(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

RAZÃO POÉTICA, 9



OS REIS MAGOS
(in A História de Jesus, de Gomes Leal)

Nas torres, olhando os astros,
que viajam pelos céus,
Os Reis Magos viram rastros
do avatar de um grande Deus.

Leram em livros profundos,
que a Caldeia e Assíria têm,
que estava a descer dos mundos
um deus a Jerusalém.

Cheios de assombro, à janela,
mudos ficam os seus lábios!
De pé olhando uma estrela,
velam noites os reis sábios.

Não querem mais alimento,
nem com rainhas dormir.
Não tomam ao trono assento!
Não mais volvem a sorrir!

Somente olham, sem cessar,
a branca estrela brilhante
como o ceptro dominante
do rei que vai a reinar.

Abraçam a esposa amada.
Dão as chaves aos herdeiros.
Mandam vir seus escudeiros,
Os seus bordões de jornada.

Despejam os seus erários,
cheios de alvoroço imenso.
Carregam seus dromedários,
d’ouro, de mirra, de incenso.

Passam rios e cidades
cheias de estátuas guerreiras,
palácios, campos, herdades,
cisternas sob as palmeiras.


Seguem a luz do astro belo,
que as estradas lhes clareia,
até chegar ao castelo,
do rei que reina em Judeia.

Chegados ao rei cruel,
que de Herodes nome tem,
bradam: «O Rei de Israel
nasceu em Jerusalém?...»

Fica assombrado o Tetrarca,
Diz-lhes tal nova ignorar.
- «Mas, em nome da Santa Arca,
voltai, reis, ao meu solar!»

Seus olhos ficam sombrios:
vê perdido o seu tesouro,
soldados, terras, navios,
da Judeia o ceptro de ouro!

Tomam os reis seus bordões
Levantam as suas tendas.
Carregam as suas of’rendas.
Demandam novas regiões.

Passam rios e cidades
cheias de estátuas guerreiras,
palácios, campos, herdades,
cisternas sob palmeiras.

Passam colinas, rebanhos,
campos de louras searas,
quando a lua faz desenhos
no chão das estradas claras.

Passam o quente areal
que a palmeira não conforta.
Eis que a estrela pára à porta
de um decrépito curral.


Descem dos seus dromedários,
cheios de pó, os reis sábios.
Descarregam seus erários.
- Mas estão mudos seus lábios.

Rojam as barbas nevadas
Sobre o deus que adormecera.
Com as mãozinhas rosadas
Da Mãe nos seios de cera.

Seus olhos sentem assombros
e nadam cheios de choro.
- Rasgam seus mantos dos ombros.
- Dão-lhe mirra, incenso e ouro.

Esquecem sua nação,
mais seus carros de batalha.
- Seus ceptros rolam na palha!
- Seus diademas no chão!

E erguendo seus olhos graves,
perguntam então – olhando
as pombas voando, em bando,
os aldeões, mais as aves:

«É este o rei dos senhores?
Tábua da Lei das rainhas?
Por archeiros – tem pastores.
Por pajens – as andorinhas.»

GOMES LEAL

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 117


"Observando para lá de cá" por Margarida Cepêda, 2009

Cynthia Guimarães Taveira

Arcos e pontes das nossas idas
Desdobram-se nos rios densos e difíceis
Em veias expressivas
Marcam a nossa condição
De fronteiras intransponíveis

Arcadas, portais, portas
Em edifícios de pedra fria
Níveis de uma graça ou de um sonho
Construídos num só dia

Espaço marcado pela esfera
Que se ergue a metade do que somos
Quis Deus ver-nos em gomos
Em saudade, em rito de espera

Arcos, portais e dias
Erguidos em terras inesperadas
Dimensões em pedra gravadas
Demandas e etapas ultrapassadas

Escadas, arcadas e portas
Marcam a história da nossa alma
Arcos dentro de arcos
São os círculos das esferas visíveis
Erguidos pelo dom do arcano
Em que a outra metade
Vive e pensa noutro plano

Arcos, escadas, abóbodas
Rosáceas e vitrais
São o plano dos templos
Dos futuros irreais
Que deslizam e se erguem
No hemisfério que cada um guarda
Esse que é a outra metade
Da metade que nos ampara

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 116



NATAL ARDENTE *

Eduardo Aroso

No descampado do mundo
Chocam-se os corações
Pelas ruas carregadas de sinais,
Ou estranhas direcções.
O galo canta ao vento agreste
E aos pesados madrigais
Onde ouvidos soltam lágrimas
Na difícil partitura comovente.
Só no céu frio de Dezembro
Fora do tempo e nele vendo
Clareia eterna a sarça ardente!

Natal, 2010

* Poema enviado pelo autor a alguns amigos. Para os outros, aqui fica esta simples mas fraterna dádiva natalícia.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

DESEJOS DE UM BOM ANO



Para o próximo ano...

Desejamos um excelente ano de 2011 para os nossos leitores e colaboradores.

