
Pedro Martins
Seis horas da tarde. O comboio descreve o arco da curva com a ponte à vista. Ao fundo, à esquerda, o torso deitado da Arrábida, imerso na poalha da distância. Em baixo, o largo Tejo, fluindo manso e baço. A meu lado, frente a frente, duas mulheres próximas da idade de Balzac. Uma é loira, outra é morena. Entretêm uma conversa banal. Deitam-se a apreciar as qualidades profissionais dos seguranças privados que têm passado pela repartição pública onde trabalham. A morena revela-se loquaz e assertiva. Vê-se que é senhora de muitas palavras e poucas letras. A loira quase se limita a escutá-la; mas lá vai lançando uma ou outra frase atenta, como quem protesta a máxima dedicação à sua interlocutora. Vencido pelo torpor da fadiga, deponho o livro que me dispunha a ler. Não resisto à futilidade da conversa que se desenrola cerce. Afoito-me em olhares de viés. Quase indiscreto, entro naquele pedaço de vida rasteira. E, pouco impressionado, vou registando virtudes e proezas laborais. Eis que a morena tem uma branca. Quer referir-se ao campeão dos vigilantes mas esqueceu-lhe a graça. Está debaixo da língua. Requerida pela colega, a loira não corresponde às instâncias. Os lapsos momentâneos da memória propagam-se num fulgor contagioso de dominó! – Carvalho! Não, não, não é Carvalho... A faladora forceja, mas a cara trigueira trai-lhe a desilusão. Naquele preciso instante, digo para os meus botões: “É Cardoso. O homem chama-se Cardoso. De certeza que se chama Cardoso”. Tenho vontade de me intrometer na conversação para revelar às duas damas o nome do cavalheiro. Serei olímpico, pois estou seguro de haver submetido a Esfinge. Mas retraio-me. E detenho-me. – Ramos! Não, também não é Ramos… A morena porfia. Debalde. Como se de um sinal se tratasse, noto que a demanda do nome se demora no reino vegetal. Primeiro foi a árvore. Agora são as ramagens. E está certo. Mas é no saibro, pejado de cardos, e não ao alto, que a morena tagarela deve procurar. Nem outro desfecho – já se vê – consentiria o palavreado chão e inóspito com que estranhamente me vem enleando… De súbito, um raio e um trovão irrompem-me na alma. – Cardoso! É Cardoso. É o Cardoso. Lembras-te? A gárrula acaba de triunfar. Aliviada, exibe num sorriso franco o troféu da sua maiêutica. Dou por mim varado. No fundo, tomo agora por coisa séria o que antes me parecera apenas um jogo. Quase sem pinga de sangue, vejo quão vacilante era afinal a minha segurança de há pouco. E no entanto, eu estava certo… Talvez a coisa tenha feito o seu caminho por associação de ideias. Carvalho e Cardoso, sobre evocarem aspectos botânicos diversos, têm em comum a primeira sílaba. E, o que é mais: eu, que sou Cardoso pelo ramo materno, poderia igualmente ser Carvalho por esse lado. Na verdade, o meu avô Rogério foi o último, na linha recta, a usar tal apelido. No nome da minha mãe, Elisabeth, apenas o Cardoso, tomado a minha avó, haveria de persistir. Cardoso! Como te não hei-de estar grato, gaia morena chilreante!? Por instantes, a tua árvore frondosa e os seus ramos trémulos devolveram-me as vergônteas da progénie, fazendo-me recordar quem não devo esquecer. E, no final, vem o teu zelador excelente, com a sua homonímia de raso adusto, trazer-me a metáfora de um memento mori! Morena, ó morenita, já pensaste bem em todos os sobrenomes que se perderam na poeira dos séculos para que um homem pudesse hoje nascer? Quanto nos não diriam sobre ele!?
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