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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O CAMINHO DO CAMINHO, 10

Cynthia Guimarães Taveira




Sentidos
Decidira, naquele dia, abandonar a cidade e partir em passeio para a montanha. Dava passos vagarosos, tentando entender o chão que pisava à medida que subia. A cidade ia ficando longe, acabando por parecer um padrão de tecido rosado e cor de tijolo com súbitos pontos verdes. A cidade tornava-se mais presente porque já era uma memória. Ascendia com todo o corpo. A primeira diferença que sentira com mais intensidade foi a ausência de ruído. Não havia vozes, gritos, buzinas, motores, músicas de fundo. Apenas esse imenso deserto sonoro. A tal ponto que os ouvidos pareciam zunir por falta de hábito. E o canto de um pássaro caiu nesse silêncio como uma gota num lago tranquilo. Ouvia essa melodia cristalina e lembrou-se que ouvia no seu dia a dia e nada escutava. Estava surdo para o mundo. O canto parecia um milagre, melodia simples sem matemáticas que a sustentassem. O número e as notas, as pausas eram a voz directa da natureza sem pensamentos e faziam-no vibrar a partir do coração. A ave entrou por ele até ao ponto de lhe faltar a consciência de si próprio. Por instantes ele era o canto. E a ave voou. Continuava agora a caminhada reflectindo no som. E se as palavras dos homens fossem como aquele canto? E se, também elas tivessem implícita a capacidade de entrarem nos corações como o canto daquela ave.? O que distinguia essa melodia vinda assim pura da natureza, das palavras formadas por articulações de sons treinadas por milénios. Que efeito teriam elas se, lá em baixo, ele conseguisse, de facto, escutar?
Olhava agora para um pessegueiro que parecia solitário nesse deserto ascendente em que se encontrava. Apeteceu-lhe um fruto, e lembrou-se dos pomos de ouro. Dera um valor simbólico quase sem querer a esse pessegueiro. E provou um fruto que nada tinha de proibido. Era todo oferta da terra. Era todo sabor e sumo. Era um néctar dos deuses. E lembrou-se dos pêssegos que provara, lá em baixo na cidade. Em nada se pareciam com este provado em segredo no deserto. Somas, elixires, hidromel, bebidas dos deuses. Provara o suco de um pêssego, um simples sabor, subitamente aberto do fruto. Pela primeira vez saboreara totalmente e isso fizera-o sentir que os homens são intermediários entre o céu e a terra. A subtileza tornara-o volátil e esta era irmã do voo.
E o mesmo acontecera com a rosa nascida ali mesmo à sua frente, em tempo surpreendentemente rápido e que o fizera inspirar o aroma afinal desconhecido de uma rosa. Só no deserto se pode sentir o aroma de uma rosa, pensara. E o toque frio e quente em simultâneo de uma pedra. E a visão transcendente de uma cascata que parecia transfigurar-se numa eterna luz que jorrava, caía e indicava o infinito. Nesse passeio aprendera que havia sentidos nos sentidos como se estes se tivessem mantido ocultos até aí. Sim, ouvimos mas não escutamos, comemos e não saboreamos, cheiramos mas não inspiramos, tocamos mas não acariciamos, vimos mas não contemplamos. Havia sentidos dentro dos sentidos, e ainda mais outros poderosos que se abriam, do corpo à sabedoria. O sentido do encontro com as coisas, o sentido dessas mesmas coisas, o lado divino do mundo, assim presentes e tão próximos nesse deserto ascendente. Tudo tão perto afinal e tão longe no horizonte da cidade. Dois mundos entre nós e nós e, no meio deles, um deserto em forma de abismo e montanha. Quem somos afinal? O que somos nós?

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