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quarta-feira, 10 de junho de 2009

PESSOA E OS OUTROS, 3

Luís de Camões

Camões é Os Lusíadas. O lírico, em quem os inferiores focam a admiração que os denota inferiores, era, como em outros épicos de sensibilidade também notável, apenas a excedência inorgânica do épico.

Não ocupa Os Lusíadas um lugar entre as primeiras epopeias do mundo; só a Ilíada, a Divina Comédia e o Paraíso Perdido ganharam essa elevação. Pertencendo, porém, à segunda ordem das epopeias, como a Jerusalém Libertada, o Orlando Furioso, a Faerie Queene – e, em certo modo, a Odisseia e a Eneida, que participam das duas ordens –, distingue-se Os Lusíadas não só destas epopeia, suas pares, senão também daquelas, suas superiores, em que é directamente uma epopeia histórica.

A vastidão impressiva da fábula, que uma epopeia requer, buscaram-na os antigos e os grandes modernos já na lenda ou na história indirecta, já no Além. Em aquelas se fundamentam, de diverso modo, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, a Jerusalém de Tasso; na lenda absoluta, ou fantasia pura, o poema de Spencer e o Orlando; no Além – o Além pagão do Cristismo – a epopeia de Dante e a de Milton.
A Camões bastou a história próxima para lenda e Além. O povo, que cantou, fizera da ficção certeza, da distância colónia, da imaginação vontade. Sob os próprios olhos do épico se desenrolou o inimaginável e o impossível se conseguiu. Sua epopeia não foi mais que uma reportagem transcendente, que o assunto obrigou a nascer épica. Este Apolónio podia ter falado com seus Argonautas, este Homero ter ouvido da boca dos companheiros de seus Ulisses os terrores da caverna do Ciclope e a notícia imediata do encantamento das sereias. Em certo modo viveu o que cantou, sendo, assim, o único épico que foi lírico ao sê-lo. Essa sua singularidade, que é uma virtude, é, como todas as virtudes, origem de vários defeitos.
Resta dizer, de Camões, que não chegou para o que foi. Grande como é, não passou do esboço de si próprio. Os sobre-homens da nossa glória constelada – o Infante e Albuquerque mais que todos – não cabem no que ele podia abarcar. A epopeia que Camões escreveu pede que aguardemos a epopeia que ele não pôde escrever. A maior coisa dele é o não ser grande bastante para os semideuses que celebrou.
Fernando Pessoa
(publicado no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1924)
Na imagem:
Luís de Camões, desenhado por William Blake

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