quinta-feira, 22 de outubro de 2009
EXTRAVAGÂNCIAS, 35
Cardoso!
Pedro Martins
Seis horas da tarde. O comboio descreve o arco da curva com a ponte à vista. Ao fundo, à esquerda, o torso deitado da Arrábida, imerso na poalha da distância. Em baixo, o largo Tejo, fluindo manso e baço. A meu lado, frente a frente, duas mulheres próximas da idade de Balzac. Uma é loira, outra é morena. Entretêm uma conversa banal. Deitam-se a apreciar as qualidades profissionais dos seguranças privados que têm passado pela repartição pública onde trabalham. A morena revela-se loquaz e assertiva. Vê-se que é senhora de muitas palavras e poucas letras. A loira quase se limita a escutá-la; mas lá vai lançando uma ou outra frase atenta, como quem protesta a máxima dedicação à sua interlocutora. Vencido pelo torpor da fadiga, deponho o livro que me dispunha a ler. Não resisto à futilidade da conversa que se desenrola cerce. Afoito-me em olhares de viés. Quase indiscreto, entro naquele pedaço de vida rasteira. E, pouco impressionado, vou registando virtudes e proezas laborais. Eis que a morena tem uma branca. Quer referir-se ao campeão dos vigilantes mas esqueceu-lhe a graça. Está debaixo da língua. Requerida pela colega, a loira não corresponde às instâncias. Os lapsos momentâneos da memória propagam-se num fulgor contagioso de dominó! – Carvalho! Não, não, não é Carvalho... A faladora forceja, mas a cara trigueira trai-lhe a desilusão. Naquele preciso instante, digo para os meus botões: “É Cardoso. O homem chama-se Cardoso. De certeza que se chama Cardoso”. Tenho vontade de me intrometer na conversação para revelar às duas damas o nome do cavalheiro. Serei olímpico, pois estou seguro de haver submetido a Esfinge. Mas retraio-me. E detenho-me. – Ramos! Não, também não é Ramos… A morena porfia. Debalde. Como se de um sinal se tratasse, noto que a demanda do nome se demora no reino vegetal. Primeiro foi a árvore. Agora são as ramagens. E está certo. Mas é no saibro, pejado de cardos, e não ao alto, que a morena tagarela deve procurar. Nem outro desfecho – já se vê – consentiria o palavreado chão e inóspito com que estranhamente me vem enleando… De súbito, um raio e um trovão irrompem-me na alma. – Cardoso! É Cardoso. É o Cardoso. Lembras-te? A gárrula acaba de triunfar. Aliviada, exibe num sorriso franco o troféu da sua maiêutica. Dou por mim varado. No fundo, tomo agora por coisa séria o que antes me parecera apenas um jogo. Quase sem pinga de sangue, vejo quão vacilante era afinal a minha segurança de há pouco. E no entanto, eu estava certo… Talvez a coisa tenha feito o seu caminho por associação de ideias. Carvalho e Cardoso, sobre evocarem aspectos botânicos diversos, têm em comum a primeira sílaba. E, o que é mais: eu, que sou Cardoso pelo ramo materno, poderia igualmente ser Carvalho por esse lado. Na verdade, o meu avô Rogério foi o último, na linha recta, a usar tal apelido. No nome da minha mãe, Elisabeth, apenas o Cardoso, tomado a minha avó, haveria de persistir. Cardoso! Como te não hei-de estar grato, gaia morena chilreante!? Por instantes, a tua árvore frondosa e os seus ramos trémulos devolveram-me as vergônteas da progénie, fazendo-me recordar quem não devo esquecer. E, no final, vem o teu zelador excelente, com a sua homonímia de raso adusto, trazer-me a metáfora de um memento mori! Morena, ó morenita, já pensaste bem em todos os sobrenomes que se perderam na poeira dos séculos para que um homem pudesse hoje nascer? Quanto nos não diriam sobre ele!?
Pedro Martins
Seis horas da tarde. O comboio descreve o arco da curva com a ponte à vista. Ao fundo, à esquerda, o torso deitado da Arrábida, imerso na poalha da distância. Em baixo, o largo Tejo, fluindo manso e baço. A meu lado, frente a frente, duas mulheres próximas da idade de Balzac. Uma é loira, outra é morena. Entretêm uma conversa banal. Deitam-se a apreciar as qualidades profissionais dos seguranças privados que têm passado pela repartição pública onde trabalham. A morena revela-se loquaz e assertiva. Vê-se que é senhora de muitas palavras e poucas letras. A loira quase se limita a escutá-la; mas lá vai lançando uma ou outra frase atenta, como quem protesta a máxima dedicação à sua interlocutora. Vencido pelo torpor da fadiga, deponho o livro que me dispunha a ler. Não resisto à futilidade da conversa que se desenrola cerce. Afoito-me em olhares de viés. Quase indiscreto, entro naquele pedaço de vida rasteira. E, pouco impressionado, vou registando virtudes e proezas laborais. Eis que a morena tem uma branca. Quer referir-se ao campeão dos vigilantes mas esqueceu-lhe a graça. Está debaixo da língua. Requerida pela colega, a loira não corresponde às instâncias. Os lapsos momentâneos da memória propagam-se num fulgor contagioso de dominó! – Carvalho! Não, não, não é Carvalho... A faladora forceja, mas a cara trigueira trai-lhe a desilusão. Naquele preciso instante, digo para os meus botões: “É Cardoso. O homem chama-se Cardoso. De certeza que se chama Cardoso”. Tenho vontade de me intrometer na conversação para revelar às duas damas o nome do cavalheiro. Serei olímpico, pois estou seguro de haver submetido a Esfinge. Mas retraio-me. E detenho-me. – Ramos! Não, também não é Ramos… A morena porfia. Debalde. Como se de um sinal se tratasse, noto que a demanda do nome se demora no reino vegetal. Primeiro foi a árvore. Agora são as ramagens. E está certo. Mas é no saibro, pejado de cardos, e não ao alto, que a morena tagarela deve procurar. Nem outro desfecho – já se vê – consentiria o palavreado chão e inóspito com que estranhamente me vem enleando… De súbito, um raio e um trovão irrompem-me na alma. – Cardoso! É Cardoso. É o Cardoso. Lembras-te? A gárrula acaba de triunfar. Aliviada, exibe num sorriso franco o troféu da sua maiêutica. Dou por mim varado. No fundo, tomo agora por coisa séria o que antes me parecera apenas um jogo. Quase sem pinga de sangue, vejo quão vacilante era afinal a minha segurança de há pouco. E no entanto, eu estava certo… Talvez a coisa tenha feito o seu caminho por associação de ideias. Carvalho e Cardoso, sobre evocarem aspectos botânicos diversos, têm em comum a primeira sílaba. E, o que é mais: eu, que sou Cardoso pelo ramo materno, poderia igualmente ser Carvalho por esse lado. Na verdade, o meu avô Rogério foi o último, na linha recta, a usar tal apelido. No nome da minha mãe, Elisabeth, apenas o Cardoso, tomado a minha avó, haveria de persistir. Cardoso! Como te não hei-de estar grato, gaia morena chilreante!? Por instantes, a tua árvore frondosa e os seus ramos trémulos devolveram-me as vergônteas da progénie, fazendo-me recordar quem não devo esquecer. E, no final, vem o teu zelador excelente, com a sua homonímia de raso adusto, trazer-me a metáfora de um memento mori! Morena, ó morenita, já pensaste bem em todos os sobrenomes que se perderam na poeira dos séculos para que um homem pudesse hoje nascer? Quanto nos não diriam sobre ele!?
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