Desejamos o impossível, ou não:
Que um batalhão de anjos nos envolva e nos fale ao ouvido
Que os nossos corações brilhem na sua presença
Que consigamos escutar as mensagens
Que as consigamos decifrar, sobretudo...
Que a pouco e pouco os homens percebam
Que as suas almas são importantes para Deus
Que se multipliquem gestos de ternura
Que se multipliquem momentos de paz
Que nos invada o amor absoluto
Que assim se dê uma reviravolta na esperança
Que tudo mude para melhor
Que haja um grande milagre
Impensável
Irreversível
Surpreendente
Benevolente
Consequente

Boas Festas!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

CURSOS



Novos Cursos do MIL

Inscrições (até à 1ª sessão de cada curso): Curso IV, 40 euros; Curso V, 65 euros; Curso VI, 40 euros (direito a Certificado de Participação)
MIL: MOVIMENTO INTERNACIONAL LUSÓFONO (www.movimentolusofono.org) ; CONTACTO: info@movimentolusofono.org (967044286)

SEDE: Sociedade da Língua Portuguesa, Rua Mouzinho da Silveira, 23, 1250-166 Lisboa ; NIB: 0036 0324 99100004336 09; NIF: 509 580 432

IV
CICLO "PROBLEMÁTICAS EM ESTUDOS PORTUGUESES" (1)
(Da 2ª metade do séc. XIX ao início do séc. XXI)

1. Cesário Verde: Tradição; Tendência artística; A temática da oposição;
Influências literárias
2. Fernando Pessoa/Alberto Caeiro:
A poética da não-filosofia reflexiva ou da filosofia não-reflexiva
3. João de Araújo Correia: A arte de Contar a vida
4. José Saramago: A ficção/O fantástico na intervenção cívica romanceada

António José Borges
4 sessões, a partir de 12 de Janeiro (até 2 de Fevereiro), às quartas (18h30-20h00)

V
FINANCIAMENTO DE PROJECTOS CULTURAIS ATRAVÉS DE PATROCÍNIO E MECENATO

Objectivo:
Conhecer as metodologias e os processos necessários à angariação de financiamento através de Patrocínio e Mecenato Cultural.
Destinatários:
Organizações culturais públicas ou privadas: associações, cooperativas, fundações, estudantes, artistas e todas as pessoas interessadas em obter informação sobre Financiamento de Projectos Culturais através de Patrocínio e Mecenato.
Metodologia:
As sessões serão maioritariamente divididas em períodos expositivos e de debate, com recurso a "casos de estudo" e exercícios, Encoranjando-se os formandos a desenvolverem uma proposta/dossier de patrocínio ou mecenato ao longo do curso bem como à sua discussão/apresentação.
Materiais Pedagógicos e certificado:
Será entregue um Manual completo do curso, bem como declaração de participação no curso. É igualmente disponibilizado o acesso online a documentação em formato digital sobre Marketing da Cultura e Patrocínio/Mecenato.

Rui Matoso
15 horas (5 sessões de 3 horas),
Segundas e Sextas-feiras, das 18h30 às 21h30. Início: 10 Janeiro Fim: 24 Janeiro

VI
LER NAS PEDRAS

... E se fosse possível aprender a ler não apenas as letras do alfabeto mas também os elementos de leitura das nossas capelas, igrejas, mosteiros, conventos, monumentos de pedra -que os seus constru tores, há tantos séculos, con ceberam como autênticos livros de pedra?

Durante quatro sessões, sem sairmos daqui, mas vendo imagens e reflectindo sobre elas, vamos viajar no tempo e no espaço deste Portugal que tão mal conhecemos, tentando decifrar as mensagens escritas nas pedras dos monumentos da chamada Pré-História e das arquitecturas Românica, Gótica e Manuelina – correspondentes a três fases fundamentais da nossa História.
E talvez seja possível acabar por descobrir que nem tudo vem nos livros das nossas bibliotecas, esses outros livros feitos de pa pel e letras de tinta…
As letras das pedras contam-nos outras histórias, feitas de imaginação e de sonhos ainda não concretizados.

Primeira Sessão: Relação entre os monumentos megalíticos e os monumentos das artes consideradas históricas. Arte Românica em Portugal.
Segunda Sessão A arte Românica em Portugal e a sua linguagem própria, surpreendente de imaginação, em relação com os Bestiários medievais e com as influências orientais.
Terceira Sessão A arte Gótica, a luz e o movimento das pedras para os céus.
Quarta Sessão Síntese da arte Manuelina num momento de refundação do país.

As sessões serão ilustradas mediante a projecção de imagens dos monumentos, que fazem parte da colecção particular do formador. Assim, sem sairmos do mesmo lugar, viajaremos no tempo e no espaço...

Objectivos: Chamar a atenção para o nosso património construído an tigo – capelas, igrejas, conventos, mosteiros, com exemplos no Norte, no Centro e no Sul -, geralmente mal conhecido, e cujas pedras têm inscritas mensagens importantes para todos nós, sejamos ou não religiosos. A intenção deste curso breve é ensinar «a ler as pedras» desses monumentos.
Destinatários: Todos aqueles, sem limite de idade, que sintam curiosidade em tentar perceber o que esses monumentos representam, sobretudo o que significam aqueles portais, aquelas escul turas, aquelas estranhas gárgulas, os desenhos daquelas ar quitecturas, os homens que os construíram de tal modo que ainda hoje estão de pé, tantos séculos depois. A linguagem deles.

