
(RE) CRIAR UM MITO PORTUGUÊS
As contradições do predomínio do pensamento lógico-racionalista, que ainda persiste, só poderão resolver-se, ou pelo menos atenuar-se, pela (re) criação de um mito. Fernando Pessoa disse que a sua maior ambição era a de ser criador de mitos. Natália Correia respondendo, de algum modo, ao apelo do surrealismo, escreve na antologia de poesia que organizou dedicada a esta corrente artística: «Não se trata de reabilitar os mitos legados pelo passado, mas de restabelecer as forças que nutriam a consciência mítica, utilizando-as para consumar o parto difícil de um mito moderno que a nossa época exige como única solução possível para as precárias condições de vida que nos oferece». Assim, à autora parece essencial o sopro ou espírito do mito para incubar um outro na contemporaneidade, o que acaba por ser o reconhecimento de algo presente na Tradição.
Enquanto que nesta primeira década do século XXI, que Natália Correia já não chegou a viver, o sentido do precário, de que nos fala, está quase todo ele atolado nas condições de sobrevivência alimentar, habitacional e pouco mais, já na sua época – que não foi substancialmente diferente da actual - a criadora de versos entre a ousadia lírica, a ironia e o mítico, reclamava outras condições de vida para a precariedade dominante, ontem como hoje, no sufoco do compulsivo pensamento lógico-racionalista.
Se (re) criarmos um novo mito que tenha o Sol como o maior herói de sempre, dispensador de alimentos, saúde e elevada inspiração para tudo o resto que a vida requer, é possível que ajude a solucionar o grave problema da chamada sustentação social. Assim, no presente mundo em que os habitantes vivem mais anos que no passado, eliminadas muitas doenças pelo científico aproveitamento solar e desenvolvimento da medicina, e na possibilidade de a idade gerar sabedoria, talvez a renda da casa, electricidade e algo mais estejam pagos.
Mas também não seria despicienda a ideia de um mito marítimo. E por que não um contra-mito? Bastaria que o sentido do medo e do não agir, na figura do Adamastor, se volvesse um Anjo luminoso. Mas esta é uma impossibilidade manifesta, a de haver apenas uma das partes, isto é, um contra-mito que não suponha um mito. Como se verá de seguida, temos tido esse contra-mito, face a face, por certo mais renhido em determinados momentos da nossa História. Tanto o ensino oficial como a grande maioria dos intelectuais portugueses têm recusado o mito do Desejado, embora ele subsista nos subterrâneos da nossa psique. Esta atitude, que vem de longe, foi-se estratificando na sociedade portuguesa, de tal modo que hoje temos uma egrégora que ronda as instituições: a da atitude imediata de obstrução, a do não, a do «isso é muito difícil», a de preencher mais um papel, corporizando assim um estado de espírito que, face a uma ideia ou projecto (sobretudo se for de índole portuguesa) logo surjam indesejados.
E, tal como entre todas as tradições mitológicas onde o pano de fundo é a eterna luta das forças das trevas contra as forças da luz, podemos conceber entre nós (não terá já existido desde o distante passado?) o confronto entre o Adamastor e o Arcanjo de Portugal. Mas não nos iludamos: apesar de vencido, o inimigo volta sempre, para provação do vencedor. Daí também o sentido destes tempos de decadência de Portugal. Resta-nos a esperança de que no combate entre as hostes das trevas e as da luz, somos e sempre seremos lusíadas!
Num ciclo já dilatado, em que Portugal foi descendo aos infernos ou corredores mais escuros da existência (fase involutiva do mito) só a luz solar - cujo prenúncio pode ser de novo um espiralado voo de águia (quem sabe se, desta vez, a imediata captação energética através da alma!), poderá ser redenção para tanta escuridão. Mas não tem sido a falta de claridade o pior dos cenários, pois na ausência há sempre ecos de alguma presença, mas a humilhação e a dilaceração provocadas à pátria portuguesa, cuja alma está hoje aturdida e por isso impedida de escutar e compreender as palavras de Agostinho da Silva: «o tempo que vivemos, se for mesquinho, amesquinha o eterno."
Eduardo Aroso
Outubro 2010
Eduardo Aroso
ResponderEliminarComento o seu texto com um poema que reza assim:
Depois do mar e
Seus monstros marinhos
Ficaram dois povos
Um dorme
à sombra
Das cinzas das árvores
Outro navega incerto
Num mar de símbolos
Que foste fazer tão longe?
Colher frutos do esquecimento?
Hoje metade traz um graal na mão
Excalibur na outra
Reinos do preste João
Mesmo à mão de semear
Rosas místicas no altar
Do seu quarto só
Hoje metade traz
Livros e livros
Com páginas soltas de um país
Impossíveis de reunir num único facho.
Solidões de incensos
Deuses mortos
Reavivados pelo desejo
Bandos de Espíritos Santos
Esvoaçando sem sentido
E uma Hora a cantar pelo poeta
Dissolvida no mar dos minutos
Que são apenas mais um dia
Hoje metade deles
Pinta dragões alados
E tenta decifrar
A sabedoria das pedras
E quando saí pela rua
Espelhados nas paredes
Encontra grafitis putrefactos
Escorrendo devagar
Hoje metade deles
Foi tocado por um anjo um dia
Mas cedo perde a espada e a capa
E a promessa é outra vida
Esse mar de símbolos em que navega
Não modifica a economia
Essas conversas ocas que a metade carrega
Não mortifica nem vivifica
Portugal, nem um só dia
Vieram ordens e segredos
Massas de nadadores em mares de livros
Memórias de heróis e santos
E no cimo do palco essa metade discursa
Mundos tão paralelos
Que não se chegam a encontrar
Teorias das conspirações dispersas
Modificações genéticas
Fugas de emergência para outros planetas
Mas nada disso explica
O que fomos fazer para o mar
O mundo é outro agora
E esse outro apenas sonho
Resta apenas a metade que dorme
E a outra que fica por confirmar
Confirmará apenas
Desejos de poder em jeito de
Mal formação freudiana?
Confirmará apenas fuga à realidade?
Confirmará apenas o seu quarto só?
Os seus deuses interiores?
Ou confirmará o reverso da medalha?
E que o hoje o dia é só noite?
E que a saudade, afinal, não mata.
Também creio que «Resta apenas a metade que dorme/ E a outra que fica por confirmar». Obrigado por este "sopro" da Palavra. Afinal, quando estamos no reino do espírito, como dizia Agostinho da Silva, «somos poetas à solta».
ResponderEliminarEduardo Aroso