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sexta-feira, 2 de julho de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 42

António Carlos Carvalho
Esta noite sonhei com Monsieur Chouchani. Ou melhor, sonhei que alguém dizia a outro: «Isso faz-me lembrar o que dizia o meu mestre, Monsieur Chouchani.» Então o despertador tocou e acordei, ficando sem saber o resto da conversa.

Monsieur Chouchani

Imagino que este nome não diga nada a quase ninguém. Só faz soar campainhas a quem estudou a fundo a vida do filósofo Emmanuel Lévinas e do escritor Elie Wiesel -- ambos foram discípulos do tal Monsieur Chouchani. E ambos ficaram para sempre marcados por essa experiência. Lévinas e Wiesel falaram dele ocasionalmente, num livro ou noutro ou em entrevistas.

Lévinas: «No meu regresso do cativeiro num campo de prisioneiros franceses na Alemanha, conheci um gigante da cultura tradicional judaica. Não vivia a relação com o texto como uma simples relação de piedade ou de edificação moral mas como um horizonte de rigor intelectual. Gostaria de dizer o seu nome. Era Monsieur Chouchani. Tudo o que publico hoje sobre o Talmude devo-o a ele.» «Foi ele que me ensinou como buscar, como perfurar nos textos, tudo o que se podia tirar de um pedaço de texto». «Um mestre que nos mostrou o que pode o verdadeiro método. Para nós, tornou impossível para sempre o acesso dogmático, puramente fideísta, ou mesmo teológico do Talmude. Um ser excepcional, extraordinário em todos os sentidos e também no sentido literal do termo.»

Emmanuel Lévinas

Wiesel: «Ele conhecia todas as cidades, todos os países, todas as línguas. Era alguém muito misterioso. Era o saber insondável, o conhecimento infinito. De onde vinha? Vinha de todo o lado. Sentia-se tão bem na Argélia como em França, na Palestina como na América. E direi também que se sentia tão estrangeiro aqui como noutro lugar. Era simultaneamente estrangeiro, separado e soberano. » «Viveu dos cursos que dava a professores universitários nos seus campos específicos. Portanto, ensinava a filosofia aos filósofos, a matemática aos matemáticos, e a física aos físicos.» «Aceitava a ignorância, aquela que se confessava como tal. Mas o ignorante que pretendia saber, deixava-o furioso. Demolia, humilhava. Mais tarde utilizava métodos zen-budistas, devastava antes de reconstruir. Transformava-nos em peças dispersas. De repente não éramos nada, tudo o que sabíamos era menos do que nada. Mas era isso que me fascinava nele.» «Não morava em nenhum lugar, não tinha uma camisa lavada para trocar de roupa, podia passar a noite em minha casa sem se despir, dormindo uma hora ou duas; chegava a sentir pena dele. E nunca o ouvia chorar ou rir.» «Tinha uma memória fotográfica. Mas conhecia não apenas o valor da memória como também o peso da memória. Conhecia não somente o Talmude e os comentários do Talmude como também tudo o que foi escrito depois acerca do Talmude, mesmo as obras críticas.» «Ouvi-o falar durante três horas sobre o segundo versículo de Isaías: “Escutai, céus! Terra, presta atenção.“» «Podia falar durante horas, sem nunca se repetir, sobre a mesma frase, o sentido da frase, a importância da frase, a qualidade literária da frase. Tinha o sentido da poesia, a noção da linguagem. Era um artista da palavra. Um artista da magia da palavra. Nunca o vi abrir um livro. Ele próprio era um livro vivo. Conhecia tudo de cor.»
Estes e outros depoimentos encontram-se num livro (o único que conheço sobre este sábio com aspecto de vagabundo errante): «Monsieur Chouchani --L’énigme d’un maître du XXe siècle», de Salomon Malka (ed. JCLattès, 1994). Monsieur Chouchani morreu em 1968, numa pequena aldeia perto de Montevidéu. No livro de registo dos óbitos figura o seu nome assim: «Mardoqueo Bensoussan, entre parênteses Chouchani, novos parênteses, Ohnona. Nacionalidade, marroquina. Solteiro. Idade: 63 anos.»
Salomon Malka comenta: «Conhecem alguém neste mundo que tenha sido enterrado sob três nomes diferentes?»
Este homem enigmático nunca foi manchete de jornal nem notícia de telejornal, passou por este mundo quase clandestinamente -- mas marcou para sempre as vidas daqueles privilegiados que o conheceram.
É importante lembrar estas coisas numa época em que nos enchem os olhos e os ouvidos com criaturas que são apenas imagens, «cascas» sem conteúdo, mais parecendo hologramas do que seres humanos reais.
… E eu continuo sem saber porque é que tive este sonho igualmente misterioso.
Mas talvez uma noite destas o sonho tenha continuidade e eu perceba a razão de ser desta e de outras histórias nocturnas.

1 comentário:

  1. Hello
    we are making a movie about Mister Shoshani.
    Here is our website www.chouchani.com
    Could you please contact us?

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