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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 50

A Felicidade*
(Conto Árabe)
M. Bento de Sousa

O sultão acha-se à morte;
Com seu mal ninguém atina;
E é entregue à sua sorte
Pela grande medicina.
Naquelas horas supremas,
Em conselho os seus vizires
Mandam chamar os ulemas,
Os dervixes e os faquires.
Com rezas e benzeduras
Entra a moura multidão
E nas últimas tremuras
Deixa o pobre do sultão.
Há orações na mesquita,
No Alcácer e na cidadela,
E mais o sultão se agita,
Sempre a esticar a canela.
Chega um velho ao pé da cama,
De esfarrapado albornoz,
Papuzes cheios de lama
E bordão cheio de nós,
Santo e sábio marabu,
De muita voga entre os crentes
Que o sultão manda pôr nu
E lhe diz por entre os dentes:
– “De homem que tenha ventura
Veste a camisa inda quente,
Que te dou por certa a cura
E não mais serás doente!”
Correm pachás, beis, Cádis
E em cada tribo e aduar
Pedem um homem feliz,
Sem nunca o poder achar.
Até que num burgo vil,
Lá muito fora de mão,
Canta ao som dum anafil
Um corcunda folgazão:
– “O rico teme a pobreza;
O grande teme a desgraça;
O belo chora a beleza,
Ao ver que pronto ela passa.
Eu vivo na patuscada;
Mais feliz não posso ser:
Tenho tudo sem ter nada
E sem risco de o perder!” –
O homem feliz! Ei-lo enfim!
E, preso em seguro escolta,
É amarrado ao selim
E levado à rédea solta.
E, despido ante o sultão,
Que frio de pedra agoniza,
Vê-se que o tal felizão…
Nunca tivera camisa!...

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* NOTA DO EDITOR: este poema, de um autor do século XIX, foi-nos enviado por Rita Pinto, e integra o Livro de Leitura - Parte II, organizado por José Pereira Tavares, para o Ensino Liceal da Língua Portuguesa, e publicado em Lisboa em 1951.

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