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domingo, 19 de julho de 2009

RAZÃO POÉTICA, 3

Pinharanda Gomes, o Filósofo Autodidacta*

«Há, para além do natural e do social, do herdado e do partilhado, um jardim secreto onde ninguém entra, a não ser o próprio homem. Mesmo em Igreja, cada homem tem um modo de dialogar com o seu Deus, onde a igreja não entra: o fiel tem a sua vida de comunidade eclesial, onde a igreja entra e ensina; mas há, no íntimo do homem, um local onde só ele e Deus sabem o que importa. É a vida pessoal inalienável. É o miolo do sobrenatural»

PINHARANDA GOMES


O Filósofo Autodidacta do andaluz Abuchafar Abentofail é a história de Hay Benyocdan, o misterioso mestre de Avicena, contada aqui como a de um homem abandonado, após ter nascido, numa ilha deserta de outros homens, cujo espírito atingiu os mais altos conhecimentos especulativos, tendo por primeira e única mestra a gazela que o amamentou. No plano do conhecimento instrumental, o seu itinerário foi em tudo semelhante ao que arqueólogos e historiadores imaginaram para a humanidade: progressiva entrada na civilização por sucessivos aperfeiçoamentos da adaptação ao meio, passando pelas fases que o raciocínio deduz para que a investigação no terreno as confirme. Há só uma diferença: a criança era de ascendência régia, se não divina, inconfundível com o antropóide imaginado pela arqueologia por evolução da matéria.
Teixeira Rego era um autodidacta como autodidacta é Pinharanda Gomes, que o biografou. Causou escândalo nos meios universitários coimbrões ter sido posto por Leonardo Coimbra na Faculdade de Letras da Universidade do Porto a ensinar algumas disciplinas fundamentais. Do ponto de vista universitário, um autodidacta é um analfabeto. Pinharanda Gomes nunca foi chamado a ensinar na Universidade, nem até na Universidade Católica, apesar da sua perfeita ortodoxia e da sua obra monumental. Também é certo que, na Universidade actual, não há nenhum Leonardo Coimbra.
O homem primitivo foi também imaginado por Teixeira Rego como um autodidacta. Aprendeu tudo por si próprio, até o falar, reagindo ao meio e reflectindo. Tivemos que esperar muitos milénios até que viesse a fundar a Universidade e a tornar-se um inimigo dos autodidactas, isto é, de si próprio. Todavia, pelo caminho que assim tomou, parece que se impediu, como veremos, de atingir conhecimentos tão altos como os de Hay Benyocdan.
Não se vê, pela leitura do livro de Pinharanda Gomes sobre Teixeira Rego, se o biógrafo aceita ou não a doutrina do biografado sobre as origens da humanidade. Deve, porém, tê-lo seduzido pelo que nela se envolve da doutrina de Moisés no Génesis. Teixeira Rego situa o antropóide, que descreve coberto de pêlos, feliz entre os outros animais e fruindo dos frutos, no centro do Paraíso. A descrição do homem primitivo não condiz, como se vê, com a de um homem feito à imagem e semelhança de Deus. Uma trapalhada, em que se enreda o seu pensamento e o do seu biógrafo.
Pior do que isto é quando vem dizer-nos que o antropóide perdeu o estado paradisíaco em que vivia por ter cometido um crime horrível, o de ter morto um animal e comido a sua carne. A palavra que, no Génesis, as traduções dizem designar a maçã significa de facto carne. Em consequência deste acto, caem-lhe os pêlos, transforma-se num homem mais à nossa imagem e semelhança e, de frugívoro que era, passa a carnívoro.
O desejo de se querer conciliar o ensino bíblico com o ensino científico, neste caso com o evolucionismo materialista, leva forçosamente a estes disparates. Pinharanda Gomes, enquanto expunha a doutrina de Teixeira Rego, deve ter pensado em Teillard de Chardin, pois não reagiu opondo-lhe qualquer objecção:
«O aparecimento da Nova Teoria do Sacrifício provocou surpresa e originais comentários. Basílio Teles, em seu rigorismo ascético, mostrava dificuldade em entender o emaranhado da floresta de enganos em que o amigo se metera. Bruno, afoito mas precavido, numa fase de ascensão para a ideia de Deus em sua transcendente pureza, evitou dar parecer, por andar molestado. Teófilo Braga, em seu positivismo, adianta que Teixeira Rego deveria ter descrito as três fases nutritivas da Religião: o mito do Éden, ou religião ctoniana; o mito da Serpente, ou o rio gelado; e o mito do Fruto Perdido (sic), ou da bebida fermentada. Não tinha que fazer isso, o autor do livro, para quem a Religião só surgiu após o Pecado Original, sendo, por isso, uma das provas da queda. Segundo a lógica, Rego estava mais certo do que Teófilo: só há Religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Só há Renascença por importar nascer de novo.”
Será isso. Só há religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Mas, no passar do antropóide ao selvagem e do selvagem ao homem, cindiu-se alguma coisa do divino? A Religião é uma Renascença, um nascer de novo em quê? No antropóide?
Terá reparado Pinharanda Gomes num dos textos de Teixeira Rego que escolheu para figurar no fim do livro, onde ele chama a atenção para “a serpente e esse alimento proibido que foi a causa da civilização e da ciência, esse alimento que foi a origem de todo o mal mas que foi também a origem de todo o bem”? E, se reparou, terá recordado ao mesmo tempo as palavras de Jesus Cristo no Evangelho aos discípulos, “sois Deuses”, que repetem as palavras da serpente no Paraíso?
Não podemos saber se reparou, porque os autodidactas, crescendo e aprendendo sozinhos na sua ilha, têm segredos. É pena, porém, que não tenha explicado melhor o silêncio de Sampaio Bruno sobre o livro do “discípulo amado”. “A ideia de Deus em sua transcendente pureza” era assim tão oposta ao mistério redentor da Encarnação que levasse o filósofo a preferir calar-se, “por andar molestado”, a ter de dizer “não” a uma doutrina que punha no comer carne a origem de todo o mal e de todo o bem?
Teixeira Rego exerce sobre Pinharanda Gomes um fascínio irresistível. Sente-se irmanado com ele no seu autodidactismo. Protesta. Diz que Teixeira Rego não foi um autodidacta. Teve como mestres Basílio Teles e Sampaio Bruno, assim como ele, Pinharanda Gomes, teve Álvaro Ribeiro e José Marinho… e a Igreja, onde floresceu o seu espírito à semelhança do de Hay Benyocdan naquela ilha paradisíaca donde não precisou de sair para conhecer todo o Universo e, através dele, Deus. (...) ler mais

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