscientes de que o modo, ou a forma, de o fazermos não seria da mesma maneira que se procura um fornecedor nas páginas amarelas. Felizmente e também casualmente, a professora de línguas dos meus filhos era também professora de português do Sr. Yokokoji e, tendo conhecimento do mútuo interesse, promoveu um encontro entre nós em Novembro de 1992.
Recordo com muita saudade esses primeiros momentos no café Esperança. Era um homem magro e de estatura elevada em relação à média de altura japonesa, de trato muito afável, jovial, e, atendendo à idade - tinha 64 anos -, transparecia-lhe nos gestos e nas atitudes uma inocência de criança. Após uma primeira troca de impressões algo difícil em virtude da língua - ele “arranhava” o português e nós não sabíamos nada de japonês - ficou combinado que iríamos um outro dia a casa dele para uma conversa mais longa e profunda sobre o assunto.
Fomos recebidos em sua casa pela sua gentil mulher, a Sr.ª Sumiko, numa atmosfera muito japonesa. Descalçámos os sapatos à entrada (na passagem do profano para o sagrado para uns, para não sujar chão da casa para outros) e depois das boas vindas tomámos chá verde japonês com fritos de arroz feitos a propósito na altura, o que nos fez imediatamente sentir no paladar a atmosfera de simplicidade contida que reflecte a cultura japonesa. Logo após estes primeiros momentos de boas vindas foi buscar, para nos mostrar, o arco ”Yumi”, as flechas “Ya”, a luva “KaKe” e o alvo “Mato”. Foi um momento único, a exímia artesania, e os sinais de já terem sido usados, a verdade natural dos materiais: bambu no arco e nas flechas, pele nas luvas - pareciam objectos animados. A luva, sobretudo, que naquele caso reveste apenas os dedos polegar, indicador e médio, impressionou-me pela enorme dimensão do polegar que tem uma protecção em madeira revestido de pele com uma ranhura no lado posterior para prender o fio do arco. No punho da luva, nas costas da mão, uma bela inscrição gravada a roxo ligava o praticante à escola Ogasawara, aquela prestigiada escola de etiqueta e de Kyudo que tem vindo a apoiar, atenta e desinteressadamente, a actividade do grupo em Portugal através de inúmeras ofertas de material ao longo dos últimos 17 anos. Yokokoji mostrou-nos os objectos com uma enorme seriedade e simultaneamente com uma indisfarçável alegria, por finalmente ter encontrado alguém que poderia apreciar uma arte que ele tanto considerava.
Combinámos logo uma sessão de prática num espaço gentilmente cedido numa quinta próximo da Cotovia. A Quinta da Boa Vista ou Quintinha, propriedade da família da Leonor.
(continua)

segunda-feira, 8 de março de 2010

AFORISMOS, 23

Eduardo Aroso

99 – A mística não é uma doutrina e menos uma filosofia. Seria melhor compará-la a um ambiente inefável e favorável, a uma atmosfera espiritual ou, pragmaticamente, a uma sala disposta de tal maneira que quando é visitada pelo sol matinal tépido, não se alterando o conteúdo desse espaço, adquire contudo um outro halo anímico e porventura tudo o que está seja visto com outros olhos.
100 – É difícil encontrar uma pátria que tenha sido tão crucificada e por tanto tempo como a nossa. E o que em Portugal tem sido crucificado é aquilo que é verdadeiramente universal em nós, do mesmo modo que os obstáculos à realização do Cristianismo no coração e na mente dos seres humanos. Os empecilhos vão desde os muros de ilusões feitos do arame farpado de ideologias que estão fora do interior do Homem, até à natureza do betão e do aço que se têm erguido como símbolos do eterno.
101 – Definição de povo para este início de século: entidade abstracta cada vez mais incapaz de sedimentar um estrato sobre outro estrato e de ouvir uma voz harmonizando outra voz, mas que se quer concreta nos actos eleitorais e quando à Constituição se faz necessário.

domingo, 7 de março de 2010

TERÇA-FEIRA NO PORTO E SEXTA EM LISBOA: AÍ ESTÁ O QUINTO NÚMERO DA REVISTA «NOVA ÁGUIA»...

