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sexta-feira, 15 de abril de 2011

O CAMINHO DO CAMINHO














Um xamã na cidade

Cynthia Guimarães Taveira

Tinha estranhado que tão cedo pudesse ler os livros de Dalila Pereira da Costa e entendê-los da única forma possível: com amor. Lá o mundo era diferente, era o seu mundo, onde visível e invisível se sobrepunham, onde o coração estava no centro dos pensamentos, onde não se estranhava já a total presença do totalmente outro, diferente de nós, separado de nós pelo abismo da materialidade. Lá era possível viajar para outras épocas, e entrar numa espécie de rodopio voador no âmago da essência das coisas. Lá era possível comunicar e entender sem palavras, e ver outra cidade do Porto sobrepor-se sobre esta que se debruça sobre o Douro.

Pertencia à antiga estirpe dos místicos e xamãs e nem precisou de ler romances históricos ou fantásticos. Para si nada desse outro mundo era ficção. A ficção era um intercalar entre dois mundos reais, um compasso de espera da verdade.

E passeava-se na cidade nada reconhecendo quase como do seu mundo: os sacos de plásticos desagradavam-lhe desde a infância pois os achava barulhentos, inestéticos e falsos. As luzes brancas e mortas dos hipermercados faziam-lhe arder e chorar os olhos numa espécie de alergia inexplicável: um alergia natural à civilização, talvez?

Admirava, por vezes, a liberdade que se respirava nos bairros da moda --passava tudo por ele: jovens de cabelos coloridos, piercings pendurados na carne, tatuagens com anjinhos, tigres e dragões, góticos de cabelos escorridos e escuros pendurados em cima de botas de tacões que os colocavam num castelo alto no alto de uma escarpa batida pelo vento da tempestade, rastas, de cabelos presos, sujos, torneados até pareceram lã velha tocando o fundo das costas, encimados por uma boina de croché, normalmente verde, amarela e encarnada, e ainda as pin ups de saias rodadas dos anos 50, com penteados montados e elevados, lábios de batons fortes, às vezes um sinal postiço marcando a cara, ou umas sardas pintadas com lápis na saudade do fogo arruivado, e uma grande tatuagem moderna de flores descendo pelo braço, do ombro até à mão, onde na unha um verniz encarnado com bolinhas brancas fora pintado. Sim, admirava essa espécie de liberdade estética que se respirava no bairro alto da moda, mas sabia do que tinha saudades de facto:

De gente genuína, tão primitiva como ele o era. Em “Urga, um espaço sem fim”, um filme que tinha visto num King escondido dos néons, uma criança na sua tenda nómada, tocava o acordeão: o olhar dela era genuíno, vindo do fundo dos tempos e a sua alegria a tocar era igual ao som que os pássaros fazem de manhã, acompanhando o sol no seu brilhar. Num outro filme, japonês, que falava das quatros estações, um velho mestre ensinava ao discípulo o significado da misericórdia e pintava caracteres com um rabo de um gato branco que genuinamente deixava que tal acontecesse: a cara desse velho japonês era genuína. Alguns africanos que conhecera tinham essa cara genuína, essa expressividade natural, esse rir do insólito com gargalhadas fortes que faziam doer a barriga, e genuinamente sabiam como viver. Mas havia mais nessa genuinidade que reconhecia: um certo ser primitivo, algo que passava pela pulsão inexplicável que se reflectia, sobretudo na arte -- assim como as crianças quando pegam num pincel e fazem misturas de cores inesperadas e revelam um força interior surpreendente no vigor do traço ou do pincel, facto também visível na escrita cursiva japonesa, mas também nalgum folclore, na força dos tambores dos Zés Pereiras, ou nas gaitas de foles que o arrepiavam, no jogo do pau, nas pegas das touradas, nos desenhos dos aborígenes da Austrália. Ser primitivo era ser toda a história e estar ligado a uma raiz, a uma matriz humana que atravessava as eras; a espontaneidade coexistia de algum modo com sociedades que nada pareciam mudar, e essa espontaneidade nada de rebelde tinha: não eram os grafitis estéticos que iriam preencher esse lugar, não eram as calças de ganga rasgadas, as cristas dos punks, os soutiens de fora, as cuecas à mostra com calças descendo pelo rabo que iriam substituir a genuinidade da nudez dos índios, os corpos enfeitados dos tuaregues, nem as danças de discoteca com álcool e ecstasys que iriam substituir as danças africanas, onde os pés tinham o pulsar da terra e os êxtases eram verdadeiros.

Sabia que só o homem genuíno, ainda com a memória dessa matriz, apenas e só ele, poderia conhecer outros mundos, e viajar por dentro de si, como um pássaro livre. Estranhamente, era no mais antigo que residia a verdade do ser. O resto da cidade era apenas um ilusão de liberdade feita de plástico, de moda, de prisões.

E o xamã passeava-se na cidade, sentindo-se solidário com o mundo, com a sua miséria, mas solitário na riqueza que escondia, não sabendo como a transmitir, e sem saber porque nascera assim, desta maneira, em terra do futuro. O xamã sabia que não tinha futuro, mas sabia que não poderia ser de outra maneira.

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