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quarta-feira, 23 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 10

Para uma poética atlântica da casa

Pedro Martins
ao Luís Paixão
(...)

4. Todavia, não é apenas pela perversão desfiguradora das palavras que ocorre o desvirtuamento da língua portuguesa enquanto suporte de uma filosofia do movimento. Devemos, igualmente, prevenir os casos de introdução, intromissão ou intrusão de vocábulos alheios que neutralizam, quando não subvertem, aquela capacidade expressiva.
Tenha-se presente a palavra piso, de óbvia origem castelhana, cuja utilização vem, nas últimas décadas, substituindo o uso da palavra andar – quando esta seja tomada na acepção de estrato – na nomenclatura arquitectónica, com especial incidência nos edifícios afectos a serviços públicos.
Na alternativa enunciada pelo confronto dos dois termos espelham-se duas visões do mundo claramente distintas e até, de certo modo, antagónicas. Do pisar (estático) para o andar (dinâmico) vai a diferença que se verifica existir entre quem fica e quem parte, sabido que andar é próprio de alguém que está em movimento, ou em viagem.
Neste passo do nosso caminho parece adquirir grande pertinência a destrinça, por António Quadros operada no primeiro livro de
Portugal, Razão e Mistério, entre nações terrestres e nações marítimas, num quadro elementar, simbólico de determinações ideais, que admite matizes e abarca igualmente as nações voláteis e as nações ígneas.
Na visão de Quadros – que, em certa medida, se revela tributária dos ensinamentos de Gaston Bachelard –, a predominância do elemento
terra relaciona-se com “a radicação telúrica do homem, com os mitos e rituais de fertilidade nas civilizações agrárias, com a poética da paisagem e das raízes”; “com o repouso idílico ou com a detenção do movimento, definida a condição humana entre o berço e o túmulo”; e, num outro plano, “com o voluntarismo, isto é, com o domínio, com a conquista, com o sistema e bem assim com a atitude de desconfiança ou de repúdio perante a imaginação, o sonho e a transcendência em todas as suas formas”[i].
Por isso, o filósofo da
Arte de Continuar Português pode concluir que “o absolutismo da razão (prática, dialéctica ou sofística), da ideologia dogmática, do sistema filosófico totalizante, do totalitarismo, da conquista material, do império voluntarista sobre os homens e as nações é da ordem da terra”, num percurso histórico que se faz “do centro das massas continentais (panoramas de montanhas, vales, florestas) para as margens dos grandes rios ou para as periferias marítimas, que pretendem dominar e converter”[ii].
Este breve, mas decisivo, excurso por um aspecto fundamental da obra-mestra de António Quadros resultaria, de alguma sorte, inconsequente se se não acrescentasse que o filósofo, no remate da proposição que venho de transcrever, inclui os castelhanos da meseta ibérica entre os povos referidos ao conjunto das nações terrestres. Dadas as evidências, bem se compreenderá que ao nosso vocábulo
andar (na acepção apontada) correspondam na língua castelhana a palavra piso e – o que, se ainda não foi dito, é porventura mais significativo – a palavra planta.

(...)
____________
[i] António Quadros, Portugal, Razão e Mistério, Livro I, pp. 47-48.
[ii] Idem, p. 48.


1 comentário:

  1. Planta e plantado! A típica expressão portuguesa «Estás para aí (ou aí) plantado?!» diz tudo da posição de passividade e que, às vezes, também se pode traduzir de outra maneira «Estás para aí especado!? Especado que vem de espeque, pau que se espeta na terra. Mas, ainda sobre a ideia de casa/andar, também não deixa de ser significativo que o povo usa a expressão «arranjar um ninho» ou «ter o seu ninho» o que, dando a sensação de conforto - ou pelo menos agasalho - confere uma situação de alguma liberdade, pois o ninho estará mais ou menos alto e de lá se pode voar, quanto mais não seja em imaginação...

    Eduardo Aroso

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