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sábado, 19 de setembro de 2009

O CAMINHO DO CAMINHO, 5

Cynthia Guimarães Taveira


Entre véus
Ainda caminhando, ou deslizando, ou voando, não sabemos, neste caminho do caminho, aconteceu um dia o nascimento de um novo sol. Habituara-se à claridade amena que sempre se fazia sentir, mesmo quando no grande caminho, o outro, reinava a mais escura das noites, ou a mais feroz das tempestades. Mais que um despertar, três vezes nesse dia, havia realizado o nascer do sol dentro de si. O primeiro sol, o mesmo de todos os dias, e igual para todos quando as meias-luas dos olhos se abrem após uma noite de sonho. O segundo despertar, aquele mais iniciático e que consiste em estar com todos os sentidos presentes em consciência (treino exaustivo e moroso, trabalho sobre si de paciência sempre em perigo de viver dormindo). Mas nesse dia, um outro sol tinha nascido, sobrepondo-se a todos os outros. Involuntário, surpreendente, espantoso. O véu que cobria os seres havia sido removido, e não sabendo de onde vinha essa percepção aguda conseguia olhar para os familiares (as primeiras pessoas que vira pela manhã) e saber imediatamente o estado em que encontravam. Não era exactamente uma leitura da essência das suas almas, mas sim, o estado em que se encontravam, como uma paragem no tempo de uma viagem sucessiva de estados de alma. Aflitos, angustiados, em harmonia.

Esse sol, mais de vigia do que de vigília, prolongou-se por algumas horas. Lembrava-se que ao descer a rua que era habitual descer a caminho do trabalho, os homens e mulheres pelos quais passava, eram vistos como de facto se encontravam. O seu verdadeiro estado de alma. Vira tristeza, mas também alegria, preocupações e a pressa como um adjectivo de estado de alma. A variedade era igual à das flores. Estranhamente esses estados de alma podiam ser facilmente adjectivados pois havia sempre uma palavra que se sobrepunha a todas as outras quando os via assim passar, esses fantasmas autênticos.

Nesse dia, o dia do terceiro sol, soube do véu que cobria o mundo e que esse véu era o véu do seu próprio olhar. A miopia não era mais do que uma metáfora de uma outra miopia. As metáforas tinham-se transformado numa Escrita Real, paralela à vida... e seria deveras interessante pensar as doenças como metáforas, como por exemplo o autismo crescente presente nas nossas crianças. Sem chegar a um fundamentalismo tradicionalista, no qual obrigatoriamente uma deficiência do corpo corresponde a uma deficiência da alma, mas observando as falhas dos corpos que se pensam feitos à imagem e semelhança de Deus, como se de uma linguagem nova se tratasse. As falhas, nessa Escrita Real, podiam ser aprendizagens a caminho de uma obra perfeita, e quando impossíveis de corrigir no corpo, por incapacidade medicinal, possíveis de corrigir na alma, por capacidade do espírito.

Mas esta parcela estreita do caminho mais tímido do mundo havia suscitado outras reflexões e estas, surpreendentemente, tinham a ver com o sonho. O que esconde e o que revela. Anos sonhando e anos aprendendo que os temores e alegrias nocturnas eram construções simbólicas de episódios vividos e que essas construções simbólicas procuravam resolver, com uma outra lógica, aquilo que desperto não havia compreendido. Os sonhos demonstram bem a nossa sede de compreensão. Nos sonhos os amigos apareciam adjectivados num símbolo. Como o fleumático que surge como um macaco falando correctamente o inglês. Outras lógicas e outros véus. Os sonhos pareciam usar véus disfarçados de máscaras para que o símbolo pudesse falar livremente com a sua lógica intrínseca. E ocorreu-lhe que vivia entre véus: o véu do seu olhar para o real, e o véu do sonho que assim, velado, procurava compreender esse mesmo real. Assim era possível sonhar que se estava desperto e desse modo alcançar o despertar, e no real, já longe da almofada, era possível ver o mundo como um sono profundo, podendo, pela graça do espírito, ver um outro real para além da realidade. A vida é estranha e maravilhosa por isso. Quantos sóis estarão ainda para nascer?

2 comentários:

  1. A PRETO E A BRANCO

    Sonhei que sou o Corte Maltese; sou um veterano de viagens à volta do Mundo, sempre a preto e a branco. Desconheço as cores, e, este mundo que rola sob os meus passos, é todo a preto e a branco. As cores não me fazem falta. O Sol brilha em todo o seu esplendor, mas não tem cor. Nasce e morre sempre a preto e a branco. Os caminhos que são caminhos de homens e mulheres, não se alarmam com a falta de cores, porque o branco é o dia e o preto é a noite, ou será o contrário?. Em cada canto do dia e da noite há corpos que vestem as roupas do amor e do ódio. Umas são brancas e outras são pretas. Se eu não fosse a preto e a branco, como descobriria qual delas representava a verdade e a mentira, sendo que a primeira é branca e a segunda é preta, ou será o contrário?. Mas neste mundo a preto e a branco, ninguém sabe o que é racismo, porque tanto se pode ser branco, como preto. Não sonho com cores, mas sonho com sonhos, onde a beleza é esta natureza indistinta e a natureza da natureza que se confunde com a realidade do preto e branco que é a fortaleza humana do espaço que o sol ilumina, tanto o dia como a noite; os caminhos que se trocam à essência dos sentidos, são simples tactos de sensibilidades, que descobrem no preto e no branco, que um sol, um qualquer sol, recheado de luz com cor, ilumina o sangue da morte que não se vive, porque a preto e a branco somos todos mortos e vivos, porque tanto se é vivo, como se está morto. Mortos e vivos vivem, lado a lado, conhecendo todos os caminhos por onde flúi a harmonia que é comum ao preto e ao branco e recusam os caminhos onde os “Desastres de Guerra” de Goya são exemplos de cápsulas onde viviam as cores. Serei branco ou serei preto, quando o véu dos mistérios demonstrar a incapacidade colorida de distinguir o piano que povoa o ar que se respira a preto e a branco. A preto e a branco sou também um sol que aquece o corpo que se enrola com o meu, no caminho da descoberta mútua que é o que vigora neste simples caminho que tanto é branco, como preto, neste sonho que sonho, sempre a preto e branco.

    Jorge Brasil Mesquita

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