António Carlos Carvalho
4 sessões, a partir de 11 de Janeiro (até 1 de Fevereiro), às terças (19h00-20h30)

VII
CONTOS QUE CURAM

Como utilizar os contos como ferramenta de mudança
Comum às diversas culturas, as histórias e a sabedoria popular oferecem informações sobre regras e conceitos e ilustram a fantasia milenar dos povos, permitindo o desenvolvimento de conceitos, valores e habilidades na resolução prática de conflitos.
Mediante as histórias, preconceitos, ressentimentos e mesmo as resistências são reduzidos, promovendo a mudança educativa das pessoas, em contexto terapêutico, escolar laboral ou mesmo familiar.
Como mediadores entre as pessoas (terapeutas e pacientes, líderes e equipe, docentes e discentes, membros da mesma família e/ou casal), permitem que o ouvinte se identifique, e, assim, fale de si, das suas dificuldades e dos seus conflitos, e dos seus desejos, pois o conto não “ataca” diretamente – nem a ele nem aos seus conceitos ou à sua auto-estima.
Essa mudança de posição ajuda à reinterpretação de conceitos e, sobretudo, ampliá-los, numa relação com os outros.

Conteúdo programático
1. Apresentação:
a. Levantamento de conhecimentos prévios dos participantes;
b. Apresentação e consulta conjunta do programa de formação;
c. Partilha de bibliografia, histórias e autores conhecidos.
2. Introdução à teoria das histórias:
a. Alguns modelos explicativos sobre as histórias;
b. Padrões interculturais nas diversas histórias;
c. As funções das histórias.
3. As histórias na prática:
a. Que história pode ser utilizada em que contexto;
b. As histórias na educação;
c. As histórias nas organizações;
d. As histórias na psicoterapia;
4. Avaliação final:
a. Avaliação dos formandos, através da seleção de um contexto ou um caso, real ou fictício, utilizando uma determinada história, justificando a escolha;
b. Avaliação da atividade formativa, através do preenchimento de ficha escrita de avaliação do curso, dos conteúdos, dos módulos e do facilitador pelos demais participantes;
c. Debate final sobre a atividade formativa, aspectos a melhorar e temas a aprofundar.
Objectivos do curso
No final do curso, os participantes irão estar munidos com um depósito superior de histórias que deverão ser capazes de utilizar em contextos diversos (educativo, organizacional e/ou psicoterapêutico), no momento oportuno.

Destinatários
Profissionais e estudantes e das áreas de diversas áreas, num número mínimo de 10 participantes inscritos no curso.

Sam Cyrous
4 sessões, a partir de 13 de Janeiro (até 3 de Fevereiro), às quintas (16h00-20h00)

Sam Cyrous (shcyrous@gmail.com) é Psicólogo, Mestre em Psicoterapia Relacional e membro da International Academy for Positive and Cross-Cultural Psychotherapy, fundada por Nossrat Peseschkian, criador do modelo de Psicoterapia Positiva e Transcultural e especialista na utilização de histórias como ferramentas psicoterapêuticas.

sábado, 18 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 115



O EQUÍVOCO DA CHAMADA «MORTE DA EUROPA»

Eduardo Aroso

«A esperança na salvação do mundo pela Europa nada tem a ver, no espírito de Carlos Aurélio, com finanças ou economia. Como a ciência económica nada tem resolvido até agora, das duas uma: ou a ciência económica não é ciência ou aqueles que dedicaram toda a vida a estudá-la ainda não conseguiram penetrar nos seus misteriosos segredos».
Do prefácio de António Telmo à obra Mapa Metafísico da Europa, de Carlos Aurélio (ed. Fundação Lusíada)

