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sábado, 17 de dezembro de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 25



A sacra câmara dos tesouros

Alexandra Pinto Rebelo


Habituámo-nos a festejar o Natal com os adereços que vimos usar a pais e avós. Todos eles nos fazem sentido. Quanto mais não seja, um sentido étnico, ao nível da imagem. O presépio, em forma de cabana, manjedoura ou gruta, fica mesmo bem perto da árvore de Natal, com as suas fitas coloridas enroladas, as filas de luzes intermitentes, bolas brilhantes penduradas, encimadas por uma estrela radiante. A ceia tem um clima diferente de todas as ceias do ano. A um tempo, é plena de solenidade, alegria, transcendência. Será a última ceia do nosso calendário solar, celebrada entre os “nossos”. Por isso, não causa estranheza lembrarmos de uma forma muito vívida aqueles que deixaram de estar presentes.
Todo este cenário lembra as Câmaras de Curiosidades do barroco. Salas onde se juntavam peças coleccionadas por pessoas ricas, fragmentos de tempos não coincidentes.
A árvore de Natal pode ser entendida como sendo um axis mundi, o eixo de ligação da terra aos céus, mas também aos níveis inferiores, ctónicos. O presépio-gruta costuma ser colocado, precisamente, junto ao tonco inferior, passagem para o mundo onde as sementes se dissolvem durante parte do ano, germinando em seguida. A árvore, sempre de folha perene, eleva-se, assistindo a esta metamorfose mistérica. As folhas sao povoadas de coisas brilhantes, bolas, fitas, adquirindo, aos poucos, uma linguagem cada vez mais abstrata. As fitas orientam-se em espirais, estreitando-se em direcção ao topo. Numa vista aérea, teremos uma configuração muito próxima de alguns percursos místicos de certos templos circulares gregos. Por elas, ainda não teremos a verdadeira revelaçao, como nos lembram as luzes intermitentes. A epifania será simbolizada no cume da árvore, no lugar mais perto dos mundos superiores, sendo uma epifania da Luz.
Maria, Mãe de Deus, mostra o seu Menino, aquele que nasceu sem intervenção terrena. Estamos num nível de semi-deuses, contacto reactualizado anualmente, aqui no final do calendário solar, correspondendo, por proximidade, ao solstício de Inverno. O Menino Jesus abrirá essa noite, entretanto tornada mais escura do que nunca, revelando o seu avesso no sol do nosso Verão. Morrerá, entretanto, pela Páscoa, sabemo-lo, ressuscitando em seguida, deixando a João, seu primo, a responsabilidade de voltar a fechar este ciclo de escuridão/luminosidade, em Junho.
Em todos os Natais, em nossa casa, temos um mecanismo simbólico completamente desconhecido, mas absolutamente actuante. Foi através deste mecanismo simbólico que o mundo foi recriado, vezes sem conta pelos nossos antepassados. É por ele que, ainda hoje, temos Mundo e as gerações futuras o hão-de recriar outras tantas vezes sem conta. Por isso nos juntamos todos, na refeição ritual. Todos aqueles que já existiram e existem, observando em Mistério a belíssima actualização do Mundo. E que connosco estejam todos, Maria, Jesus, José, o Homem Verde, Ishtar-Inanna, Ceres, Perséfone, os nossos mortos, os nossos vivos. Todos, independentemente da particularidade que tomaram depois de Babel.
Só todos juntos seremos os suficientes para saborear o travo único da Luz.

4 comentários:

  1. Esta é a mais extraordinária descrição de uma árvore de Natal que já li!

    Bjs da Cynthia

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  2. Eheh. foi uma descrição muito resumida. Dava para escrever um livro.

    Alexandra Pinto Rebelo

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  3. Sublinho por inteiro as palavras da Cynthia. Diria ainda que a Alexandra transformou (criando um texto)aquelas imagens aparentemente vulgares - isto é, já muito vistas e habituais que a nossa preguiça e automatismos diários tendem a sufocar, sobretudo nos espaços comerciais - num belíssimo texto de significados, texto que, em certos momentos, nos comove.

    Eduardo Aroso

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  4. E eu subscrevo as palavras da Cynthia e do Eduardo.
    Um pequeno texto notável, Alexandra.

    Daniel Almeida Pinto

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