Novidade. O quinto número da revista Nova Águia é lançado na próxima terça-feira, dia 9, pelas 18:30, no Palacete Viscondes de Balsemão, no Porto, numa sessão que conta com a presença de Fernando Guimarães, José Carlos Seabra Pereira e Pedro Baptista. Depois, na sexta-feira, 12, pelas 17:30, será a vez de Lisboa, no Palácio da Independência. António Braz Teixeira, Manuel Ferreira Patrício e Pinharanda Gomes são os oradores. Este quinto número, sobre OS 100 ANOS D’ A ÁGUIA E A SITUAÇÃO CULTURAL DE HOJE, conta com a colaboração de alguns nomes do círculo dos Cadernos de Filosofia Extravagante, como António Telmo, António Carlos Carvalho e Pedro Martins. Para mais informações, poderá aceder ao blogue da Nova Águia.

quinta-feira, 4 de março de 2010

AGOSTINHO, 104 ANOS DEPOIS, 7



A Faculdade de Letras do Porto*
De vez em quando sucedem milagres, se Deus os consente e neles se empenham os homens. Num país de ensino rotineiro, com mais interesse pela nota e pela autoridade do catedrático do que respeito pela ciência e liberdade de discernimento pessoal, surgiu a Faculdade de Letras do Porto, que era toda ao contrário, inimiga da burocracia e fosse do que fosse que pudesse lembrar Coimbra e seus malefícios de séculos e incitadora de descoberta própria mais do que de aprendizagem servil, bem longe de ser a escola técnica de profissionais de ensino em que se transformaram as outras.

autógrafo de Agostinho da Silva aposto no exemplar dos Cadernos de Teoria e Crítica Literária oferecido a António Telmo
Em dois grandes grupos se dividia, liderado um por Teixeira Rego, que poderia ter sido bom matemático e físico – ouvi-o propor a teoria da luz de Broglie antes de Broglie – e ensinava filologia, pois ainda se não tornara ciência ou moda ser pedante em linguística, e o fazia com mais gosto para quem o acompanhava na velha livraria Lelo do que para quem, em obediência ao currículo, se matriculara na cadeira; o outro por Leonardo Coimbra, que podia também ter sido matemático e campeão remador, como Rego de ténis, e ensinava filosofia, ou antes, que isso era o certo, vivia filosofia, com muita agudeza e saber, como mestre, e muita angústia e caminhos torcidos, como homem, dando nota boa a quem se interessava e a quem se não interessava pela matéria – tive distinção na turma destes, pois que era o indo-europeu de Teixeira Rego meu pasto favorito –; tudo no Café Majestic, como o filólogo na Lelo.
Agostinho da Silva
* excerto retirado de Cadernos de Teoria e Crítica Literária, Faculdade de Filosofia, Araraquara, São Paulo, 4, 1974 – Impresso à parte para cem Amigos. A transcrição foi efectuada a partir do exemplar de António Telmo, com autógrafo de Agostinho, acima reproduzido em fac-símile.

quarta-feira, 3 de março de 2010

OS POETAS LUSÍADAS, 31


[da série Lugares]

ÉVORA MONTE

À memória de meu bisavô,
o capitão Francisco Gomes Beirão

Aqui, soturnamente, emudeceu
A alegria da Vida: – o riso e o canto;
Um silêncio dramático de espanto
Enoita Évora Monte que morreu!

Quero falar; não posso! Que sei eu
Dizer, por entre as sombras, que levanto,
Mais que os meus olhos, onde fala o pranto,
Mais que o silêncio a espavorir o Céu?

Mas, (ó Mistério!), pelo Tempo fora,
Pressente-se o nascer de estranha aurora,
O germinar oculto da Esperança:

E este silêncio, tenebroso e aflito,
Há-de ser luz; e a luz Amor, confiança;
E Évora Monte acordará, num grito!