É curioso começar por observar que não se diz a morte da Ásia, ou a morte da África, quando actualmente se repete incessantemente a morte da Europa. Só o que nasce pode perecer. Assim sendo, é caso para perguntar se os dois primeiros continentes, imunes à degeneração, ainda não vieram à luz do mundo (!), ou se estão todos bem de saúde, de modo a não sofrer da dita fatalidade. Ou existe algo do nosso continente que não pode escapar a essa implacável lei natural?
Não me parece que a Europa de Bach e de Beethoven, de Gaudí e de Rodin, de Victor Hugo, de Camões e de Dostoiévski, de Leonardo da Vinci e de Rafael, de Newton e Einstein, de Kant e de Hegel, possa morrer definitivamente, como se as obras destes pioneiros não servissem para mais nada. Se nos interrogarmos se a Europa das ciências e das humanidades se encontra, há já muito, diluída por outros continentes, é evidente que a resposta é fácil. Mais difícil é apurar o que de melhor da cultura europeia tem ajudado ao desenvolvimento de outros povos, no contraste actual de certa barbárie feita com as cinzas daquilo que o velho continente não superou, ou que outros aproveitaram em avassalador materialismo. É certo que, ou por premeditada e obscura intenção de alguns autores, ou pela ligeireza informativa e cariz político com que se fazem certas notícias, tem-se decretado a morte do nosso continente. Mas, seja como for, se houver morte da Europa, a esta só lhe resta renascer de si mesma. Isto pode não passar pela cabeça de muitos, como não passou ao tempo do Renascimento que, depois do Direito Romano e da teologia da Idade Média, ainda nasceria de novo para o ideal grego nas suas várias manifestações.
Seria numerosa, se mencionada, a lista de grandes construtores do mundo ou espíritos da Grande Obra. O que nos legou uma Maria Montessori, um S. Francisco de Assis, uma Joana d’ Arc e um Bandarra, serão ainda um sol do futuro, ao contrário de muitos meteoros do presente que nos caem em cima, tapando-nos o céu que guarda estrelas muito mais perenes. A haver “cadáver” Europa só pode ser o da sociedade de negócios, em partes desiguais, chamada C.E.E., que já não usa aquela típica sigla S.A.R.L. (sociedade anónima de responsabilidade limitada). Não tem havido, sobretudo nos últimos tempos, a responsabilidade dos sócios maioritários para com os restantes, desabando, como consequência, sobre milhões de seres que, apesar de existir uma UNESCO, observam impavidamente a mutilação das culturas regionais e nacionais com a perda do melhor que cada povo tem: o seu casticismo e singularidade. Por outro lado, vêem desaparecer a chamada classe média, a única que pode proporcionar a formação das elites no cultivo da alta cultura, como garante civilizacional. Nisto tudo impera o domínio obscuro através da tecnologia a que também se chama globalização, não sei se igual ou diferente daquela no tempo do Império Romano que utilizou o latim como “instrumento de ponta”.
Seria pouco razoável admitir que a História da Europa não tem traços negros, fragilidades várias, corpo de civilização sujeito ao mesmo que um ser humano tem, a partir de certa idade: o de partir facilmente uma perna ou um braço ou estar sujeito a outras mazelas próprias dos anos. Todos sabemos que muitos europeus cultos de séculos passados acreditavam que certos povos indígenas mais se assemelhavam a bestas de carga do que a seres humanos, homens do velho continente, da sociedade e da política, e representantes eclesiásticos que também tiveram as suas “guerras santas”, com mais perdão, diga-se, do que aquelas que, passados vários séculos, hoje ainda se fazem, num tempo que devia ser outro, mais à frente e mais acima. Se a tecnologia, para o bem e para o mal, globalizou o mundo ao arrepio dos navegadores portugueses que o ligaram e deram a conhecer muito antes, os que hoje exploram o planeta e o injectam de perversidade, sejam europeus ou não, e, directa ou indirectamente, lhes terá servido o Direito Romano e o que Platão e Newton legaram, ainda terão de abrir os velhos livros, se não se quiseram extraviar ainda mais. De modo nenhum para voltarem a fazer comboios a vapor ou outro engenho ultrapassado; não, por certo, os livros de economia que estão praticamente desactualizados a cada ano que passa, mas para perceberem que a Vida encontra-se na Vida, numa (re) leitura ao jeito de quem, por exemplo, olha vezes sem conta o deslizar de um belo rio, numa manhã de primavera, e nunca se cansa de o fazer.
Ainda que toda a experiência seja bem precioso e inalienável quando assimilada, pouca sabedoria o futuro imediato poderá retirar desta sociedade de negócios chamada C.E.E., já com sucursais em todos os continentes, que, afinal, e paradoxalmente, não emprega os seus sócios (leia-se os muitos filhos, havendo apenas lugar para os afilhados). Essa falange europeia – felizmente não toda – orgulhosa, jacobina e sobretudo plutocrata, terá ainda de aprender muito com Eckhart e Leibniz, inspiradores de filósofos, pensadores e até (pasme-se) de cientistas do mundo quântico, ao mais alto nível. Aprender ainda com o primeiro ecologista do planeta, o místico S. Francisco de Assis, livre de dinheiros em bancos, de política corrupta e sindicalismo rasteiro. O seu sentimento - mais que sentido - ecológico não se preocupava com difusas “diversidades actuais” e “ordenamentos territoriais”: o Amor é que ordenava (ordena), verdadeiro sustento de tudo, do homem inteiro na natureza toda, a sensível e a transcendental, bem patente no imortal poema que nos deixou. De tal modo este Amor foi grandioso que a ciência natural lhe deve grande impulso, para já não falarmos da despojada audácia dos franciscanos (e não outros) que iam nas primeiras naus portuguesas da demanda, factos históricos estes bem observados pelo nosso Jaime Cortesão.
Se esta Europa de sempre não pode morrer, há-de ter cirurgia plástica e limpeza interior e externa do corpo, isto é, adoptar um outro paradigma que deponha humildemente o ideal grego, no sentido filosófico (não propriamente a cultura helénica), acrescido de tudo o que o velho continente fez de alquimia civilizacional ao longo das épocas; erguer a luminosa esperança no altar das mais altas expectativas: humilde e laborioso, de justeza mais que de justiça, e de fraternidade mais que de sociabilidade.
É consolador verificarmos que na Europa de hoje há assistência médica mais eficaz e imediata a um sem-abrigo, se compararmos com a ajuda dada a um acometido de peste ou lepra, em séculos passados. Porém, isso não pode ser emblema de orgulho e descanso de consciências, pois nascemos e vivemos no tempo que é o tempo de cada época. A questão é saber se esse sem-abrigo tem alguém que lhe dê uma palavra de consolo (já que o que é oficial não consola ninguém) nas paredes bem limpas e desinfectadas de um hospital, e se a Europa das massas letradas, que sobem nas estatísticas de mestrados, doutoramentos e outras qualificações, ainda sabe o que foi a Europa, no que ela se tornou e o que ela ainda pode vir a ser. Se nos ativermos unicamente aos resultados que nos dão nas televisões, das habituais mostras de inquéritos, concluiremos sem dúvidas que a esmagadora maioria nada sabe do velho continente, nem sequer, provavelmente, o nome do rei-fundador ou do primeiro presidente da república da sua nação.
Assim como Fidelino de Figueiredo viu «As duas Espanhas», o geógrafo antigo Al-Rasis desenhou duas Ibérias, a dos rios que correm para o Mediterrâneo e a dos rios que correm para o Atlântico, também nós podemos ver duas Europas, não já a eslava e a do ocidente, mas a dos alicerces de perenidade, de sinal bem visível no Renascimento (Fénix sobre todos os escombros) e a Europa-Sociedade que hoje fabrica “escravos de ordenado mínimo” e alguns capatazes bem pagos. Uma dessas duas Europas, a da maquilhagem que se desfaz depois da recepção e da festa dos convivas da dita sociedade, é a sombra tétrica da verdadeira que não pode perecer na sua inteireza.

