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terça-feira, 26 de maio de 2009

DA URBE E DO BURGO, 2



O drama de Bruno

“Sampaio Bruno surge no campo das ideias, em Portugal, no começo deste século, como um caso estranho de polemista actuante e de místico teodiceico. Para melhor dizer: é um escritor republicano ao serviço de uma vigorosa vocação jacobina e ao mesmo tempo de uma ansiedade incoercivelmente religiosa.
Por isso, a sua posição, em face de alguns vultos novos do novo regime, pelo qual lutara e comera o pão amargo do exílio, seria cada vez mais difícil e, por fim, após o lamentável corps-à-corps com o autor da Lei da Separação, se tornaria nitidamente dramática.
Como filósofo, Bruno não concordava com a feição irreligiosa e menos ainda com a doutrinação por vezes ateística que precedera o advento da República e, após a revolução de Outubro, a suficiência positivista de alguns dos homens mais representativos do novo regime.
O facto de Teófilo Braga exercer as funções culminantes do governo provisório dar-lhe-ia de certo modo a intuição de que a transmutação política realizada poderia tomar, logo de início, orientações concretas em seu entender erróneas no plano do pensamento.
O filósofo temia o espírito do positivismo e considerava incompatível com o verdadeiro (ou o melhor) espírito da República as chamadas exigências ateísticas do «livre-pensamento», pois a República, a seus olhos, constituía uma forma sui generis de actuação religiosa.
No valor da liberdade e da justiça, da fraternidade e da tolerância, o autor da Ideia de Deus (tornada pública em 1903) via as condições fundamentais para que o homem – o homem ecuménico, não apenas o português – tomasse a consciência daquela transcendente missão que nas páginas finais dessa sua obra aponta: a de concorrer para que o mundo dos plurais, afastado do Ser Perfeito, se reintegre na pureza da sua fonte, ou seja na forma primordial de ser, tranquila e homogénea.
Em muitos passos da obra de Bruno se verifica, com efeito, que, para o seu espírito, a dita política constituiria uma espécie de discreta concretização da «necessidade» dialéctica (dando-se a esta palavra o mais substancial sentido da profunda metodologia platónica), de transição do mundo impuro e truncado, ininteligível e precário, para o plano do perene e do compreensível.
A acção política seria uma espécie de tácita guerra santa a favor de tudo e de todos, sem exclusão dos chamados seres inferiores. Daí o seu enérgico requisitório:
«A moral religiosa é falsa, porque é a moral do indivíduo. A moral filosófica, à maneira materialista, positivista, evolucionista, livre-pensante, é falsa, porque exclui os animais. A moral ascética é falsa, porque exclui as coisas. O ascetismo e o abandono são falsos, porque importariam ou a salvação pessoal ou, tão só, a sectarista. A não-resistência ao mal é falsa, porque, precisamente, eliminar o mal é o fim do homem, único e supremo.»
Bruno detestava, por isso mesmo, a ordem puritana e seca (tão valorizada por Aug. Comte como pelos doutrinários do autoritarismo ultramontano ou diamático) pensando que, até certo ponto, convém e sempre convirá que ao corpo social das nações haja uma certa margem de corajosa complacência para as fecundas inquietações, desentorpecedoras do vulgar hedonismo para que tende todo o regime ilusoriamente definitivo ou satisfeito.
As próprias democracias poderiam tornar-se viciosas se o seu rumo viesse a ser marcado pela agulha do exclusivo e pragmático sossego.
O filósofo tinha diante dos olhos o exemplo flagrante de algumas repúblicas modernas a convencê-lo de que o seu mal de raiz provinha de um falso conceito de progresso. Que seria da França, por exemplo, se todo o peso da sua possante burguesia, das suas caisses d’épargne, dos seus duros brasseurs d’affaires, não fosse compensado pelo ímpeto levitante dos seus poetas, dos seus idealistas, dos seus actos de indisciplina e de gratuitidade?
E outro tanto diria das democracias das Américas.
A sua obra Brasil Mental, publicada em 1898, é um vivo ataque (envolto embora nos costumados circunlóquios, tão peculiares do seu estilo esquipático e barroco), dirigido contra a mentalidade política aí dominante, apontando os paralogismos dos políticos e juristas que maiores responsabilidades lhe pareciam ter na feição pragmatista da grande república sul-americana de língua portuguesa.
Saber se o filósofo portuense viu ou não certo quanto ao Brasil, se foi justo ou injusto quanto aos republicanos portugueses de 1910, se o seu pensamento político terá sido bem fundamentado e inteligível, ou inorgânico e utópico –, é assunto que não se pode tratar num escrito desta natureza. (…)”
Sant’Anna Dionísio
(excerto de “O drama de Bruno”, capítulo XXXIII de Da Urbe e do Burgo, Lello, 1971, pp. 221 e ss.)

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