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domingo, 29 de março de 2009

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 6

[Álvaro Ribeiro, os géneros poéticos e o soneto]

“Dir-se-á que a poesia é mais obra do coração do que do cérebro, mas este juízo precipitado é quase sempre formulado pelos poetas líricos, para os quais a obra de inteligência, ou filosófica, lhes parece sempre com o aspecto frio da poesia didáctica. A imagem primordial do poeta lírico é o próprio eu, a personalidade do autor, que irrompe claramente no alvor da adolescência, com seu nítido narcisismo, masculino ou feminino. Tal poesia se reconhece pelas imagens mais ou menos alusivas aos prazeres da alcova, no tom elegíaco dos desejos frustrados ou no tom hínico das vitórias logradas.

A poesia de solidão, de soledade, de saudade, tende a diluir-se na sequência da experiência humana, e em breve o poeta lírico há-de reconhecer o convívio social ou a presença interrogante do Universo. A sensitividade não basta à expressão, ela impõe os seus direitos. O pensamento do poeta passa do grau subjectivo para o grau objectivo.


A descoberta do outro eu, ou de alguém que procura a visitação da musa, atinge uma consciência lúcida de que o poeta não é o só, nem o eu. A dialéctica torna-se dramática, personaliza-se e personifica-se, marcando o desejo do teatro, onde tudo pode ser fingimento ou máscara. Toma o artista a consciência do mal, do mal que nos aflige, e de que sofremos, ou do mal que aflige os outros, e de que nos rimos, deixando na equação uma incógnita a que se dá o nome de o problema de Deus.

A epopeia é já a narrativa poética do divino, nominado ou inominado, mas de literatura propensa para a inserção ou encarnação no humano. Assim interpretamos os poemas épicos, sem excluir Os Lusíadas de Luís de Camões. Descobrir ou revelar o divino, ou o seu sucedâneo, no poema épico, é sempre como discernir a incógnita das valências e das equivalências expostas na equação.

Desta tripartição evolutiva dos géneros poéticos, não ensinada nas escolas literárias, merecia-me especial atenção e agrado a forma e a matéria do soneto. Com efeito, esta maravilhosa miniatura parecia-me de todos a mais apropriada para receber o silogismo, quando o sentimento é dominado pelo pensamento. A poesia portuguesa, tão feliz como a italiana na produção de sonetos, de Sá de Miranda a José Régio oferece uma longa galeria de artistas que asseguram a glória de uma literatura.

A influência da cultura católica e do culto cristão, sendo preponderante entre nos, facilita a temática habitual de poetas menores que por sonetos confessam o seu devocionário. A crítica literária saberá distinguir o ouro e o latão, a autenticidade filosófica e a imitação religiosa. Exemplo notável é o de Antero de Quental que, em seus sonetos mais sinceros, escreveu filosofia superior à das prosas que ressoavam como informação feliz acerca de doutrinas correntes no estrangeiro.

Era-me particularmente grata a beleza do dulce stilo nuovo, em boa hora importado da Itália. A leitura do Convito de Dante, em que os sonetos são seguidos de comentários filosóficos, foi para mim um primeiro exercício de interpretação, exegese e hermenêutica. Assim procurei ver em cada soneto um silogismo, como ensinou o discípulo de Aristóteles, e ainda que o não encontrasse, dava por bem aplicada a lição suavíssima de Dante:

Ó vós que gozais de intelecto são,
Mirai a doutrina que se esconde
Debaixo do véu de tão estranhos versos.”

Álvaro Ribeiro
(in Memórias de um Letrado, Guimarães, 1977)

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