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sábado, 26 de fevereiro de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 14



Os mistérios da escrita

Alexandra Pinto Rebelo

Siddharta, Jesus ou Muhammad nunca escreveram um texto religioso pela sua mão. Pelo menos, não chegou nenhum texto autógrafo até nós, nem tão pouco existem relatos dando conta da sua existência. Talvez por isso, se tenha tomado como verdade que nenhum deles sabia escrever sendo essa a razão do seu silêncio escrito. Afirmações deste género ainda se escutam e lêem por aí.

Muhammad sabia escrever. Escreveu pelo menos três cartas a outros tantos soberanos pela sua própria mão, manuscritos que se conservam até hoje. Podemos então perguntar por que razão não terá sido ele a redigir os textos do Corão. Em vez disso, o trabalho de escrita foi feito por seguidores, transcrevendo o que iam ouvindo. Esta questão, parece-me, tem uma resposta fácil. Corão significa “recitação”. Os textos devia ser decorados e transmitidos de memória. A sua passagem para a escrita destinou-se, muito simplesmente, a evitar desvios do “recitar” original.

Não se sabe se Siddharta saberia ler ou escrever. Era muito provável que o soubesse dada a sua origem social. A mesma pergunta pode ser feita em relação ao facto de não ter deixado nada escrito, pergunta estendida aos cinco séculos após a sua morte, data em que aparecem os primeiros textos considerados iniciadores do cânone budista. Também me parece que neste caso, a resposta é, igualmente, fácil. O que Siddharta descobriu, ou redescobriu, é sobretudo um processo. Através de uma simples postura de yoga é possível alcançar estados de consciência diversos dos habituais, mais vívidos, mais cientes, digamos. É o pôr de parte o mundo mostrado através de discursos, para o vivênciar na plenitude, na sua essência. Certa vez terão perguntado a Siddharta qual era o grande ensinamento da sua escola, ao que ele respondeu, ser o andar, o sentar e o dormir. Aquele que perguntou terá ficado muito intrigado, como é normal, respondendo que isso é o que toda a gente faz. Siddharta então respondeu que sim, mas no seu dharma existia uma diferença. Quando andavam, sabiam que andavam, quando se sentavam, sabiam que se sentavam, quando dormiam, sabiam que dormiam. Neste processo, qualquer texto é apenas uma curiosidade pertencente ao mundo das ideias. Nenhum budista minimamente culto se preocupa em ter, sequer, grandes discussões sobre a veracidade de quaisquer palavras atribuídas a Siddharta. Basta sentar, em postura de meditação, e o próprio processo se encarregará de tudo aquilo que importa saber.

O caso de Jesus é deveras intrigante. Não se sabe, tal como em relação a Siddharta, se Jesus saberia ou não escrever. Parece-me, no entanto, que seria relativamente fácil o seu acesso à escrita enquanto processo. Caso entendesse não o fazer pessoalmente, poderia sempre pedir a alguém que o fizesse. Teria, inclusivé, vários tipo de escrita ao seu dispôr, como o hebraico, o latim, o grego, todos eles dirigidos a auditórios diferentes. Teria sido esse o problema? Escolher uma língua de suporte para as suas próprias palavras, constituíria um sinal selectivo de todo a evitar? Talvez bastasse o exemplo da sua própria existência, de parte da sua vida pública, morte e ressurreição, sendo então o princípal texto a ser escrito uma biografia que teria de integrar a sua vitória sobre a morte, não podendo, pois, ser escrita por ele mesmo. Ou talvez soubesse somente dos perigos da palavra escrita e os quisesse evitar, deixando a questão da escrita para outros que, por mais inspirados que pudessem ser, teriam sempre uma autoridade mais fraca do que a sua. Penso que este é um dos grandes mistérios de base do cristianismo. Quem souber responder a esta questão, estará muito perto da sua essência.

1 comentário:

  1. O António Carvalho fez o favor de me relembrar que Cristo escreve na areia, no episódio da mulher adúltera. Já o tinha esquecido. Esse episódio é, inclusivamente, utilizado nalguma da hagiografia medieval. Os meus agradecimentos.

    Alexandra Pinto Rebelo

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