Mário Beirão

terça-feira, 2 de março de 2010

AFORISMOS, 22

Eduardo Aroso

96 – A República das Almas é possível e já existe, sem eleições nem Constituição. Não se ignora a outra, mas a concorrência é leal. Todos vão correspondendo ao convite do espírito, segundo as necessidades. A tendência é crescer sem atropelos nem apresentação de currículo, pois o límpido cidadão há-se ser despido e vestido de novo para, dignamente, subir de posto que é o de merecer um degrau acima para a Luz maior. A República das Almas não legisla para restrições nem sente a necessidade de apelos à liberdade, e, no jeito abolicionista, remove muitas bancadas, ideias importadas e despesas do erário público. A República das Almas basta-se em Deus a quem todos obedecem sem imposições.

97 – Inteiramente possível no interior, se já não podemos ter por fora o «rumor dos pinhais que, como um trigo/ de Império, ondulam sem se poder ver», esse «marulho obscuro» que «é a voz da terra», mas também o ondulado timbre do nosso falar, e tendo nós que suportar o enervante ulular do vento quando passa nas florestas de betão citadino, ao menos sejamos livres de, diariamente sempre à mesma hora e em todas as restantes, ouvir mentiras na Língua de Camões. Se fosse noutro idioma, o sofrimento seria menor, sem que a ofensa deixasse de o ser por conter a palavra Portugal – um dos nomes de Deus, como cria Agostinho da Silva.
98 – Cal branca sobre o velho muro: a cor cintilante da esperança.

segunda-feira, 1 de março de 2010

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 18

[Álvaro Ribeiro e a palavra]

no centésimo quinto aniversário do nascimento do filósofo


“Todo o ensino é relação de pessoa a pessoa. A própria palavra ensino, em seu significado étimo, se aproxima das noções de signo, insígnia e segredo. Qualquer que seja a distância entre a boca e o ouvido, qualquer que seja a altura da voz, o essencial do ensino é sempre o que se efectua por tradição.”

“Dizer que o ensino é relação de pessoa a pessoa equivale a dizer que o ensino não é relação de pessoa a livro. Sem claridade nesta distinção, tudo se obscurece, e logo a didáctica subordina o pessoal ao impessoal. Porque se ensina alguém a transitar da potência para o acto, a actuar, e até a atingir a perfeição, porque esse ensino é ministrado por palavras, pelo diálogo socrático, urge entender que o ensino cessa e dá lugar á aprendizagem, logo que o aluno deixa de ouvir para ver, ou de ver para agir.”

“O ensino pressupõe um simbolismo, em vez de um realismo, e símbolos começam a ser as palavras do mestre, as palavras que estimulam o discípulo a realizar os conceitos. Símbolos audíveis, símbolos visíveis, símbolos tangíveis ou imagens modificáveis pela técnica, pela ciência e pela metafísica, não representam a adequação legítima entre a evolução humana e a realidade absoluta, infinita e universal.”

“Quem não estiver munido de uma bibliografia antes de entrar numa biblioteca, quem não souber escolher as leituras segundo um propósito em vista, perderá tanto tempo quanto perderá o estudioso que não estiver munido de um questionário antes de se aproximar de um livro de ciência. O ensino universitário não pode, porém, ser apenas historicista. Deve principalmente ser constituído pela metodologia da investigação científica, da especulação filosófica e da imaginação artística, o que exige a relação oral do mestre com o discípulo.”

“Ensinar a pensar é, pois, ensinar que o manifestado ao alcance das mãos, dos olhos e dos ouvidos é apenas materialização de uma realidade transcendente. A palavra é, sem dúvida, de todos os símbolos o mais verdadeiro. Conferindo significação a tudo quanto é audível, visível e tangível, a palavra torna possível a educação e a evolução da humanidade.”

Álvaro Ribeiro

(excertos retirados de A Razão Animada, INCM, 2009)