António Carlos Carvalho
«Ladainha dos Póstumos Natais»:
«Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito»
David Mourão-Ferreira, in «Cancioneiro de Natal»
Veio-me à memória este poema, na noite passada, depois de receber abruptamente a notícia da morte de Carlos Pinto Coelho, com quem partilhei, durante nove anos, a aventura do «Acontece» -- um telejornal cultural diário, e que foi barbaramente assassinado por um ministro mentiroso e vil, em 2003, com pretextos meramente economicistas (já nessa altura…), ainda por cima sem fundamento algum. Uma mentira descarada e pomposamente ministerial.
Lembrei-me deste poema por razões óbvias mas também porque, quando o David (com quem eu tinha trabalhado em «A Capital») adoeceu, e nós soubemos disso no «Acontece», o Carlos pediu-me para preparar uma peça que devia entrar no ar quando se soubesse da morte do poeta.
Mas eu tinha acabado de encontrar o David na rua, com sinais evidentes da doença (era uma sombra dele próprio, mas ainda teve forças para me dizer, com um sorriso débil: «Estou resistente, não desistente…») e recuei, aterrado com a presença da morte a pairar por ali. Não consegui fazer nada, falhei como jornalista e como consultor do programa -- a verdade é essa.
Porque continuo a pensar que a morte não é uma coisa «natural», que temos de aceitar com resignação: é, sim, um absurdo e um mistério, perante a qual só podemos tomar uma atitude de silêncio impotente. Sei que agora se tornou moda bater palmas nos enterros (chegámos a isto…) como se aplaudíssemos a vitória da Morte. Mas eu sou do tempo dos funerais feitos em silêncio, reverente e comovido.
E depois veio mesmo o Natal, o primeiro de muitos outros, em que deixámos de ver o David em qualquer lugar, excepto no lugar guardado na nossa memória.
E agora chega o Natal em que já não vejo o Carlos, nem ouço a sua voz ao telefone, nem leio as suas mensagens…
Termina assim este ano mortífero, em que perdi, primeiro, três gatos, criaturas também amadas; depois o meu Pai; a segui o António Telmo; e agora o Carlos.
(Aqui a memória traz-me um outro título, terrível, do Vergílio Ferreira: «Onde Tudo foi Morrendo»).
O Homem é realmente como uma Árvore: também ele nasce, cresce (para os Céus, mesmo quando não acredita neles), dá frutos e depois apodrece ou cai de repente no chão, ceifado por um golpe de vento, por um tornado.
A minha floresta tem cada vez mais clareiras, e o sol que entra por elas já não me aquece.
Só me consigo aquecer com a única resposta possível à morte: a vida, o amor -- que é tão forte como a morte, conforme nos ensina o «Cântico dos Cânticos».
Agora tenho também de pedir a Deus que chame a alma do Carlos para junto de Si, que o faça beneficiar da sua Luz -- bem diferente das luzes dos palcos, da iluminação dos estúdios de televisão, das ilusões que inventamos neste mundo.
Assim seja.
A Cultura (grafo intencionalmente com maiúscula, para não se confundir com cultura «light»)e muito intensamente no mundo lusófono, provavelmente mais na vertente de sensibilização e divulgação, muito deve a Carlos Pinto Coelho. A sua acção em prol da qualidade, a dado passo, penso eu, foi mutilada por invejosos, uns, e por outros que gostam sempre das coisas de qualquer maneira.Veja-se a sua convicção um dia ou dois antes da sua morte, quando, na televisão, se refere às edições em Portugal.
ResponderEliminarEduardo Aroso