Quase Solstício de Dezembro, 2010

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 48


Baobá Rei (árvore de Moçambique)

António Carlos Carvalho

«Ladainha dos Póstumos Natais»:

«Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito»


David Mourão-Ferreira, in «Cancioneiro de Natal»

Veio-me à memória este poema, na noite passada, depois de receber abruptamente a notícia da morte de Carlos Pinto Coelho, com quem partilhei, durante nove anos, a aventura do «Acontece» -- um telejornal cultural diário, e que foi barbaramente assassinado por um ministro mentiroso e vil, em 2003, com pretextos meramente economicistas (já nessa altura…), ainda por cima sem fundamento algum. Uma mentira descarada e pomposamente ministerial.

Lembrei-me deste poema por razões óbvias mas também porque, quando o David (com quem eu tinha trabalhado em «A Capital») adoeceu, e nós soubemos disso no «Acontece», o Carlos pediu-me para preparar uma peça que devia entrar no ar quando se soubesse da morte do poeta.
Mas eu tinha acabado de encontrar o David na rua, com sinais evidentes da doença (era uma sombra dele próprio, mas ainda teve forças para me dizer, com um sorriso débil: «Estou resistente, não desistente…») e recuei, aterrado com a presença da morte a pairar por ali. Não consegui fazer nada, falhei como jornalista e como consultor do programa -- a verdade é essa.

Porque continuo a pensar que a morte não é uma coisa «natural», que temos de aceitar com resignação: é, sim, um absurdo e um mistério, perante a qual só podemos tomar uma atitude de silêncio impotente. Sei que agora se tornou moda bater palmas nos enterros (chegámos a isto…) como se aplaudíssemos a vitória da Morte. Mas eu sou do tempo dos funerais feitos em silêncio, reverente e comovido.

E depois veio mesmo o Natal, o primeiro de muitos outros, em que deixámos de ver o David em qualquer lugar, excepto no lugar guardado na nossa memória.

E agora chega o Natal em que já não vejo o Carlos, nem ouço a sua voz ao telefone, nem leio as suas mensagens…

Termina assim este ano mortífero, em que perdi, primeiro, três gatos, criaturas também amadas; depois o meu Pai; a segui o António Telmo; e agora o Carlos.
(Aqui a memória traz-me um outro título, terrível, do Vergílio Ferreira: «Onde Tudo foi Morrendo»).

O Homem é realmente como uma Árvore: também ele nasce, cresce (para os Céus, mesmo quando não acredita neles), dá frutos e depois apodrece ou cai de repente no chão, ceifado por um golpe de vento, por um tornado.

A minha floresta tem cada vez mais clareiras, e o sol que entra por elas já não me aquece.

Só me consigo aquecer com a única resposta possível à morte: a vida, o amor -- que é tão forte como a morte, conforme nos ensina o «Cântico dos Cânticos».

Agora tenho também de pedir a Deus que chame a alma do Carlos para junto de Si, que o faça beneficiar da sua Luz -- bem diferente das luzes dos palcos, da iluminação dos estúdios de televisão, das ilusões que inventamos neste mundo.

Assim seja.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

SABEDORIA ANTIGA, 4



Alexandra Pinto Rebelo

Foi-me mostrado, desde sempre, que o mundo clássico, isto é gregos e romanos, tinha um sentido religioso um pouco perturbador.
Aquela gente, capaz de escrever verdadeiros monumentos tais como a "Íliada" ou a "Eneida", referências literárias de uma Europa que ainda não se cansou de as estudar; capaz de lançar alicerces fortíssimos tais como o conceito de democracia, os preceitos da filosofia, da história, do direito e tantos outros; poetas-intérpretes tão sublimes da alma humana que, até hoje, ainda usamos os seus mitos como legendas grandiosas da nossa pequenez tais como o "complexo de Édipo", a "caixa de Pandora", o "calcanhar de Aquiles"; artistas tão surpreendentes que, passados quase mil anos de silêncio, conseguem ressurgir em indicações estéticas para o Renascimento... aquela gente, dizia, que fez tudo ou quase tudo em grande o que uma grande civilização pode fazer, tinha apenas um instinto religioso primitivo, ramalhete de terrores inspirados pelas severidades atmosféricas e de loucuras desculpadas pelos estados psicóticos induzidos.
Nesta leitura há qualquer coisa, então, que não encaixa. Não é necessário pensar muito para compreender que a antiguidade clássica foi julgada pelos vencedores, ou seja, pelos cristãos. Pela segunda vez na história reforçava-se a ideia de que só existia um deus verdadeiro. A minha expressão "reforçar a ideia" é, claro, um eufemismo. Existindo só um deus, todos os outros se tornavam falsos, por seu decreto. Os adoradores dos outros, podiam tomar vários adjectivos desde os mais simpáticos como patetas, aos mais benevolentes, como iludidos, até aos mais perigosos, como heréticos. Estes adjectivos mais perigosos eram geralmente acompanhados de uma acusação que levava à morte. O percurso até ela era, geralmente, muito humilhante, perturbador e doloroso.
Pretendo com tudo isto deixar só uma pequena nota, por hoje. em relação à religião clássica. Aquela gente que a praticava tinha exactamente os mesmos instintos religiosos de todos os povos. Os seus deuses funcionavam tão bem como os de quaisquer outros. Torna-se comovente para nós, hoje, lermos as suas inscrições nos templos. Podermos partilhar dos seus desejos íntimos, do seu louvor, dos seus desabafos para com os seus deuses é uma espécie de bênção.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 114


Caravela
Cynthia Guimarães Taveira

Foi a caravela
Que tudo viu
Seus olhos de proa
Foram quem tudo sentiu
De braços erguidos
Em jeito de velas
Furou ventos, marés
Ouviu os sentinelas
Foi a caravela quem sentiu o frio
Sua madeira tosca
Rangendo nos passos do mar
Ergueu-se acima da onda
Voou, deixando a espuma a dançar
Foi a caravela a esperar
Pelos homens de braços cheios
Vindos de longe para embarcar
Foi ela quem contou
Os sóis dos dias
As estrelas, as gotas de mar
Foi ela quem soube
De melhor porto para orar
E quem conheceu os homens
Pelo seu cantar
Foi ela quem nos disse
Onde podíamos amar
E trocou o nosso coração vivo e quente
Por si mesma, no seu lugar

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

ENIGMAS, 3


"Melancolia" de Dürer

Rectas e mundos paralelos
David R. Nelson, fisíco da Universidade de Havard, resumiu do seguinte modo o impacto dos cristais de simetria pentagonal no pensamento teórico:

"Sobre certos aspectos, esta descoberta fez, em relação a uma das ciências físicas, aquilo que a descoberta da geometria não euclidiana tinha feito, em relação às matemáticas: demoliu um axioma e dissipou uma certa presunção. Criara-se o hábito de pensar que as linhas paralelas nunca se encontravam e que os cristais tinham de ser bem educados e apresentar, sempre, estruturas periódicas. Pois bem, agora sabemos que as linhas paralelas, de facto, se encontram sobre uma esfera e que os cristais icosahedral phase possuem estruturas ordenadas, mas não periódicas"

in "515, O Lugar do Espelho" , Lima de Freitas, Ed. Hugin, 2003, pág. 351

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 113



APOCALIPSE DE URGÊNCIA
Eduardo Aroso

Ao Pedro Martins

Eis que se fazem outras as mesmas coisas
Onde do lume da terra já são as bocas
Puras renascidas na palavra do Espírito Santo.
Das águas do presente sem memória
Há frescura subindo como as manhãs
Às estrelas mais altas irradiando.
Eis a mão de Deus no afago
Da tarde dourada nunca vista
Para o silêncio das nocturnas sinfonias
Onde nascem flores no pântano da solidão.

Crianças de sorriso cintilante,
Ó anjos intocáveis,
Bússolas de todo o dia,
Delas ninguém se distrai.
Eis que se fazem outras as mesmas interrogações
Na inquietação do tempo equidistante
E a chuva ácida quando cai
Traz o mel das constelações.

Meu berço sem hiatos,
Nave de todas as horas,
Fénix de todas as provações,
Sou o simples vento dos prados,
Boca límpida de todas as orações.
Plantarei uma espada como árvore
Virada à alma dos homens
Que se venderam e vendaram nesta geração,
Para que sintam definitivamente o verde
E os actos subindo, talo fresco de bondade,
E a graça virgem ansiada das águas
Do primeiro dia da Criação
Ainda vindouro para a verdade.

3-11-2010

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

ACONTECEU...



Realizou-se no dia 3 de Dezembro, na Escola Superior de Educação Almeida Garrett, em Lisboa, a primeira tertúlia que inaugurou o CELAS – Centro de Estudos de Lusofonia Agostinho da Silva. Subordinada ao tema «Educar, para quê?», foram oradores o Prof. Paulo Borges e Eduardo Aroso. Na sessão estiveram presentes algumas dezenas de pessoas: alunos, professores e outras pessoas. A sessão encerrou-se com um apontamento musical em guitarra portuguesa e guitarra clássica, respectivamente por Álvaro Aroso e Eduardo Aroso, com peças originais do primeiro. O CELAS, no âmbito da Escola Superior de Educação de Almeida Garrett, tem como “patrono”, o poeta e incansável Prof. Carlos Carranca, docente daquele estabelecimento de ensino.

SABEDORIA ANTIGA, 3



Eça e os sinais de reverência

Alexandra Pinto Rebelo

A maior parte dos portugueses limita-se a ter "conversas de corredor" sobre os autores portugueses no ensino secundário. Não há tempo para se aprofundarem questões, para considerar o escritor uma pessoa inteira e, como tal, nada semelhante a um único bloco coerente. Eça é um positivista, tenta-se retirar disso as provas mais do que batidas em "Os Maias" e ponto final.

A minha formação universitária é em literatura. Foi só num dos últimos anos do curso que me apresentaram os outros Eça. Aquele inicial, romântico, mais tarde reunido num volume com o cómico título de "Prosas Bárbaras"; o jornalista que, tendo à porta do prédio o paquete esperando a sua crónica para ser publicada no jornal e que, não tendo nem texto nem ideia do que iria escrever, resolveu arrasar o bei (governante) de Tunes, capital da Tunísia; o jovem viajante, escrevendo páginas emocionantes sobre a sua viagem ao Egipto; o homem religioso que, quase no fim, escreve sobre a vida de santos.

Há dois momentos da sua vida que considero comoventes para nós enquanto leitores. Leitores sobretudo da personalidade de um escritor. O primeiro momento é descrito por Raul Brandão no seu livro "Memórias", ocorrido na viagem que Eça faz ao Egipto acompanhado pelo seu futuro cunhado, o Conde de Resende. Ambos assistem à missa no túmulo de Jesus, em Jerusalém. Eça, profundamente emocionado pela situação, cai de joelhos em reverência. Quando o Conde de Resende levantou os olhos, dois ou três mil peregrinos tinham imitado aquele impulso emotivo, ajoelhando-se da mesma forma.

Outro episódio, mostrando o mesmo sentido de devoção profunda, é nos relatado pelo próprio Eça de Queirós, em "In Memoriam", colectânea de textos publicada em 1896 em memória de Antero de Quental. O testemunho de Eça tem o título sugestivo de "A um génio" que era um santo. Descreve como, andando em Coimbra, ainda estudante, numa noite macia de Abril ou Maio avistou sobre as escadarias da Sé nova um homem, de pé, que falava. "O homem com effeito cantava o Ceu, o Infinito, os mundos que rolam carregados d´humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura(...)". Deslumbrado, o jovem Eça toca o cotovelo de um camarada que lhe murmura entre gosto e pasmo: "- É o Antero!..." Sentados nos degraus da igreja, outros homens embuçados, escutavam, em silêncio e enlevo "como discípulos". "Então, (...) destracei a capa, também me sentei n'um degrau, quasi aos pés de Anthero que improvisava, a escutar, n'um enlevo, como um discípulo. E para sempre me conservei assim na vida."

sábado, 4 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 112


Portugal
Cynthia Guimarães Taveira

Perdeste a memória
e a esperança
Perdeste a glória e o desejo
Perdeste a honra e a espada
Perdeste o mar e o sonho
Perdeste o esquadro e o compasso
Perdeste a juventude
e o sentido da diáspora
Perdeste as naus no grande mar
Perdeste a voz e o cantar
Perdeste a esmola de Deus
Perdeste o dom e o sacrifício
Perdeste os tesouros e os sorrisos
Perdeste a alma na lama
Perdeste a alegria e o sabor
Perdeste o saber e o ardor
Perdeste os filhos que hão-de vir
Perdeste a lança e o pendor
Perdeste a vitória e o dragão
Perdeste a virgem e o anjo
Perdeste a viagem a fazer
Perdeste a veste azul da bandeira
Perdeste a força da maré
Perdeste o gesto do sol posto
Perdeste o encanto do sol a nascer
Perdeste os cabos da dor
Perdeste a esperança no amor
Perdeste os poetas sem pudor
Perdeste a revolta de saber ser
Perdeste os cravos e o sangue
Perdeste Cristo nas escadas
Perdeste as escadas dentro de ti
Perdeste o rasto da serpente
Perdeste a caça ao outro mundo
Perdeste a graça
Perdeste a língua
Perdeste o escudo
Perdeste o nome
Perdeste tudo

Perdeste?

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

É NOTÍCIA...

NO PRÓXIMO SÁBADO, ÀS 15:00, NA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SESIMBRA
Lançamento da edição fac-similada da 1.ª série da revista A Águia, com a chancela da Al-Barzahk, com a presença do editor M. N. Vieira. Apresentação de Pedro Martins.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 111




(RE) CRIAR UM MITO PORTUGUÊS
Eduardo Aroso

As contradições do predomínio do pensamento lógico-racionalista, que ainda persiste, só poderão resolver-se, ou pelo menos atenuar-se, pela (re) criação de um mito. Fernando Pessoa disse que a sua maior ambição era a de ser criador de mitos. Natália Correia respondendo, de algum modo, ao apelo do surrealismo, escreve na antologia de poesia que organizou dedicada a esta corrente artística: «Não se trata de reabilitar os mitos legados pelo passado, mas de restabelecer as forças que nutriam a consciência mítica, utilizando-as para consumar o parto difícil de um mito moderno que a nossa época exige como única solução possível para as precárias condições de vida que nos oferece». Assim, à autora parece essencial o sopro ou espírito do mito para incubar um outro na contemporaneidade, o que acaba por ser o reconhecimento de algo presente na Tradição.
Enquanto que nesta primeira década do século XXI, que Natália Correia já não chegou a viver, o sentido do precário, de que nos fala, está quase todo ele atolado nas condições de sobrevivência alimentar, habitacional e pouco mais, já na sua época – que não foi substancialmente diferente da actual - a criadora de versos entre a ousadia lírica, a ironia e o mítico, reclamava outras condições de vida para a precariedade dominante, ontem como hoje, no sufoco do compulsivo pensamento lógico-racionalista.
Se (re) criarmos um novo mito que tenha o Sol como o maior herói de sempre, dispensador de alimentos, saúde e elevada inspiração para tudo o resto que a vida requer, é possível que ajude a solucionar o grave problema da chamada sustentação social. Assim, no presente mundo em que os habitantes vivem mais anos que no passado, eliminadas muitas doenças pelo científico aproveitamento solar e desenvolvimento da medicina, e na possibilidade de a idade gerar sabedoria, talvez a renda da casa, electricidade e algo mais estejam pagos.
Mas também não seria despicienda a ideia de um mito marítimo. E por que não um contra-mito? Bastaria que o sentido do medo e do não agir, na figura do Adamastor, se volvesse um Anjo luminoso. Mas esta é uma impossibilidade manifesta, a de haver apenas uma das partes, isto é, um contra-mito que não suponha um mito. Como se verá de seguida, temos tido esse contra-mito, face a face, por certo mais renhido em determinados momentos da nossa História. Tanto o ensino oficial como a grande maioria dos intelectuais portugueses têm recusado o mito do Desejado, embora ele subsista nos subterrâneos da nossa psique. Esta atitude, que vem de longe, foi-se estratificando na sociedade portuguesa, de tal modo que hoje temos uma egrégora que ronda as instituições: a da atitude imediata de obstrução, a do não, a do «isso é muito difícil», a de preencher mais um papel, corporizando assim um estado de espírito que, face a uma ideia ou projecto (sobretudo se for de índole portuguesa) logo surjam indesejados.
E, tal como entre todas as tradições mitológicas onde o pano de fundo é a eterna luta das forças das trevas contra as forças da luz, podemos conceber entre nós (não terá já existido desde o distante passado?) o confronto entre o Adamastor e o Arcanjo de Portugal. Mas não nos iludamos: apesar de vencido, o inimigo volta sempre, para provação do vencedor. Daí também o sentido destes tempos de decadência de Portugal. Resta-nos a esperança de que no combate entre as hostes das trevas e as da luz, somos e sempre seremos lusíadas!
Num ciclo já dilatado, em que Portugal foi descendo aos infernos ou corredores mais escuros da existência (fase involutiva do mito) só a luz solar - cujo prenúncio pode ser de novo um espiralado voo de águia (quem sabe se, desta vez, a imediata captação energética através da alma!), poderá ser redenção para tanta escuridão. Mas não tem sido a falta de claridade o pior dos cenários, pois na ausência há sempre ecos de alguma presença, mas a humilhação e a dilaceração provocadas à pátria portuguesa, cuja alma está hoje aturdida e por isso impedida de escutar e compreender as palavras de Agostinho da Silva: «o tempo que vivemos, se for mesquinho, amesquinha o eterno."

Eduardo Aroso
Outubro 2010